Alain Daniélou na sua recepção no Brasil
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 165

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Amber. Foto A.A. Bispo 2007. Copyright

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Fotos A.A.Bispo
(San Francisco) 2016 e (Amber/Jaipur) 2007
©Arquivo A.B.E.

 


N° 165/2 (2017:1)

Amber. Foto A.A. Bispo 2007. Copyright

Ocidente/Oriente
Visões históricas e sistemático-antropológicas - suas interações e a investigação de fundamentos
Alain Daniélou (1907-1994)  na sua recepção no Brasil
Asian Art Museum pela exposição The Rama Epic

2017-1967: 50 anos de Sémantique musicale de Alain Daniélou (1907-1994)
e 10 anos de ciclos de estudos euro-brasileiros na Índia pelo seu centenário - visita a Amber/Jaipur

 

O fato de ser San Francisco predestinado pela sua própria situação geográfica e pela sua história ao confronto e às interações com a Ásia  - assim como pelo fato de possuir San Francisco um dos mais renomados centros de estudos da cultura e da arte do Oriente, o Asian Art Museum -, foram fatores que favoreceram, em 2016, a retomada de questões filosófico-culturais de natureza fundamental que veem sendo há décadas alvo de atenções no âmbito dos estudos de processos culturais relacionados com o Brasil.

Essa retomada das reflexões inseriu-se em ciclos de estudos levados a efeito na Califórnia motivado e à luz de desenvolvimentos político-culturais da atualidade que indicam ou revelam, em atitudes, formas de comportamento, idéias e anelos problemas concernentes a processos mentais no homem e na sociedade. (Veja)


Problemas fundamentais de Historiografia nas suas relações com a Antropologia Cultural

San Francisco, Foto A. A. Bispo 2016. Copyright
Como centro de arte e cultura da Ásia (Chong-Moon Lee Center for Asian Art and Culture), o museu é uma instituição que tem um escopo amplo, que ultrapassa limites de perspectivas convencionais da História da Arte e dos estudos da arte na Etnologia e Orientalística. É nesse sentido que a instituição adquire particular significado também para os estudos relacionados com o Brasil.

A instituição propõe-se revelar valores das culturas asiáticas em todos os seus sentidos a um público cosmopolita, marcado pela diversidade cultural como é exemplarmente aquele de San Francisco. Assim procedendo, procura estabelecer pontes de compreensão entre a Ásia e a América, assim como também entre as diferentes culturas da própria Ásia.

Revelando conexões entre contextos culturais, procura fornecer impulsos à procura mais aprofundada de conhecimentos e à criação artística.

Sob a premissa de que toda a generalização é inadequada e mesmo inadmissível no caso da Ásia, sendo as idéias e os ideais designados como asiáticos inumeráveis e complexos, o museu trata. entre outros aspectos, da questão do tempo, da temporalidade, da permanência em processos, da continuidade e discontinuidade em desenvolvimentos, de transformações e retomadas de correntes e formas de expressão, ou seja de questões historiográficas e de metodologia da História nas suas interrelações com a Antropologia.

Já o fato de algumas das obras expostas datarem de épocas anteriores à história escrita, sendo consideradas ao lado daquelas de diferentes épocas de diferentes regiões ou contemporâneas relativiza o critério da escrita como distinção fundamental, demonstrando tanto diferenças como similaridades na multiplicidade de elos no espaço e no tempo. O museu procura explorar esses elos - também aqueles que elucidam interrupções e mudanças no sendo de incentivar descobertas, debates e inspirações.

Revelando não só similaridades, paralelos e continuidades em processos, mas também a sua falta e rupturas, a instituição traz à consciência a problemática de comparações: o fato de não se poder comparar o incomparável não impede porém a possibilidade e mesmo impõe a exigência de análises de processos que levaram às múltiplas configurações culturais, seja daquelas que denotam continuidade através o tempo, seja daquelas que revelam discontinuidades.

Esse direcionamento da atenção a processos que se constata na orientação do Asian Art Museum vem de encontro à orientação que marcam os estudos culturais na tradição em que se insere a A.B.E.. A questão da unidade - diversidade na unidade e unidade na diversidade - tem sido frequentemente tratada, tendo sido tema do Simpósio Internacional realizado em São Paulo em 1981. (Veja) A sua permanente atualidade evidencia-se no fato de que critérios de unidade fundamentam direitos humanos para além das diferenças. Esse direcionamento da atenção leva a um aguçamento da sensibilidade à questão de fundamentos.

A exposição The Rama Epic: impulsos a reflexões sobre problemas atuais

O escopo do Asian Art Museum manifestou-se de forma exemplar em 2016 na exposição The Rama Epic, dedicado a uma obra da literatura universal de mais de 2500 anos e suas versões.

A história do Príncipe Rama no combate a um rei demoníaco, no resgate de sua esposa, reestabelecendo a ordem no mundo, surge como uma tradição sagrada. A exposição convidou à exploração das personalidades de quatro de seus principais caracteres - de Rama, de sua esposa Sita, do leal macaco de Rama, o tenente Hanuman, e do rei de dez cabeças Ravana - estabelecendo elos com o presente. Assim procedendo, as obras de arte apresentadas fazem com que a antiquíssima narrativa surja sob nova luz, revelando sentidos subjacentes de natureza a-temporal.Tratar-se-ia, assim, de uma percepção adequada de sentidos e sua recepção, uma vez que esta decorre segundo as condições do recipiente.

A questão da percepção de sentidos inerentes a expressões culturais - em analogia a procedimentos hermenêuticos na leitura de textos - vem constituindo há muito uma preocupação dos estudos culturais relacionados com o Brasil e que foram agora retomados. Também nesse desenvolvimento a antiga cultura da Ásia e em particular aquela da Índia desempenhou sempre importante papel.

A atualidade da exposição The Rama Epic levou à retomada de reflexões encetadas em ciclo de estudos promovidos pela A.B.E. em Amber/Jaipur, em 2007.


A Ásia nos estudos relacionados com o Brasil - o programa Oriente/Ocidente da A.B.E.

Pode parecer estranho à primeira vista que se desenvolva há anos um programa Oriente-Ocidente no âmbito de estudos de processos culturais em relações internacionais referenciados pelo Brasil. (Veja)

Também surge singular que se tenha tratado em seminários e colóquios com particular atenção posições do debate mais recente que questiona a relação Oriente/Ocidente como eurocêntrica, assim como de acepções e imagens do Oriente, em particular sob a perspectiva de estudos coloniais e pós-coloniais, como foi o caso no triênio de estudos que, pelos 500 anos do Brasil, abriu o século XXI. (A.A.Bispo, "Postkoloniale Kulturstudien und Musikforschung",Música, Projetos e Perspectivas: Pós-Colonialismo/Identidade Cultural/Imigração; Interações Rural/Tribal; Memória e Futura. Do Congresso Internacional de Estudos Euro-Brasileiros 2002 pelo encerramento dos eventos interdisciplinares do triênio comemorativo dos 500 anos do Brasil. Colonia: I.S.M.P.S., 2003).

A justificativa dessa atenção reside primeiramente na história colonial na qual o Brasil se insere, e que se fundamenta na orientação ao Oriente dos descobrimentos portugueses, o que fêz com que a Índia Portuguesa se tornasse durante séculos centro do império mundial lusitano.

Compreende-se, assim, que Goa e outras antigas possessões portuguesas do Oriente tenham sido repetidamente alvo de estudos, viagens e colóquios euro-brasileiros.(Veja)

Ainda que já contando com uma vasta literatura de estudos especializados, esse universo, hoje em grande parte submerso, não tem sido suficientemente considerado no seu significado a partir do Brasil, que com isso deixa se ser adequadamente situado em contexto do passado colonial de relações e sistemas referenciais dentro dos quais decorreram processos culturais.

Os estudos assim conduzidos, ainda que necessários, são marcados por posições, perspectivas e visões ocidentais, em particular da historiografia portuguesa. Compreensivelmente, tem-se tornado lugar comum entre estudiosos lembrar da questão do eurocentrismo nessa área da pesquisa. Esquece-se, porém, nessa admoestação, que o problema do eurocentrismo é muito mais complexo, manifestando-se também e sobretudo, ainda que de forma mais abstrata, em formas de pensar e de proceder justamente daqueles que procuram enaltecer-se a si próprios através da desqualificação daqueles que criticam como eurocêntricos. São esses críticos que mais evidenciam a assimilação de correntes do pensamento ocidental e a sua inserção na história das idéias da Europa.


Dimensões mais profundas dos estudos voltados à Ásia na perspectiva euro-brasileira

Há uma dimensão mais profunda da problemática expressa no binômio Oriente/Ocidente que merece ser considerada com atenção por dizer respeito não tanto ao objeto de estudo como à própria ciência, aos pesquisadores e suas relações humanas.

Determinando mentalidades, motivações e interesses, questionamentos e visões, os estudos dessas relações tem consequências para o tratamento e desenvolvimento do estudado. Os estudos da própria ciência (science studies, Wissenschaftswissenschaft) relacionam-se estreitamente com aqueles de complexos culturais, com êles interagindo.

A dedicação a um contexto cultural determinado, em particular no caso de ser êle distinto daquele do pesquisador, resulta de fatores que levam a motivações e a empenhos na superação de obstáculos, à observação participante e à participação observante. Interesse e mesmo fascinação pelo contexto cultural e humano, empatia nas relações e abertura receptiva em disposição em vibrar simpateticamente surgem como necessarios para uma compreensão profunda e um tratamento adequado do estudado.

Ainda que o intento de obtenção de uma visão "de dentro" não possa significar perda de distância observante ou de critérios éticos e de direitos válidos em geral, o pesquisador experimenta em si próprio com a interação e compenetração um processo transformatório psiquico e mental, de concepções e visões.

Não se pode também esquecer que há casos de incompatibilidade entre disposições culturais e pessoais de pesquisadores e o contexto de suas pesquisas, de êrros na escolha do objeto de estudos, de incompetência no sentido amplo do termo que coloca obstáculos na compreensão mais profunda e adequada do estudado e que tem consequências negativas para o desenvolvimento dos conhecimentos, de áreas disciplinares e instituições.

As relações assim esboçadas entre estudos de processos culturais e aqueles da própria ciência manifestam-se de forma especial no campo de interações Oriente-Ocidente.

O interesse e a fascinação pelo Oriente de estudiosos ocidentais originaram-se em muitos casos da procura pessoal não só de conhecimentos como de sabedoria e de caminhos de renovação mental perante um Ocidente sentido como superficial ou em crise, necessitado de uma conscientização de dimensões mais profundas e mesmo de fundamentos culturais que se teriam mantido no Oriente.

Seja através da literatura, da influência de pensadores orientais em visita à Europa, seja através de viagens, estudos e atuações em países do Oriente, a procura de um desenvolvimento ou aperfeiçoamento interior pessoal, de modos de vida e procedimentos co-determinou escritos e expressões artísticas, relações humanas, rêdes sociais, as ciências e o ensino.

Transformações interiores experimentadas pelos estudiosos que se dedicaram à imersão em dimensões mais profundas do Oriente marcaram atuações também em outras regiões e contextos e até mesmo intentos de propagação de conhecimentos obtidos e de extensão de cultura mental alcançada em sociedades ocidentais.


O fascínio pelo Oriente na Europa do início do século XX e o Brasil

Sob o ponto de vista dos estudos relacionados com o Brasil, cumpre recordar a atenção despertada pela cultura e pela filosofia, em particular pela antiga música do Oriente em círculos europeus que, no início do século XX e sobretudo após a Primeira Guerra, experimentaram uma decadência da velha ordem do Velho Mundo e a sua derrocada numa das maiores crises culturais e civilizacionais já vivenciadas pela Humanidade.

No âmbito da renovação do Mozarteum, em Salzburg, o estudo e o interesse pela música do Oriente - paralelamente àquela da Música Antiga e da Criação Contemporânea - desempenhou um papel altamente relevante no ensino e na vida musical nos anos que imediatamente precederam e que seguiram à Primeira Guerra Mundial.

Foi nesse ambiente que surgiu a academia de jovens artistas e intelectuais que, após a guerra, preocupavam-se com uma reconstrução dos elos cortados entre os países europeus no espírito de uma renovação inovativa de seus fundamentos, sendo esses sobretudo procurados nas antigas culturas orientais, tanto clássicas como da tradição popular. (Veja)

Para além do estudo e do interesse por aspectos teóricos de linguagens musicais e de prática instrumental, as atenções dirigiram-se sobretudo a dimensões filosóficas ou espirituais da visão do mundo e do homem. Torna-se compreensível, assim, que essa academia voltada às relações Oriente-Ocidente apresentasse proximidade a correntes teosóficas nas suas relações com tradições culturais da Índia.

Na Antroposofia que então surgiu e que atraiu alguns desses jovens artistas e intelectuais, manteve-se o interesse pelo estudo da filosofia e dos sentidos mais profundos de expressões e tradições culturais do Oriente.

Para além de apresentações de indianos e do estudo da música, da dança e outras expressões culturais orientais e da Índia em especial em círculos de intelectuais e artistas, foi o intento de recuperação de sentidos mais profundos do homem, de aperfeiçoamento interior e de iluminação de mentes que constitui a preocupação última de personalidades que, posteriormente, também atuaram no Brasil.

A superação do ego visto como uma das fundamentais características do pensamento indiano tornou-se importante anelo na procura de aperfeiçoamento espiritual, de vida e crítério na visão de desenvolvimentos e de comportamentos pessoais.

Esse direcionamento de mentes e de posições surgia como particularmanete necessário na esfera musical do Ocidente, onde ambições, vaidades e egocentrismos exacerbados marcaram a vida artístico-musical que, desde o século XIX, era determinada pela procura de brilho, popularidade e pelo desejo de aplausos de cantores e virtuoses.

Foi nessa superação do ego extrapolado de músicos que se manifestaria uma verdadeira renovação cultural e mesmo civilizacional do Ocidente decadente.

Os elos com a cultura indiana no Brasil dos anos posteriores à Guerra devem ser assim considerados antes na esfera da vida mental ou da espiritualidade. Apesar de referências a escritos e expressões culturais indianas em obras, a recepção cultural da Índia no Brasil deu-se sobretudo em círculos esotéricos, teosóficos, antroposóficos e da "Comunhão do Pensamento". Entre os autores mais influentes em círculos de artistas que procuravam o conhecimento em aperfeiçoamento interior destacou-se Rabindranath Tagore (1861-1941).

Lembrando uma personalidade-chave: Alain Daniélou (1907-1994)

É no contexto assim esboçado que se compreende o interesse despertado posteriormente pelas obras de Alain Daniélou no Brasil.

Embora de formação marcada pelo Catolicismo, a sua vida dirigira-se ao Oriente. Juntamente com o seu companheiro, o fotógrafo suíço Raymond Burnier (1912-1968), A. Daniélou empreendeu viagens nas quais percorreu a África do Norte, a Ásia Central, a Índia, a Indonésia, a China e o Japão. Deteu-se porém na Índia, primeiramente com Rabindranath Tagore, tornando-se um dos maiores conhecedores de sua filosofia e cultura.

Daniélou tornou-se diretor da escola de música de Shantiniketan. Estabeleceu moradia em Benares, às margens do Ganges, onde permaneceu quinze anos. Aprendeu música clássica indiana com Shivendranath Basu, adquirindo aptidões como executante de vina. Com Swami Karpâtrî, cujas obras traduziu, tomou contato com o Shivaismo. Com o nome Shiva Sharan, tornou-se professor da universidade de Benares e diretor da escola de hinduismo.

A.Daniélou manteve correspondência com René Guénon (1886-1951), o pensador que tratava da crise o mundo moderno, nela tratando questões filosóficas e religiosas hinduistas, em particular daquelas referenciadas segundo Shiva. Estudou a linguagem simbólica da arquitetura e da escultura hindu. Conhecimentos e materiais documentais foram ganhos sobretudo em viagens com Raymond Burnier em várias localidades da Índia, tais como Khajuraho, Bhuvaneshvar, Konarak, assim como em outras da ìndia Central. Já em 1943. A. Daniélou foi nomeado a membro honorário da Ecole Française d'Extreme Orient.

Em 1954, A. Daniélou transferiu-se para Madras, sede da biblioteca de Adjar, famosa pela sua seção de manuscritos e textos antigos. Em 1956, tornou-se membro do Institut Français d'Indologie de Pondichery.

Em época do movimento de emancipação indiana, manteve contatos com a família Nehru, em particular com a irmã de Nehru, a poetisa Sarojini Naidu e suas filhas.

Após a independência, confrontado com tendências restritivas relativamente à ortodoxia hindu, convenceu-se que poderia mais contribuir à imagem verdadeira da ìndia atuando no Ocidente. Retornou à Europa, fundando em 1963 o Instituto Internacional de Estudos Comparativos da Música em Berlim e Veneza. Passou a organizar concertos para músicos do Oriente e a publicar coleções de discos de música tradicional sob o patrocínio da UNESCO. Publicações e gravações editadas por esse instituto nessa fase de sua existência - que infelizmente foi posteriormente deteriorada - foram divulgadas e estudadas no Brasil na década de 1960.

Daniélou contribuiu, assim, de forma decisiva ao redescobrimento da música e da arte oriental no Ocidente, trazendo à consciência que o seu significado não se limitava àquele considerado pela Etnografia ou pelo Folclore: em particular da música clássica da Índia passou a ser reconhecida como uma arte de alta erudição e nível espiritual. Nessa atuação valorizadora da cultura indiana, contou com o apoio de personalidades como a do violinista Yehudi Menuhin (1916-1999) e de Ravi Shankar (1920-2012), o músico indiano cujo nome ficou estreitamente vinculado com a história cultural da Califórnia.

Em obras como Shiva et Dionysos e La Fantaisie des Dieux et l'Aventure Humaine, Daniélou apresenta o Ocidente como tendo perdido as suas próprias raízes, afastado da natureza e do divino. A cultura e a religião da Antiguidade seriam próximas ao Shivaismo, podendo ser esclarecidas por textos conservados na Índia. Se o interesse pela Antiguidade greco-romana não era recente em estudiosos ocidentais - em particular também na França -, podendo-se lembrar sobretudo do fascínio pela imagem de Orfeu no século XIX e início do XX, a posição e a contextualização indiana de Daniélou abriram novas perspectivas através de sua visão "de fora" ou à distância da antiga linguagem mitológica e filosófico-cultural.

Como a sua obra e a sua vida demonstram, Alain Daniélou ultrapassou fronteiras de esferas do conhecimento, das ciências e de contextos culturais.Tornou-se um exemplo de pensamento e ação inter- e metadisciplinar. Ainda que designado como orientalista, em particular indólogo, musicólogo, historiador ou filósofo, êle próprio considerando-se como hindu e como tendo a ìndia como a sua terra mater. Também essa superação de fronteiras veio de encontro a anelos que se fizeram sentir no Brasil.

Alain Daniélou e os estudos culturais relacionados com o Brasil

Alain Daniélou desempenhou um papel relevante no movimento de renovação teórica e prática que teve o seu início em São Paulo em meados dos anos de 1960.

Publicações de Daniélou foram consideradas em círculo de compositores que procuravam caminhos inovativos mas fundamentados do ponto de vista teórico e filosófico na criação musical contemporânea. A discussão caracterizava-se aqui pelo questionamento do sistema temperado. Nele reconhcia-se uma artificialidade e deformação de leis naturais. O dodecafonismo e o serialismo em geral passavam a ser problematizados, uma vez que mantinham o sistema temperado. Presumia-se que, com a sua superação, poderiam ser abertas novas perspectivas que poderiam revolucionar concepções e técnicas composicionais. Esse intento não devia ser arbitrário, mas basear-se em fatos acústicos. Essa crítica ao sistema temperado fêz com que a atenção se dirigisse a sistema musical mais antigo, fundamentado na consonância, levando ao interesse pelo estudo da música na Antiguidade.

Paralelamente, a atenção dirigiu-se a culturas musicais não ocidentais, em particular às da Índia. A intenção de recriar-se um sistema musical baseado em leis físicas trazia consigo a necessidade de considerar-se relações numéricas. O número - e a matemática em geral - passou a constituir o foco da atenção de análise e da prática composicional. O estudo de textos que tratavam de relações numéricas na música e nas concepções da Antiguidade trazia à mente a simbólica do número e as suas implicações na compreensão do mundo e do homem. Segundo Daniélou, o número surgia como a chave nos estudos das relações entre a realidade acústica e à mente, à física e à metafísica.

Esse desenvolvimento no âmbito da teoria e da criação musical contemporânea veio de encontro às tendências renovadoras que preconizavam um direcionamento da atenção a processualidades nas áreas de estudos históricos e empíricos voltadas à música e que levou em 1968, à fundação de uma sociedade de estudos de processos culturais (ND).

Os processos culturais que passavam a ser analisados sob diversos aspectos, entre eles quanto a ordenações e dinâmicas internas, estruturas, funções e sentidos, ofereciam uma similaridade com a música. Constatou-se, assim, um paralelo entre a análise de processos culturais e antropológicos e aquele da música, de uma ciência da cultura e do homem e da musicologia, o que conferia a esta última um papel condutor nos estudos culturais.

O reconhecimento desse significado de uma ciência musical foi que justificou a criação do Centro de Pesquisas em Musicologia na sociedade de estudos de processos culturais fundada em 1968. Questionava-se se a música, retomando-se antigas concepções, poderia ser a chave para o estudo de processualidades na cultura, nas ciências e nas artes.

Ao mesmo tempo, as implicações antropológico-simbólicas desses intentos vinham de encontro às preocupações relativas à música no âmbito da Antroposofia, em particular no âmbito da Escola Higienópolis (Waldorf) de São Paulo.

Relações interdisciplinares entre Etnomusicologia e Estruturação em São Paulo

A obra de Alain Daniélou desempenhou um papel particularmente relevante quando da instituição da área de Etnomuiscologia nos cursos de Licenciatura em Música da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo.

O seu Traité de musicologie comparée (Paris: Hermann, 1959; Actualités scientifiques et industrielles 1265), que tinha sido o primeiro maior tratado de musicologia comparada publicado na França, foi um dos textos considerados nas aulas de Etnomusicologia, sendo analisado a partir de outras visões e correntes do pensamento mais recentes, em particular de autores norteamericanos.

Pelas suas próprias características, porém, foi obra também básica dos cursos de Estruturação musical, realizados em união pessoal com aqueles de Etnomusicologia. Nesta, a sua obra foi considerada sobretudo no tratamento da música do Oriente.

Na área da Estruturação, concebida como estudo de sistemas musicais e de teorias a ele relativas, entre outras aquelas voltadas à sua evolução ou desenvolvimento histórico, a perspectiva musicológico-comparativa de Alain Daniélou surgia como ainda mais produtiva para o fomento de reflexões do que na área da Etnomusicologia.

A Estruturação tomou assim características de uma história da ciência musical e, para os alunos de composição que nela participavam, como impulso no sentido de direcionamento da atenção a relações sonoras, ao desenvolvimento de uma linguagem mais refletida e inovativa do que a tonal em consideração de contextos simbólico-culturais em que se insere.

No Traité de musicologie comparée, Daniélou apresentava uma visão geral de importantes sistemas musicais e elucidava concepções da Antiguidade relativas a leis cósmicas consideradas sob relações numéricas. O estudo da linguagem musical nos seus diferentes aspectos surgia como conditio sine qua non para a renovação. Esse estudo surgia como histórico e científico-cultural, pois o estudo das linguagens musicais teria segundo Daniélou como pressuposto o seu desenvolvimento em diferentes direções. Na área da Etnomusicologia, a atenção dirigia-se aqui sobretudo à música persa, na qual ter-se-iam mantido concepções e configurações da Antiguidade helênica.

Daniélou vai porém mais longe, salientando que a desconsideração de fatos físicos e psicológicos explicáveis através de relações numéricas podia levar a irracionalidades e a degenerências. Defendia, assim, a lógica como fundamento de uma criação musical inovativa e que tinha como pressuposto a superação de um sistema artificial - o temperado - no qual a cultura musical ocidental se encontraria presa. A dodecafonia ou o serialismo, considerados em geral como tão revolucionários e inovativos, não o seriam, uma vez que continuariam a partir do sistema temperado.

Os impulsos de Daniélou à área da Estética: Sémantique musicale e Cibernética

O pensamento e os estudos de Alain Daniélou marcaram nas suas dimensões mais amplas as reflexões que procuravam uma renovação da Estética na década de 1960.

A sua obra Sèrmantique musicale - Essai de psychophysiologie auditive, publicada em Paris, em 1967, foi um dos textos de base do Centro de Pesquisas em Musicologia da sociedade de estudos de processos culturais fundada em S. Paulo, em 1968, e que levou à criação de um Laboratório de Percepção e Sinestesia em 1970. (Veja)

Foi, a seguir, texto básico de cursos da área de Estética realizados em união pessoal com os de Etnomusicologia e Estruturação da Faculdade de Música e Educação Artística do IMSP. Ponto de partida das reflexões foi o do condicionamento histórico-cultural do pensamento científico que, nas diferentes épocas, trataram da questão da natureza da música e dos seus efeitos nos ouvintes.

A obra vinha de encontro à necessidade sentida de uma reorientação profunda dos estudos culturais e que exigia também uma renovação da Estética, área que, em particular na área da música, encontrava-se em estado altamente insatisfatório.

A obra de Daniélou prometia apresentar leis que, tendo em conta formas de percepção constatáveis na área musical, poderiam fornecer um ponto de partida para uma nova estética musical.  Seria necessário ultrapassar os limites da psicologia e da acústica para englobar o campo mais vasto da psico-acústica e da teoria da comunicação com os seus novos pontos de vista sobre a percepção e também de deuzir da Cibernética leis concernentes à eficácia e à função otimal nas reações do homem perante os fenômenos sonoros.

Daniélou baseava-se em experiência de muitos anos e de observação de constantes e conteúdos de linguagens musicais. Não saberia dizer se se tratadava de musicologia, de semântica musical, de psico-fisiologia ou outra área. A sua obra pertenceria à neurologia, à acústica ou à cibernetica.

Ela traria contribuições que podem ser utilizados em todas as ciências. Já de início lembrava palavras de Norbert Wiener (1894-1964 em sua obra Cibernética (Cybernetics, Paris: Hermann 1958). Nela, Wiener salientava o fato de que desenvolvimentos mais produtivos na área das ciências seriam aqueles que estariam entre as várias disciplinas estabelecidas. Haveria poucos pesquisadores que poderiam chamar-se exclusivamente de matemáticos, físicos ou biólogos. Ele teria o jargão da sua especialidade, conheceria a literatura, mas se interessaria por regiões do trabalho científico que são explorados por diferentes lados. Seria regiões limites da ciencia que ofereceriam as mais ricas oportunidades.

Concepção fundamental era aquela que o estabelecimento de todos os sistemas musicais  baseado na observação de certos fatos acústicos e psico-fisiológicos permitiam estabelecer o princípio de uma relação entre as relações de frequência, de timbres, de volumes e o mecanismo auio-mental pelo qual o homem percebe, classifica e interpreta os sons.

As diversas interpretações propostas para explicar os fenômenos musicais representariam tentativas de classificação lógica e de ensaios de sistematização de dados da experiência. Essas interpretações conduziram aos diferentes sistemas musicais e a teorias musicais por vezes contraditórias.  A sistematização referiram-se em princípios aos mesmos fenômenos, mas os interpretando diferentemente.

As classificações propostas influenciaram a criação artística, conduzindo a literaturas musicais muito diferentes pelo seu vocabulário, sua estética e suas possibilidades. Frases melódicas que seriam sensivelmente similares na sua forma exterior poderiam ter uma significação, um conteúdo expressivo e estético totalmente distinto.

As implicações pedagógicas da obra de Alain Daniélou tiveram consequências para iniciativas relativas ao ensino e à formação de professores no Brasil, em particular na área da Percepção Musical. (Veja)

(...)

De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.  Ocidente/Oriente. Visões históricas e sistemático-antropológicas - suas interações e a investigação de fundamentos. Alain Daniélou (1907-1994)  na sua recepção no Brasil “
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 165/2 (2017:1). http://revista.brasil-europa.eu/165/Alain_Danielou_e_Brasil.html



Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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