Linguagem visual do Hinduísmo e Antiguidade
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 165

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Karauli. Foto A.A.Bispo 2007. Copyright

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Karauli. Foto A.A.Bispo 2007. Copyright


India 2007. Fotos A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 


N° 165/11 (2017:1)

Karauli. Foto A.A.Bispo 2007. Copyright

Linguagem visual do Hinduísmo em leitura músico-antropológica
Relações e paralelos com a Antiguidade helênica
- inserções dos estudos em correntes históricas: colonialismo e Pós-Colonialismo -


2017-1967: 50 anos de Sémantique musicale de Alain Daniélou (1907-1994)
e 10 anos de ciclos de estudos euro-brasileiros na Índia pelo seu centenário - Karauli

 

O lançamento, há meio século, da Sémantique musicale do musicólogo, filósofo, pesquisador cultural e indólogo Alain Daniélou, merece ser lembrada com especial atenção em 2017 pela atualidade do complexo temático nela tratado e pela discussão que marcou as reflexões no âmbito dos estudos de processos culturais das últimas décadas, em particular daqueles desenvolvidos no âmbito da A.B.E. e do I.S.M.P.S.. (Veja)

O interesse por uma semântica musical que se constata no presente não pode esquecer essa já longa história do desenvolvimento do pensamento, do prosseguimento e diferenciação das reflexões, assim como dos resultados de estudos contextualizados empreendidos em diversas ocasiões.

A necessidade de trazê-los à memória e reconsiderá-los para uma inserção adequada das preocupações e iniciativas atuais no desenvolvimento histórico do pensamento marcado pela publicação da Sémantique musicale impôs-se, em 2016, pelo significado da exposição The Rama Epic do Asian Art Museum de San Francisco. (Veja)

Nos ciclos de estudos promovidos pela A.B.E. na costa do Pacífico dos Estados Unidos à luz de movimentos políticos e suas implicações teórico-culturais da atualidade, lembrou-se que também uma tomada de consciência do desenvolvimento do pensamento impulsionado pela Sémantique musicale pode servir como corretivo a tendências que prejudicam a cooperação intelectual e o bom procedimento nos meios universitários.

10 anos da sessão em Karauli (Rajasthan) pelo centenário de Alain Daniélou

Já na viagem de estudos promovida pela A.B.E. à Índia pelo centenário de nascimento do musicólogo, filósofo e indólogo Alain Daniélou, em 2007, lembrou-se de alguns aspectos da sua obra e do seu pensamento a partir do seu significado para o desenvolvimento do pensamento nos estudos culturais referenciados segundo o Brasil.

Essas reflexões foram conduzidas sob o signo de problemas que continuavam vigentes ou mesmo se acentuavam e que evidenciavam a relevância sob muitos aspectos dos estudos, colocações e aproximações de Alain Daniélou. Como alguns desses problemas até mesmo se agravam no presente, torna-se oportuno retomar alguns dos pontos então considerados.

Uma das sessões de 2007 foi realizada em Karauli, localidade do Rajasthan, no Estado de mesmo nome, de renome internacional pela riqueza de expressões musicais, danças, cortejos e concursos da festa Shivaratri, a "Noite de Shiva". Essa festividade, uma das mais importantes do Hinduísmo, surge como particular relevância para os estudos de tradições culturais da Índia, em particular musicais.

Um dos aspectos mais conhecidos desse período de festas é a feira de animais que ali se realiza em fins de fevereiro e início de março e que oferece uma oportunidade para observações das relações do homem com os outros seres viventes, de significado para o programa Cultura/Natureza da A.B.E.. (Veja)

Uma outra festa que caracteriza Karauli como cidade marcada pela religião e quase que santa é a do templo Kaila Devi à margem de um rio e dedicado a Krishna, protetor de Kaila, soberana divinizada de Karauli. A cidade, antiga localidade fortificada remontante ao ano de 1348, teria sido fundada pelo Raja Arjun Pal, sendo que os seus soberanos seriam descendentes de Krishna.

Sob o signo da história colonial, do Colonialismo e Pós-Colonialismo


A sessão de estudos de 2007 foi centralizada na Bhumenra Villa,  construída como residência real pelo Maharaja Ganesh em 1938, hoje hotel (Bhanwar Vilas Palast), edifício significativo como exemplo de arquitetura e modos de vida da Índia do período da Índia britânica.

Para estudos de relações euro-indianas, em particular indo-britânicas, do Colonialismo em geral e de interações culturais-artísticas entre o Ocidente e o Oriente, a residência oferece, no seu mobiliário, obras de arte, fotografias, utensílios e veículos vasto material documental.

Entre os objetos ali conservados, encontra-se considerável coleção de instrumentos musicais históricos, de importância pelo significado da música e da dança na vida festivo-religiosa de Karauli.

Esse significado a residência e dos materiais ali conservados para a história colonial indo-britânica e das relações culturais da Índia com o Ocidente favoreceu uma condução das reflexões sob o prisma do debate sobre o Pós-Colonialismo que marcou não só a literatura anglofone e francofone dos anos anteriores, mas sim também preocupações no âmbito dos estudos euro-brasileiros.
Os trabalhos de Karauli realizaram-se significativamente no contexto de seminários universitários sobre estudos coloniais, colonialismo e pós-colonialismo levados a efeito em universidades alemãs e efetuados em estreita colaboração com a A.B.E. e o I.S.M.P.S..
Estes seminários, por sua vez, tinham sido consequência da primeira sessão dedicada a questões relacionadas com esse debate sobre o conceito e perspectivas do Post-Colonialism no Brasil, realizada no âmbito do congresso internacional de encerramento do triênio pelos 500 anos do Brasil, em 2002.

Nessa sessão, procurara-se primordialmengte questionar visões dos estudos coloniais no Brasil à luz dessas novas tendências e aproximações. Se já há décadas criticava-se conceitos como o de música ou arte colonial por ser por demais orientados segundo periodizações da história política, preconizando-se um direcionamento da atenção a processos - ao colonialismo na sua processualidade - procurou-se, com essa sessão na abertura do século XXI, retomar essa revisão de conceitos sob novas perspectivas abertas por colocações até então sobretudo pertinentes à história colonial britânica mais recente e não àquela marcada pela história colonial da América Latina e do colonialismo ibérico.

A sessão de Karauli procurou aprofundar essas reflexões em ambiente favorável a estudos das relações em reciprocidade entre a história política, social, cultural e sobretudo intelectual da Índia com a Europa.

Neste sentido, o olhar foi voltado à recepção do pensamento indiano no Ocidente, sobretudo no século XX, a sua influência em correntes filosóficas e esotéricas, a sua difusão através de pensadores e artistas indianos que visitaram a Europa e de ocidentais que se dedicaram a estudos da Índia e que ali viveram.

Procurou-se, com esse procedimento, trazer à consciência as interrelações entre visões e correntes de pensamento no Ocidente e na Índia nas suas consequências para movimentos políticos, inclusive - o que surge por vezes como paradoxal - para a independência da Índia.

Com esse direcionamento das atenções, o debate sobre o post colonialism passou a ser conduzido a um nível mais abstrato e amplo da história das idéias, abrindo novas possibilidades para a sua consideração no âmbito dos estudos euro-brasileiros.

Desenvolvimento dos estudos orientais na Europa e a visão do Ocidente à distância

Justamente o centenário de Alain Daniélou constituiu momento favorável para essas reflexões, uma vez que lembrava o vulto de um estudioso francês de alta formação e inserido em correntes do pensamento ocidental no contexto histórico de uma Europa em crise que tinha vivenciado a Primeira Guerra Mundial, que, integrando-se no Hinduismo a ponto de tornar-se professor dedicado à valorização da antiga cultura indiana em época do movimento de emancipação política, demonstrava na sua própria vida as interrelações entre correntes e tendências na Europa e na Índia.

Neste sentido, também a orientação de seu pensamento, de suas investigações e de suas conclusões não poderia ser vista exclusivamente como resultado de conhecimentos obtidos da própria observação e vivência, de reconhecimento de fatos por assim dizer inerentes à cultura, mas sim como resultado de complexas interações de correntes do pensamento.

Como europeu fascinado pelo Oriente, inseriu-se em tradição que, na filosofia, na cultura, nas artes e sobretudo na procura de conhecimentos de cunho esotérico vivenciara uma intensificação no século XIX e nos anos que antecederam a Primeira Guerra, adquirindo novas características nos anos de entre-guerras.

Estudos religioso-comparativos: Índia e o estudo da Antiguidade greco-romana

Um dos aspectos desse processo particularmente considerado em Karauli foi o das relações entre esse orientalismo e as preocupações religioso-comparativas quanto aos fundamentos da cultura ocidental através de estudos aprofundados da mitologia, da filosofia e da cultura da Antiguidade helênica.

Daniélou demonstra a sua inserção nessa tradição de pensamento e estudos nas suas explicitas colocações e que o levaram à procura de paralelos, similaridades e mesmo a identificações de concepções e imagens hindús com aquelas da Antiguidade greco-romana.

Foi justamente sob este aspecto que discutiu-se em Karauli os resultados de estudos de Daniélou. Se o indólogo inserira-se em correntes do pensamento que já há muito eram voltadas aos estudos da Antiguidade, da mitologia greco-romana e, em geral, de religiões, esses estudos não tiveram o seu fim à época da sua formação, mas tiveram o seu prosseguimento até o presente.

Vários foram as personalidades e as instituições que se dedicaram e se dedicam a esses estudos de fundamentos, salientando-se o instituto alemão de estudos de relações entre a Antiguidade e o Cristianismo.

Diferenciação de estudos de Daniélou a partir de perspectivas brasileiras

Sobretudo as investigações de edifício cultural de concepções e imagens de remotas proveniências do hemisfério norte transplantado para as regiões extra-européias à época dos Descobrimentos desenvolvidas no âmbito da A.B.E. e do I.S.M.P.S. possibilitaram novos conhecimentos e abriram perspectivas para uma contínua diferenciação e aprofundamento das análises.

Esses conhecimentos já obtidos e os trabalhos em andamento, considerados em publicações e eventos, traziam à luz a necessidade de diferenciações atualizadoras de colocações de Daniélou.

Uma necessária atualização dos estudos pareceu ser necessária sobretudo nas suas conclusões relativas a Shiva. A relevância especial desses intentos de revisão explica-se pelo fato de tratar-se aqui de concepções e imagens de fundamental significado no pensamento e na obra de Daniélou, bastando lembrar-se que tornou-se adepto do Shivaismo, cujas concepções estudou e enalteceu pela sua profundidade, tendo investigado suas relações com aquelas da Antiguidade greco-romana .

Relembrou-se que já à época em que obras de Daniélou passaram a ser estudadas e exercer influência no movimento de renovação cultural originado em São Paulo, em fins da década de 1960 e início dos anos de 1970, Shiva chegou a tornar-se sinal emblemático de um estado de espírito entre músicos atuantes na organização de estudos de processos culturais então fundada. 

Como a antiga mitologia e em geral as relações Antiguidade-Cristianismo desempenharam importante papel nos estudos da linguagem de imagens nos estudos de fundamentos de expressões culturais transmitidas e mantidas vivas no Brasil, impunha-se a reconsideração dos resultados de pesquisas de Daniélou.

Partindo da leitura da linguagem visual de imagens - aproximações quanto a sentidos

Nas reflexões concernentes à revisão e atualização de colocações de Daniélou a partir dos resultados mais recentes de análises do edíficio imagológico em Karauli partiu-se da leitura visual de suas imagens e suas possíveis interpretações. As reflexões foram acompanhadas por referências históricas de europeus, sobretudo da literatura de viagens portuguesas e missionária que se surpreenderam e mesmo se indignaram com a não compreendida linguagem visual de divindades indianas.

Considerou-se, em primeiro lugar, o sinal que indica uma concepção do homem e que adquiria - e ainda adquire - significado atual no presente.

Imagens de Shiva apresentam-no como um homem com olhos semicerrados, que nem são abertos totalmente para o mundo das aparências, nem são para êle totalmente fechados. Pode ser entendido assim como o modêlo daqueles cuja consciência é ancorada no mundo interior mas que continua fisicamente ligado ao mundo exterior, não o tendo de todo abandonado.

É a partir desse ancoramento interno que o mundo percebido pelos sentidos é visto e vivenciado. Não é um eremita ou morto para o mundo, nem totalmente governado por aquilo que capta do mundo externo. Não cai, assim, em dependência do que percebe e nem é dominado por impulsos, desejos físicos, emoções e ambições derivadas da supremacia do ego.

Êle possui três olhos, sendo o terceiro, entre e acima dos dois olhos do corpo, aquele que indica o órgão do saber e da sabedoria, que enxerga uma outra realidade daquela percebida pelos olhos terrenos. Tem relações com concepções de luz, pois os olhos físicos são relacionados com as luzes de conhecimentos da noite e do dia, e assim com a lua e o sol.

Sinais de significado para a leitura de sentidos simbólico-antropológicos são aqueles que indicam o homem que é iluminado nas trevas, ou seja iluminado pela luz do conhecimento que afasta a ignorância na escuridão da existência na realidade exterior percebida pelos sentidos e que leva a dependências, ao domínio de desejos e à supremacia de ego. Esse homem é regido pela lua - não é a lua - e, significativamente, o luminar da noite é representada na coroa da imagem. Esse homem é iluminado tal como a brancura da pele da imagem e que não pode ser entendida evidentemente no sentido racial ou étnico.

Ele não se veste, mas se desveste das peles animais que o cobrem, na linguagem visual a do tigre e do elefante, surgindo como homem que controla ou se liberta de impulsos associados com essas imagens, seja aqueles do fogo na cólera, agressividade e auto-engrandecimento de ego, seja aqueles da terra. Sobretudo os elos com a água da linguagem visual merecem particular atenção. Esse significado revela-se no rio que nasce nas alturas, na fonte ao alto da cabeça da imagem e que, em grande aro, corre para baixo.

A linguagem visual indica assim relações com concepções de água corrente de fontes, com água nas alturas e com o grande rio que corre aos mares. É nessas relações com a água que deve ser considerada também a regência da lua na coroa da imagem.

Os seus quatro braços - que tanto surpreenderam observadores europeus e missionários do passado - podem ser lidos à luz de concepções numéricas relacionadas com o número quatro, entre as quais se encontram os quatro elementos da matéria, ou seja, o mundo espacio-temporal da existencia terrena. Neste sentido, adquirem significado para a compreensão mais aprofundada da linguagem simbólica os atributos que trazem.

O tridente e o tambor que traz nas mãos direitas revelam associações que tornam Shiva de grande significado para estudos músico-antropológicos. Devem ser vistos em contexto com as posições das mãos do seu lado esquerdo, que simbolizam a sua função de proteção e benfeitor.

Já como salientado no uso de representações de Shiva no Brasil ao redor de 1970, uma atenção especial deve ser dado ao tridente (Trishula). Uma consideração mais aprofundada desse sinal supera uma suposta e inicialmente incompreensível incoerência em concepções de Shiva como destruidor e protetor.

Como instrumento de morte, pode ser lido no sentido mais profundo da morte ou destruição do ego. As suas três pontas significam a destruição dos três ímpetos de desejos do ego, aqueles do corpo, da esfera das emoções e do intelecto, ou seja, do corpo, da alma e do espírito em linguagem ocidental. Com isso, Shiva surge ao mesmo tempo como destruidor - no sentido de vencedor sobre o ego e guia do homem a caminho de seu aperfeiçoamento. A imagem da caveira no seu colar ou a cinza no seu corpo indicam essa função de senhor da destruição assim compreendida.

O tridente, surgindo na linguagem conhecida na linguagem mitológica ocidental netúnica como instrumento de pesca, favorece a sua compreensão no sentido mais amplo daquele de um "pescador de homens", o que facilita a compreensão européia marcada pela linguagem bíblica da função dos apóstolos.

As pontas relacionam-se ao mesmo tempo com destruição e renovação ou regeneração em complexas interações de pureza, atividade e adormecimento ou imobilidade: controle purificador de impulsos do corpo, ativação da alma através de afetos e emoções e superação ou "morte" do intelecto na sua supremacia, o que indica o significado dado ao emocional, que é ativado, ao contrário da esfera intelectual. Projetado para a dimensão cósmica, seria justamente nessa esfera que se revela a destruição, enquando que as demais indicariam respectivamente a criação e a conservação.

Significado musicológico da imagem segundo estudos de Daniélou: o tambor

Sob o ponto de vista dos estudos musicológicos, a maior atenção deve ser dada ao tambor como símbolo na mão direita de Shiva na linguagem visual. Os seus significados, estreitamente relacionados entre si, para serem compreendidos, devem ser considerados no contexto do sistema mais amplo de concepções, como estudado por Daniélou. Derivam de mecanismos mentais e psico-físicos relacionados com a percepção sonora. (Veja)

Assim, o instrumento na mão de Shiva relaciona-se com o som e com a linguagem, fazendo com que a divindade surja como de central significado tanto para as artes como para as ciências. Estas ter-se-iam dele originado da vontade divina, representando uma espécie de ludus divino. Êle é aquele que após criar o instrumento e tocá-lo, dança a dança do universo.

Como expõe na sua Sèmantique musicale a partir de sua própria experiência, o músico tateia inicialmente na sua execução até descobrir o conteúdo emocional do modo ou da configuração rítmica, nele entrar ou compenetrar-se.

A sua música então faz com que ressoe em sintonia o interior do ouvinte; agindo na sua esfera emocional, desencadeia um processo mental e psiquico-fisiológico segundo leis de simpatia. Este mesmo fenômeno acústico no microcosmos do interior do homem coloca-o em vibração por simpatia com similares relações numéricas macrocósmicas. (Veja)

Se o instrumento considerado por Daniélou foi um de corda - por explicar questões da percepção de modo e seu conteúdo - um instrumento de percussão surge como ainda mais adequado para explicar o significado das relações numéricas.

Esse mecanismo entre o músico que "descobre" o instrumento ao investigar o seu íntimo no modo e o passa ao ouvinte indica a sua função mediadora. Aquele que o recebe e passa a tocar por simpatia o instrumento no seu íntimo ilumina-se, o seu corpo purifica-se, a sua esfera emocional é ativada, o seu intelecto adormecido, superando os ímpetos do seu ego.

Questionamento e discussão de relações com a Antiguidade greco-romana

Como acima mencionado, um dos principais aspectos discutidos nos estudos euro-brasileiros de Karauli em 2007 disse respeito às relações entre as concepções indianas e aquelas da Antiguidade greco-romana como estudadas por Daniélou.

Esse seu intento de análise e revelação de elos comuns indicadores de um sistema de idéias cosmológicas de antiga proveniência apesar das diferenças nas suas múltiplas contextualizações de espaço e tempo vinha de encontro não só a preocupações já de muitas décadas de eruditos do Ocidente como também às análises mais recentes do edifício de concepções e imagens desenvolvidas sob a perspectiva dos estudos de processos culturais em relações internacionais referenciadas segundo o Brasil.

As colocações do indólogo, em especial aquelas concernentes a Shiva, levantavam questões e apresentavam problemas à luz dos resultados das pesquisas imagológicas mais recentes a partir de estudos de processos no contexto Antiguidade/Cristianismo.

A aproximação de Shiva a Dionísio de Daniélou, em particular, surge como altamente questionável, necessitando reconsiderações fundamentais e mesmo refutação. Sob muitos aspectos, uma tal aproximação com a divindade apresenta-se como até mesmo oposta às concepções relacionadas com Shiva.

O entusiasmo das bacantes, ou daquelas tomadas ou possuídas pela divindade segundo as referências da Antiguidade não podem ser comparadas com o estado mental e psiquico-fisiológico iluminado daquele que, ressoando, tem o seu mundo interior emocional e afetivo ativado, purificando o seu corpo através do controle dos seus ímpetos e superando as ambições do seu ego.

Pelo contrário, as fontes contam que as tomadas por Dionísio caiam em estado orgiástico marcados pelo desejo de carne e sangue e no qual dilaceravam e comiam animais vivos. Nada surge nos dados transmitidos como indicadores de superação de extrapolações de ego - pelo contrário, indicam uma imagem do homem possesso em ambição desmedida e impulsos sem controles.

A linguagem visual caracteriza-se por referências e associações com a carne, com a matéria, com um cair fora de si no deixar-se levar pelos seus ímpetos. Indica relações entre uma realidade existencial, com a terra e o mundo exterior percebido pelos sentidos nas suas relações com a época mais tenebrosa do ciclo do ano, aquela das noites mais escuras do hemisfério norte, na qual, porém, se processa a mudança do solstício e que dá início ao movimento ascendente.

Seria nesse homem possesso, terreno, marcado pela supremacia do ego que tem início  o processo fisiológico-psíquico e mental que o leva à ascendência interior em crescente iluminação,  numa vibração em ressonância sob a ação daquele que ilumina. Neste sentido, ou seja num posicionamento da análise a partir do recepiente, poder-se-ia falar de uma materialização ou encarnação daquele que emite, justificando, apenas neste sentido, a aproximação feita por Daniélou. Uma maior diferenciação de imagens-tipos deve ser assim considerada, não confundindo-se aquela guia do homem possesso terreno e carnal, voltado ao mundo dos sentidos e dominado pelo ego, com aquela passível de ser lida nas representações de Shiva.

A leitura dessas representações visuais indicam outras relações cosmológicas e com o mundo natural. Como mencionado, o rio que nasce de sua cabeça e que corre descendo (Ganges) indica as relações da imagem com a água nas alturas, a lua na sua coroa o luminar que clareia as noites como o seu regente, a luminosidade de sua pele os dias mais claros do ano, aquela marcada pelo solstício de verão do hemisfério norte.

Trata-se assim, de indicadores de um mês do ano ou de um trecho do Zodíaco no qual cultuava-se Hermes/Mercúrio no calendário agrícola da Antiguidade, a divindade que, na tradição mitológica, foi aquela que inventou a lira, matando uma tartaruga, vibrando os nervos de seu interior purificado e fazendo-a dançar.

É essa imagem que, nas leituras das imagens celestiais segundo a tradição bíblica, foi interpretado como tipo de David em tentativas de cristianização do céu e de suas constelações do passado. Também este rei de Israel foi o músico por excelência, aquele que tratou do rei Saul possesso por espírito maligno. (a respeito: A.A.Bispo,Typus und Anti-Typus: Analyse symbolischer Konfigurationen und Mechanismen zur Erschliessung neuer komparatistischer Grundlagen für den interreligiösen Dialog und den Dialog der Kulturen. Colonia: I.S.M.P.S., 2003)

O alto significado dessas relações evidencia-se no fato de ser David tipo de Cristo na hermenêutica de antiga proveniência. É essa relação que primordialmente justifica a noção de Cristo como cantor ou músico, como manifestada na expressão patrística de "Christus cantat in Ecclesia", moto do Congresso Internacional de Música Sacra levado a efeito em Roma, em 1985 e no qual o Brasil desempenhou significativo papel. (A.A.Bispo, "Etudes ethno-musicologiques/ Musikethnologische Studien", Liber Annuarius - 1986 - Jahrbuch: Christus in Ecclesia Cantat (VIII Conventus Internationalis Musicae Sacrae Romae Anno Musicae Europaeo 1985,  Roma: Consociatio Internationalis Musicae Sacrae 1986, 297-303).

De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.).  "Linguagem visual do Hinduísmo em leitura músico-antropológica. Relações e paralelos com a Antiguidade helênica - inserções dos estudos em correntes históricas: colonialismo e Pós-Colonialismo -“. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 165/11 (2016:06).
http://revista.brasil-europa.eu/165/Hinduismo_e_Antiguidade.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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