Tradição teológico-filosófica nas missões
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 164

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Ventura, California. Foto A.A.Bispo 2016 Copyright

Ventura, California. Foto A.A.Bispo 2016 Copyright

Ventura, California. Foto A.A.Bispo 2016 Copyright

Foto A.A.Bispo 2016©Arquivo A.B.E.

 


N° 164/4 (2016:6)


Tradição teológico-filosófica medieval nas missões franciscanas da América
em tradição patrística do pensamento platônico
- mística na transformação cultural indígena -

Visita da A.B.E. à Missão S. Bonaventura, Ventura/Califórnia
pelo debate motivado pela canonização de Fr. Junípero Serra (1713-1784)


 
Ventura, California. Foto A.A.Bispo 2016 Copyright
Devido às questões levantadas pela canonização de Frei Junípero Serra pelo Papa Francisco, em 2015, foram visitadas, em 2016, várias das antigas missões franciscanas na Califórnia. (Veja)


Ventura, California. Foto A.A.Bispo 2016 Copyright
A discussão atual motivou a retomada de um debateque vem sendo conduzido há décadas por indígenas, indigenistas, antropólogos culturais e historiadores, também e sobretudo em estudos relativos ao Brasil. Escolheram-se, entre as missões visitadas, algumas daquelas consideradas como das mais representativas ou que abrigam museus ou centros de estudos.


Entre elas, incluiu-se uma visita à Mission San Buenaventura em Ventura por ter sido a última a ser estabelecida por Junípero Serra e a nona de uma longa série de fundações.


San Buenaventura e a problemática das atividades missionárias


A história dessa missão traz à consciência - como em outros casos - os estreitos elos entre a atividade missionária e o poder militar espanhol. Esse fato torna-se evidente pelo fato de ter-se adiado a sua fundação e, 1770, por não haver soldados que pudessem acompanhar e proteger os missionários perante os riscos de um estabelecimento em terras indígenas: somente uma escolta militar possibilitava segurança aos religiosos.


Os estreitos elos que nesse fato se manifesta entre as atividades missionárias franciscanas e o poder político-militar a serviço de interesses políticos e econômicos de exploração e ocupação da terra exemplificam um dos aspectos hoje criticados por indígenas e indigenistas. Outro problema sempre levantado é o do emprêgo dos indígenas no trabalho de construção de igrejas e outras instalações, assim como nas atividades de agricultura e pecuária, o que teria sido feito de forma nem sempre voluntária.


Também em Ventura a missão apenas pôde ser levantada com o emprêgo de mão de obra indígena. Após a destruição da primeira igreja em incêndio, em 1793, a sua reconstrução levou nada menos do que 16 anos.


Assim como em outros casos, em particular em Santa Barbara, as atividades foram marcadas pela criação de infraestrutura para a missão e para o cultivo da terra, o que exigiu um vasto sistema de captação e transporte de água, e cujos aquedutos, construídos por indígenas do grupo Chumash representam importantes testemunhos da técnica construtiva nas missões do início do século XIX.


Esse sistema, abrangendo ca. de 11 quilômetros, tornou-se necessário devido ao fato de que a água devia ser captada no rio Ventura. Foi com essa disponibilidade de água que a missão esteve em condições de criar hortas e jardins. O sistema de captação e irrigação serviu a Ventura durante décadas, sendo abandonado apenas em 1862.


A atual igreja, a terceira,  distingue-se pela sua posição elevada e pelo fato de incluir um espaço ajardinado adjacente. Os trabalhos de construção, que duraram anos, permitiram apenas em 1809 que a igreja fosse consagrada. Concomitantemente construiu-se uma capela de S. Miguel e uma de Santa Gertrudes. A sua localização junto à praia levou a que fosse atingida por ondas durante terremotos que obrigaram a fuga de missionários e missionados para o interior. Também a retirada de objetos tornou-se necessária por ocasião de pilhagens por parte de piratas. Com a secularização das missões pelo govêrno mexicano, em 1834, San Buenaventura foi alugada e vendida.


Há porém um aspecto que tem sido menos lembrado nos posicionamentos críticos atuais relativos às missões: a do embasamento teológico-filosófico que justificou procedimentos. É porém justamente essa fundamentação conceitual que merece particular atenção, pois não só criou os pressupostos das ações como também manifestam uma problemática do edifício cultural de remotas origens e que pode continuar a estar vigente no presente.


Preparação teológico-filosófica da instalação da missão e  seu espírito


A fundação da missão de San Buenaventura não foi obra do acaso, mas premeditamente preparada, o que adquire interesse para a consideração dos conceitos teológicos que a guiaram.


A decisão de criar um estabelecimento remonta a 1749, mas a sua implantação teve de esperar décadas para ser efetivada. Apenas em 1782 levantou-se cruz na praia do canal e Santa Bárbara, quando então se celebrou a primeira missa.


Ventura, California. Foto A.A.Bispo 2016 Copyright
A dedicação da missão a S. Bonaventura (1217-1274) é  de significado para a compreensão do espírito que guiou a fundação. A direção foi entregue a Fr. Benito Cambón, um missionário que também foi um os fundadores de San Francisco.


É essa dedicação que empresta hoje à missão significado que transcende a história local e regional nos estudos culturais. Nela, assim como em San Carlos Borromeo, (Veja),  evidencia-se o significado de concepções teológicas da tradição franciscana nas suas consequências para a vida dos religiosos e dos indígenas missionados.


O nome de Bonaventura , Boaventura ou Ventura na dedicação de numerosos conventos e cidades na América Latina faz com que uma consideração mais atenta da missão deste nome na Califórnia adquira relevância também para o Brasil.


Nela manifesta-se o fato de ter sido Junípero Serra teólogo e professor de teologia, não apenas guiado nas suas ações pelas raízes de sua formação na religiosidade popular, mas pela sua formação erudita.


Se, porém, a missão de San Carlos Borromeo onde mais viveu e veio a falecer indica o culto de uma personalidade mais recente de influência da história eclesiástica, representativa da Contra-Reforma e da reforma católica segundo o Concílio de Trento, a de S. Bonaventura testemunha os fundamentos do pensamento franciscano no debate filosófico-teológico do século XIII.


Parece existir uma lógica interna no fato de ter-se escolhido o nome de Bonaventura para uma fundação próxima àquela de Santa Barbara, que no seu nome revela antes um culto de tradição popular, vigente em meios militares. (Veja)


Em Ventura trata-se de uma escolha consciente de cunho erudito, intelectual, indicadora de fundamentos das ações. Transplantou-se, para o ambiente indígena concepções filosófico-teológicas que se inseriram em debate da história do pensamento medieval escolástico.


S. Bonaventura - Giovanni di Fidanza -, o Doctor seraphicus (1482), foi um cardeal, assim como mais tarde Carlo Borromeo. Nascido na Toscana, realizou estudos em Paris, atuando como magister junto a seus companheiros franciscanos. A escolha de seu nome relaciona-se assim com a formação dos próprios franciscanos, possuindo um acentuado sentido educativo.


Como autor de uma vida de São Francisco, escrita em 1263, exerceu papel relevante na historiografia da Ordem, assim como, com outras obras, na cultura intelectual, filosófica e teológica franciscana. Se a memória de S. Francisco marcou a missão da cidade que hoje traz o seu nome, a de S. Bonaventura lembra uma personalidade de organizador que é considerada como um segundo fundador da Ordem, fato que adquire significado perante a capacidade organizativa de Junípero Serra.


Como preparador do segundo Concílio de Lyon, voltado a questões de união com a ortodoxia, S. Bonaventura surge como modêlo de capacidade política.Teve uma posição intermediária entre aqueles que defendiam de forma mais extremada anelos de pobreza - os espirituais ou fraticelos - e os mais moderados irmãos de communidade, o que também poderia ser registrado em Junípero Serra.


A mística e debate filosófico-teológico da Idade Média no Novo Mundo


Há um aspecto da tradição de pensamento orientado segundo Bonaventura que merece atenção para aproximações relativas a métodos de transformação cultural indígena, a modos de vida implantados e ao espírito condutor das atividades dos franciscanos. Conhecido como doutor seráfico, essa tradição caracteriza-se pela atenção dada a uma intensidade interna do homem que imbui o pensamento e a ação e que, na linguagem visual, é referida como um incêndio de fé e amor.


Compreende-se, assim, o significado da mística no pensamento que se orienta segundo o seu pensamento e que não poderia ter deixado de influenciar a vida de religiosos e de indígenas por eles missionados. Neste sentido, esta ter-se-ia inserido na tradição mística secular de autores como Hugo de S. Victor (1096-1141) e do Pseudo-Dionísio Areopagita (século VI).


O pensamento de S. Bonaventura, refletindo o debate filosófico-teológico de sua época, marcado então em Paris pelo pensamento aristotélico, dirige atenção antes à tradição filosófica neo-platônica. Ainda que reconhecendo o significado da tradição aristotélica, o pensamento guiado segundo Bonaventura não teria partido do pensamento da Antiguidade não-cristã, mas sim e sobretudo de sua recepção pelos doutores da Igreja dos primeiros séculos.


Essa herança no pensamento de Bonaventura teria sido assim transplantada para as missões. Os indigenas teriam tomado conhecimento com concepções marcadas por uma união entre Filosofia e Teologia, por uma procura do Conhecimento e da Sabedoria que tem como fundamento e pressuposto a existência de Deus, vista como evidente e óbvia, cujo conhecimento seria alcançável pela própria capacidade intelectual de todo o homem, de modo que colocá-la em dúvida seria impossível. Ela não seria resultado da especulação filosófica, mas representaria uma realidade viva.


Com essa orientação, a ação franciscana na América retomava, de forma renovada, as suas diferenças seculares para com concepções dominicanas, aqueles religiosos que mais se distinguiram nas ciências.


Os indígenas teriam sido ensinados a respeito da eternidade do mundo, da unidade do intelecto e do julgamento, adquirindo a convicção de que somente o Logos divino estaria em condições de possibilitar o conhecimento da Verdade. Assim, resultados de especulações filosóficas deveriam ser vistos com cuidado, pois levariam a êrros, impedindo a libertação do homem das trevas em que se encontraria.


A formação assim obtida poderia ter marcado profundamente a formação cultural e a mentalidade dos indígenas missionados, o que também valeria para as atividades franciscanas no Brasil. As consequências de concepções teriam sido duradouras e a consideração desses fundamentos teológico-filosóficos poderiam abrir caminhos para análises de situações do presente e a possíveis ações esclarecedoras na superação de grandes problemas que hoje se colocam. Coloca-se, assim, a necessidade de estudos mais aprofundados de fundamentos das atividades desenvolvidas pelos missionários no passado e de revisão de posições e concepções de remotas origens que guiaram as suas atividades para análises culturais na atualidade a serviço do esclarecimento.


Filosofia e música - organologia e linguagem de imagens


Para os estudos relacionados com a música, as missões da California adquirem particular significado, algumas delas possuindo acervos de músicas e instrumentos. Entre estes, destacam-se os sinos históricos conservados em diversos museus. Na série das missões, a de San Buenaventura se salienta neste sentido. Ela chegou a possuir cinco sinos, emprestados daquela de Santa Barbara, mas não devolvidos. O museu adjacente conserva ainda dois sinos de madeira, os únicos desse material nas missões da California e que adquirem assim particular interesse organológico. O uso da madeira poderia ser explicado talvez não pela falta de bronze, mas sim pelo seu emprêgo durante a Semana Santa.


Um dos sinos, de 1770, foi doado pelo Vice-Rei espanhol, o que prova a sua inscrição Marquez de Croix Mexico. Outro, de 1781, é denominado de San Francisco. Do mesmo ano é o de San Pedro de Alcântara. Um menor, sobre o arco sul, traz a inscrição Ave Maria S. Joseph.  Apenas um sino mais recente, de 1825, encontra-se ainda em uso. Traz a inscrição Ave Maria Pruysyma D Sapoyan Ano D 1825. Como essa indicação testemunha, o sino havia sido fundido para a igreja de Zapopan.


(...)

De ciclo e estudos da ABE sobre a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.). "Tradição teológico-filosófica medieval nas missões franciscanas da América
em tradição patrística do pensamento platônico- mística na transformação cultural indígena“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 164/4(2016:06). http://revista.brasil-europa.eu/164/Ventura_California_Brasil.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2016 by ISMPS e.V.
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Academia Brasil-Europa
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Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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