Percepção de conteúdos e processos mentais
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 165

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Los Angeles. Foto A.A.Bispo 2016. Copyright

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Foto A.A.Bispo 2016©Arquivo A.B.E.

 


N° 165/5 (2017:1)



Percepção de conteúdos e processos mentais
nas suas dimensões arquitetônico-urbanísticas e músico-antropológicas
Retomando reflexões da época da publicação da Sémantique musicale de Alain Daniélou (1967) II


2017-1967: 50 anos de Sémantique musicale de Alain Daniélou (1907-1994)
e 10 anos de ciclos de estudos euro-brasileiros na Índia pelo seu centenário

 

O Walt Disney Concert Hall em Los Angeles, uma das mais destacadas obras da arquitetura de salas de concerto das últimas décadas, foi revisitado no âmbito do ciclo de estudos promovido pela A.B.E. na Califórnia em 2016. Esse empreendimento foi motivado por desenvolvimentos e acontecimentos políticos da atualidade e que levantam múltiplas questões teórico-culturais. (Veja)

Constituindo a obra do arquiteto Frank Gehry uma das mais bem sucedidas realizações arquitetônicas sob o ponto de vista da acústica, questões concernentes às relações entre a física e a acústica arquitetônica, a tonometria, a percepção e suas ações em processos físico-psiquicos e mentais estiveram no centro das atenções. (Veja)

Los Angeles. Foto A.A.Bispo 2016. Copyright

O Concert Hall distingue-se pela sua configuração arquitetônica, que o torna marco emblemático do centro de Los Angeles, diferenciando-o pela sua estética das demais construções que o rodeiam, algumas delas também demonstrativas de concepções arrojadas.

Los Angeles. Foto A.A.Bispo 2016. Copyright
O Concert Hall nos altos do Bunker Hill estabelece um contraste com arranha-céus marcados por concepções retilíneas e geométricas, evidentes na sua lógica construtiva, opondo-se sobretudo com o mais antigo centro musical adjacente e forum musical, exemplo de projeto funcional e convencional na sua estética.

O Concert Hall - como outras salas de concertos de arquitetura avançada em outras cidades do presente - desempenha um papel urbanístico ou urbanológico. Estabelece um acento por assim dizer redefinidor do centro da metrópole, um foco de natureza poético-emocional que transforma a sua vivência e imagem como cidade marcada pela racionalidade e pragmatismo. O Concert Hall surge assim como obra plástica que favorece reflexões e estudos de uma "Poética da Urbanidade" como desenvolvido pela A.B.E.. (Veja)

O edifício é em geral qualificado como exemplo de deconstrutivismo, mas a sua consideração não pode restringir-se a essa categorização lapidar, exigindo ser lido nos seus sentidos e intenções programáticas. Não se trata aqui obviamente de interpretação hermenêutica arbitrária ou de projeções poético-literárias, mas sim de reconhecimento e análise de conteúdos que seriam intrínsecos à obra, fundamentados em concepções e imagens condutoras do projeto.

Uma  das associações que desperta a contemplação da obra escultural de Gehry é aquela com a imagem de uma nave de velas ao vento. Há, porém, outro sentido imagológico que merece ser considerado com mais atenção, também nas suas interações com outras associações que se levantam.

A rosa azul no jardim do Walt Disney Concert Hall - A Tribute to Lilian (Disney)

Um visita à parte dianteira do Concert Hall abre ao observador perspectivas de início insuspeitadas de leitura. Ali êle se depara com uma grande rosa azul, uma plástica de grandes dimensões.

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A contemplação dessa rosa abre os olhos para uma visão do Concert Hall como imensa rosa, ou seja,o observador passa a perceber um sentido que explica a configuração arquitetônica, até então vista antes como expressão mais ou menos arbitrária, ainda que altamente bem sucedida, da capacidade criativa de arquiteto.

Qual a razão de uma possível escolha da rosa azul como imagem inspiradora ou impulsionadora do processo criativo surge como questão que leva à história do projeto e de sua concretização. Ela traz à memória o papel desempenhado por Lilian Disney, a viúva de Walt Disney, que, como mecenas, contribuiu com grande soma à realização da sala de concertos segundo o projeto vencedor do arquiteto em concurso de 1988. O fascínio de Lilian Disney por jardinagem e por porcelana de Delft elucida a presença da grande rosa em seu tributo no jardim de pausas de concertos: assim como a porcelana de Delft em branco e azul, a escultura é revestida de fragmentos de porcelana.

Essa relação do projeto com a jardinagem e a porcelana holandesa é mais do que uma expressão de preito a mecenas. Ela traz à lembrança desenvolvimentos de séculos passados do norte da Europa marcados pelo interesse por questões histórico-naturais, em particular de ervas e flores, de tanto significado para os Países Baixos e para a Dinamarca. (Veja) O estudioso brasileiro não pode deixar de recordar-se do papel desempenhado pelo Brasil nesse desenvolvimento das relações entre a História Natural e as artes e a cultura dos séculos XVII e XVIII. (Veja)

O observador, de início, não indaga essas razões, o porquê da escolha da imagem e nem possui em geral elementos informativos para tal. Múltiplas associações vêm-lhe à mente ao contemplar a rosa, em particular aquelas relacionadas com o amor, uma constante na linguagem simbólica dessa flor através dos séculos. (Veja) Considerando o acento que traz o edifício no conjunto urbano do downtown de Los Angeles, percebe que esse significado da imagem da rosa adquire um sentido de coração do corpo urbano, nele implantando poéticamente um órgão de vida e calor.

O desabrochar das pétalas - música na arquitetura e arquitetura musical

O visitante, tendo conhecimento do papel exercido pela imagem da rosa da escultura em tributo a Lilian Disney, deixa-se sobretudo levar pelo sentido que passa a reconhecr no edifício, a participar, ao percorrê-lo, no movimento de desabrochar das pétalas.

Essa experiência, que abre perspectivas para múltiplas reflexões e conjecturas estéticas, traz à memória questões que foram alvo de preocupações já no início do movimento iniciado nos anos de 1960 em São Paulo e que determinou o desenvolvimento do pensamento e muitas iniciativas em décadas posteriores.

A participação no desabrochar das pétalas ao percorrer-se o edifício favorece uma percepção do espaço na sua processualidade, ultrapassando a acepção de uma estaticidade da arquitetura como "arte do espaço." Música e arquitetura se interrelacionam: se ao escutar a música aquele que ouve percebe o desenrolar sonoro da música como "arte do tempo" - ou seja, permanece parado enquanto que a música flui -, na arquitetura é o receptor que se movimenta no espaço, sendo que a obra permanece parada. No caso do Concert Hall, porém, essas relações tornam-se mais complexas.

O desabrochar da rosa, que decorre no tempo e assim oferece uma similaridade com o desenrolar temporal da música transforma-se em grande escultura, e assim também a música transforma-se em obra plástica. O edifício adquire o cunho de uma imagem de um processo transformatório que se desencadeia no homem que ouve e que é imbuído de afeto e emoções. Aquele que percorre o edifício percebe visualmente uma imagem de um homem transformado interiormente pelo que ouve e o edifício adquire um sentido simbólico-antropológico.

Percepção e processo mental - a Sémantique musicale

O direcionamento da atenção a processos constituiu uma das preocupações fundamentais do movimento de renovação teórico-cultural da década de 1960 e que teve a sua continuidade nas décadas seguintes. Não apenas processos históricos, sociais, políticos, econômicos e outros no concernente ao objeto de estudos, mas sim também aqueles nos quais se insere a própria pesquisa, pesquisadores e correntes de pensamento constituiram sempre objeto de observações, análises e reflexões.

Essa orientação levantou desde cedo a questão de processos mentais envolvidos na percepção de fatos, seus condicionamentos e suas consequências. Diferentes foram as aproximações no tratamento dessa questão, uma delas, porém, merece ser recordada por tematizar com maior evidência condicionamentos culturais de processos perceptivos, de mecanismos mentais, suas implicações e efeitos.

Trata-se aqui da aproximação ao problema da percepção e do processo mental a partir de uma perspectiva conduzida a partir da música exposta na Sémantique musicale de Alain Daniélou (1907-1994), obra que, desde a sua publicação há meio século em Paris, exerceu considerável influência no Brasil. (Sémantique musicale: Essai de psychophysiologie auditive, Paris 1967)

Foi um dos textos de base do Centro de Pesquisas em Musicologia criado na organização de estudos de processos culturais constituída como sociedade em 1968 e que foi a primeira instituição explicitamente marcada por uma concepção de musicologia de orientação cultural ou culturológica que hoje surge para muitos como sendo quase de consenso geral.

Para que o seu desenvolvimento não seja enquadrado indevidamente em correntes e contextos inadequados e apropriado indevidamente no seu desenvolvimento por indivíduos e instituições - o que infelizmente se registra - , torna-se oportuno recordar alguns dos principais momentos da sua gênese no Brasil e que posteriormente forneceu impulsos a reflexões e mesmo a nem sempre fácil mudanças de orientações na Europa.

Percepção de dados abstratos - dificuldades de procedimentos racionalizadores

Compreensivelmente, a problemática das relações entre percepção e processos mentais tematizada por Daniélou teve as suas repercussões sobretudo em cursos de Percepção instituídos em fins da década de 1960 em São Paulo. Esses cursos - nos casos do uso mais adequado do termo - substituiram não apenas do ponto de vista terminológico cursos de formação auditiva e rítmica, assim como de formação de professores na área.

Uma das principais críticas que se faziam a antigos métodos do ensino da leitura musical na tradição do ensino do solfejo era a de que esta era por demais pela leitura da notação e verbalizada, capacitando por um lado a leitura de partituras por parte de instrumentistas, mas sendo por outro a-musical no sentido de que os assim formados em geral não sabiam discernir auditivamente intervalos e configurações melódicas, rítmicas e harmonicas, não sendo também capazes de entoá-los. (Veja)

O empenho de superação dessas deficiências levou naqueles anos à mudança radical de métodos de ensino na formação auditiva, rítmica e de treinamento de músicos e professores. O acento passou a ser dado à percepção de intervalos e relações intervalares, a seu reconhecimento e classificação mental, à sua entoação, assim como à percepção e execução de rítmos e configurações rítmicas.

Em esforços de procedimento racional no ensino, passou-se ao emprêgo de exercícios sistematicamente organizados e que deviam até mesmo esgotar capacidades combinatórias de relações intervalares, rítmicas e métricas. Apesar de todo o empenho de procedimento sistemático no treinamento de aptidões perceptivas auditivas, rimiticas e de entoação e reprodução, constatava-se em muitos casos resultados deficientes e fracassos no alcance dos objetivos do ensino.

A inaptidão perceptiva não superada tinha consequências tanto para a prática musical como para os estudos músico-culturais nos seus diferentes aspectos. Assim, colocava dificuldades à percepção e à notação de dados musicais alcançados empiricamente, sobretudo no âmbito do Folclore e a seguir na área então introduzida da Etnomusicologia, com consequências para análises e, assim, para o estudo da Estruturação Musical. Foram, porém, justamente essas relações interdisciplinares que favoreceram uma modificação de concepções e procedimentos quanto à compreensão e ao ensino da Percepção.

O mecanismo perceptivo - o reconhecimento de conteúdos e reações emotivas

Os principais impulsos para o esclarecimento dos problemas constatados partiram do capítulo "Les données et leur interprétation" da Sémantique musicale (Sémantique musicale: Essai de psychophysiologie auditive, Paris: Hermann 1967, pág.17 ss.). Daniélou tematiza explicitamente a insuficiência de resultados de experiências musicais que partem de relações abstratas estabelecidas racionalmente ou sistematicamente.

A razão desses fracassos residiria no fato de que esse procedimento não corresponderia ao mecanismo perceptivo. O reconhecimento e a classificação mental de configurações sonoras e rítmicas abstratas permanecem rudimentares, pois a classificação a que obedecem seriam abstratas, permanecendo exteriores ao processo mental no interior do homem.

Esse mecanismo mental de classificação de sons e rítmos somente funcionaria se os dados percebidos possuissem um conteúdo, ou seja, se sugerissem sentidos do ponto de vista de sentimentos, de emoções e de idéias. Nessa colocação, Daniélou distancia-se assim explicitamente de uma tradição teórica que foi durante séculos, vinculada a experiências acústicas em cordas vibrantes, praticadas sobretudo com o uso do monocórdio.

A maior parte das sistematizações antigas ignoraram o fato das reações emotivas, pois, após a antiguidade, os físicos qu procuraram estabelecer a natureza das escalas musicais basearam-se sobre a observação de fenômenos sonoros sem ter em conta o seu conteúdo. Partindo de medições incompletas, feitas sobre cordas soltas, os físicos procuraram estabelecer divisões teóricas da escala sonora que apenas correspondem aproximativamente aos dados psico-fisiológicos da linguagem musical.

Já na antiga Grécia teriam os físicos criticado os músicos que não afinavam os seus instrumentos segundo os principios de Pitágoras. Segundo Daniélou, não se teria pensado na possibilidade de que a escala de Pitágoras pudesser ser errônia ou insuficiente. O mesmo ter-se-ia dado em sistemas e afinação e de valores de intervalos propostos por teóricos de diferentes culturas ou épocas. Para Daniélou, a dodecafonia temperada, assim como a música de quartos de tons, de terços de tons, etc. seriam aberrações e isso em século no qual a psicologia, a patologia e o estudo do cérebro deveriam ter permitido reflexões sobre o mecanismo pelo qual o homem percebe os sons.

Conhecimentos obtidos da vivência e da experiência da música indiana

Criticando e distanciando-se da tradição ocidental do monocórdio ou de procedimentos similares, Daniélou manifestava resultados de pesquisas que alcançara na sua própria experiência cultural como indólogo e executante de instrumentos musicais indianos.

Tendo vivenciado frequentemente a execução de modos ou ragas na Índia, constatara que, no início, o instrumentista toca de memória algumas notas mais caracterizadoras teoricamente do modo. Isso é feito inicialmente de forma muito aproximada. Somente após algum tempo é que o instrumentista imerge na esfera de sentidos do modo, sendo tomado por correspondentes sentimentos. A sua execução transforma-se gradativamente, e cada nota passa a tomar uma cor expressiva. Cada vez mais, o músico passa a tocar com sentimento e emoção. Os intervalos adquirem maior precisão, e qualquer deslize, que teria passado despercebido de início, passa a ser ouvido como êrro ou prova de pouco entendimento.

Essa constatação tinha, para o indólogo, grande relevância sob o ponto de vista da pesquisa musical empírica, das análises e das conclusões teóricas. Se o pesquisador pedisse a um cantor ou instrumentista para tocar as notas de um modo de forma descontextualizada, esse o faria de forma muito aproximada, e as constatações pouco valor teriam, pois poderiam ser  modificadas consideravelmente em outra situação. Se, porém, as análises e as medições fossem feitas a partir de uma gravação de execução na qual o músico já se encontre emocionalmente compromissado, os resultados seriam precisos e sempre idênticos.

O mecanismo mental seria dirigido à análise e à comparação de informações úteis, sensações, emoções, idéias, delas retirando diretivas de ação.

Como Daniélou salienta, essas características cerebrais tornam-se evidentes na audição. Se o ouvinte apenas percebe sons isolados, desprovidos de sentido, apenas pode estabelecer diferenciações rudimentares e imprecisas. Se, ao contrário, ouve os mesmos sons ou rítmos num contexto inteligível, passa a perceber os menores pormenores. Dando um exemplo da lingua falada, Daniélou lembra que se pode reconhecer o sotaque de um estrangeiro, embora não se possa bem definir e localizar a variação ínfima de acentuação de sílabas. Também na linguagem musical, sons isolados podem ser mal diferenciados e as pequenas diferenças entre intervalos executados fora de contexto parecem insignificantes e mesmo imperceptíveis.

A notação e a inversão do processo mental

Essas colocações relativas à percepção e a processos mentais de Daniélou tiveram sobretudo consequências para a consideração da notação e da grafia em geral, assim como para a análise nas reflexões encetadas no Brasil e que tiveram continuidade na Europa. Uma notação que levasse em conta aspectos de sentidos e conteúdos seria muito mais sutil e complexa para ter um uso prático. Por isso toda a notação é esquemática e exige uma interpretação baseada numa tradição oral.

A leitura de uma partitura possibilita que se reconheça estruturas e elementos exteriormente, ou seja, antes de que se perceba sentidos. Assim a notação inverte, segundo Daniélou, o processo mental, dele tirando certas características. A composição, a gramática por assim dizer da música torna-se predominante, e os dados que indicam sentidos tornam-se secundários. Correspondentemente, o processo mental do intérprete é inverso àquele do compositor.

A música escrita diferencia-se daquela não-escrita, onde o conteúdo precede ao reconhecimento de forma e onde o sentimento, assim como o sentido interior do rítmo precedem a verbalização.  Os meios de observação que podem dar elementos que permitam explicar a realidade audio-mental da música, sua função como linguagem expressiva e viva, não podem, segundo Daniélou, basear-se na forma escrita.  Sabe-se que um discurso que deve comover a assistencia não pode ser um discurso lido.

Daniélou lembrava que mesmo no Ociente, onde a música tornou-se pouco a pouco essencialmente escrita, constatar-se-ia a necessidade de se tomar consciência dos limites do anotado. Assim, o jazz perde a sua vitalidade expressiva e rítmica quando é escrito em pormenores e tocado a partir do anotado. Certos elementos fundamentais da música não podem ser escritos ou reproduzidos através do grafado e a sua escrita até mesmo os esteriliza.

Música e arte oratória - a vivência do rítmo e a coerência do jogo mental na improvisação

O papel do impulso interior na improvisação é evidente para a rítmica. A rítmica nascida de um impulso interior ela deve ser vivida, sentida, caso contrário permanece imprecisa e ineficaz. A improvisão, que teria similaridades com a arte oratória, apela a um mecanismo cerebral e motor particular.

Ela se desenvolve, na argumentação de Daniélou, apenas pela justaposição de três contextos mentais definidos. Um é o estabelecimento de um vocabulário determinado, de um agrupamento de palavras melódicas ou harmonicas correspondentes a uma idéia, a um estado emocional determinado. É a escala do modo, o raga da música hindu. O segundo quadro seria o métrico e rítmico e o terceiro seria uma forma de composição, um plano de desenvolvimento do tema que será improvisado. Assim que o músico possui os três elementos, deixa fluir a sua fantasia ou imaginação.

Neste sentido, o músico que improvisa usa de elementos programados, os expõe, os acentua, os mascara, os desenvolve com toda a liberdade, como o orador que domina o seu sujeito, que sabe bem o que quer dizer, encontra imagens, formas, sutilezas, contrastes para expor o seu tema de maneira convincente. Assim como na linguagem, a estocástica não desempenharia nenhum papel nos processos, sempre renovados, sempre inesperados.

A menor dissonância, a menor nota fora do contexto surge como sendo absurda, incoerente, pois o jogo mental é coerente. É por essa razão que uma das características da grande música improvisada iraniana ou hindú seria para Daniélou a extrema precisão dos intervalos. O músico procura a "palavra" justa, e essa corresponde sempre a intervalos precisos. O mesmo vale para a improvisação rítmica, onde o quadro geral é de uma exatidão absoluta.

A continuidade da discussão na Europa - a problemática da "transcrição"

A discussão impulsionada pelas considerações de Daniélou tiveram consequências mais diretas no tratamento de problemas constatados em intentos de fixação escrita de música ouvida ou gravada em pesquisas de campo ou em apresentações musicais ao vivo em geral.

Como debatido na Associação Brasileira de Folclore e no Centro de Pesquisas em Musicologia, a sempre lamentada insuficiência de registros anotados de música de tradições orais não poderia ser superada exclusivamente através de uma maior acuidade na audição e na grafia. 

Ainda com maior intensidade colocava-se o problema do registro grafado no caso de culturas musicais indígenas ou daquelas de um complexo afro-brasileiro como tratado no curso de Etnomusicologia então implatado no Brasil.

Um momento particularmente importante nessa discussão deu-se em Salvador, quando, juntamente com professores da Universidade Federal da Bahia, tratou-se de problemas de grafia de expressões como o do Maculelê, em pesquisa em Santo Amaro da Purificação, em 1970, ou de práticas de culto de candomblé.

Nesses debates, reconheceu-se o significado crucial de uma distinção a ser feita no concernente às relações entre a percepção e mecanismos mentais.

Tomou-se consciência da complexidade das reflexões, dos riscos em argumentações - inclusive naquelas de Daniélou - e as graves consequências que poderiam trazer, sobretudo se passassem a tornar-se ideologias. Reconheceu-se que a análise e a consideração de sentidos e conteúdos deve pressupor o conhecimento diferenciado do edifício cultural, de concepções e imagens no qual se insere e se justifica a estruturação musical.

O etnomusicólogo que parta de análises musicais sem compreender adequadamente o sistema cultural de concepções e imagens, chega a êrros de interpretação apesar de toda a acuidade, precisão e virtuosidade no tratamento de questões de notação e de argumentação, com graves consequências decorrentes desse procedimento para o conhecimento e o processo esclarecedor.

Seria um grave êrro tirar conclusões a respeito de sentidos intrínsecos ao sistema cultural a partir de análises de configurações sonoras e rítmicas não relativadas como elementos de um edifício cultural, uma vez que estas poderiam corresponder a mecanismos outros àqueles intendidos, por exemplo a anti-tipos em representações lúdicas que se referenciam segundo tipos.

Essa discussão teve continuidade, a partir de meados da década de 19709, com etnomusicólogos europeus, em particular alemães, em particular no âmbito de cursos de "Transkription", ou seja de exercícios de notação gráfica em cursos de Etnomusicologia.

Desconhecendo absolutamente as características tipológico-antitipológicas do edifício cultural, faltavam a esses etnomusicólogos - mesmo àqueles especializados em música da Índia - pressupostos fundamentais para a compreensão da problemática no seu sentido mais profundo. Formando também músicos brasileiros em etnomusicologia, tornaram-se responsáveis pela transmissão de correntes de pensamento e de prática etnomusicológica fundamentalmente errôneas, mas nobilitadas por técnicas de notação desenvolvidas e pela linguagem acadêmica.

De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.). "Percepção de conteúdos e processos mentais nas suas dimensões arquitetônico-urbanísticas e músico-antropológicas“. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 165/5 (2017:1). http://revista.brasil-europa.eu/165/Percepcao_e_processos_mentais.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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