O Juízo Final da catedral de Estrasburgo
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 166

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Catedral de Estrasburgo. Foto  A.A.Bispo 2017. Copyright

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Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.

 


N° 166/4 (2017:2)



A coluna do Juízo Final da catedral Notre Dame de Estrasburgo,
cidade do Tribunal Europeu de Direitos do Homem

Reflexões pelos 500 anos da Reformação

 
Catedral de Estrasburgo. Foto  A.A.Bispo 2017. Copyright

A catedral de Estrasburgo, um dos mais valiosos bens do patrimônio arquitetônico da Europa, é o edifício que marca a fisionomia da histórica cidade da Alsácia, situada através dos séculos na esfera de interações culturais alemãs e francesas, e que hoje é uma das capitais da Europa, sede de importantes instituições européias.

A catedral de Estrasburgo esteve recentemente no centro das atenções devido à comemoração dos seus 1000 anos.

Por diversos motivos, Estrasburgo merece particular atenção nos estudos de processos culturais em relações internacionais e entre êles se destaca, no presente, o fato de ter desempenhado papel relevante na história da Reformação.

Os 500 anos do Protestantismo, comemorados no presente ano, foram precedidos por uma década de eventos que tematizaram diferentes aspectos desse processo religioso nas suas amplas dimensões.

As questões que se levantam merecem ser considerados também nos estudos culturais referenciados pelo Brasil. 

Dois foram os locais históricos particularmente significativos de Erstrasburgo que serviram nese sentido a reflexões contextualizadas: a catedral de Estrasburgo e a igreja de S. Tomé, considerada como „catedral do Protestantismo“.

A catedral de Estrasburgo no processo reformatório

Erstrasburgo foi uma das primeiras grandes cidades que aderiram ao protestantismo no século XVI.

Um de seus motores foi o padre Matthias Zell (1477-1548) que, pregando na catedral, contribuiru à divulgação e aceitação das concepções de Lutero.

Sobretudo, porém, deve-se considerar o papel fundamental exercido pela imprensa de Estrasburgo através da publicação de textos de reformadores, entre êles aqueles de Martin Bucer (1491-1551).

A catedral de Estrasburgo tornou-se reformada em 1524, permanecendo assim como igreja protestante até 1681. Nessa época, valiosos objetos de culto foram afastados ou destruídos, entre êles relíquias, pinturas, estátuas, crucifixos e cálices.

Estrasburgo tornou-se um centro mediador de tendências do pensamento reformatório, entre Martinho Lutero (1483-1546) e Ulrich Zwingli (1484-1531), em particular no referente ao significado da missa.

Na Confessio Tetrapolitana - com as cidades de Constança, Lindau e Memmingen - estabeleceu-se em 1534 uma regra eclesial própria em Estrasburgo. Os protestantes de Erstrausburgo aderiram, em 1577, ao luteranismo.

Estrasburgo tornou-se centro procurado por aqueles que fugiam de perseguições em outras partes da França, como J. Calvino (1509-1564), ou de batistas.

Entre os grandes vultos da história protestante de Estrasburgo destacaram-se o pedagogo e reformador social Jean-Frédéric Oberlin (1740-1826) e o teólogo, médico, organista e musicólogo Albert Schweitzer (1875-1965), nome relevante do movimento Bach, de particular significado também para o Brasil. (Veja)

Enquanto a separação de Estado e Igreja determinou a situação da cultura e ensino na França, a Alsácia-Lotringia continuou a manter condições especiais para a religião. Com isso, a situação nessa região fronteiriça cimentou uma situação diferenciada relativamente àquela do interior da França. Pastores continuaram a ser funcionários de Estado e manteve-se o ensino religioso nas escolas.

Processos políticos, sociais e culturais desencadeados pela Reformação

Em conferência proferida em 31 de outubro de 2015 na sessão solene pela abertura do ano temático de 2016, o nono e último da década de Lutero, dedicado ao tema „Reformação e um só mundo“, o ministro de Estado da Europa, Michael Roth, encetou reflexões que tornaram-se em parte condutoras das atividades do ano de 2017.

Em primeiro lugar, considerou o fato que pode parecer singular à primeira vista de que Estado e Política emprestem particular atenção à rememoração de um vulto da história religiosa, de sua vida e obra.

A Reformação não devia ser vista porém apenas sob a perspectiva confessional, mas também daquela das transformações que trouxe para a política, a sociedade e a cultura.

Esse processo transformatório continua vigente no presente, atingindo não só fiéis como também não-fiéis, cristãos e mesmo não-cristãos.

Na solenidade comemorativa da Reformação, a representante da Igreja Evangélica na Alemanha (EKD), Margot Käßmann, proferiu uma oração de tema „A expansão do Cristianismo em novas regiões“, acentuando que os obstáculos que surgem no caminho dos homens assumem um outro significado se considerados sob a perspectiva religiosa.

Para que se perceba o sentido de uma nova situação ou de vivenciá-la como um enriquecimento, tornar-se-ia segundo ela necessário uma mudança de paradigmas.  Tornar-se-ia necessário indagar o sentido dos obstáculos que o homem encontra pela frente.

Com essa alocução, estabeleceu-se uma ponte com a problemática atual da imigração na Europa, em particular pela vinda de grande número de migrantes de regiões não-cristãs e que levantam questões políticas e religiosas que dizem respeito tanto a católicos como a protestantes.

A coluna do Juízo Final da catedral de Estrasburgo

A catedral de Estrasburgo é sob muitos aspectos importante objeto de estudos da História das Artes. Um dos principais motivos desse seu significado reside nas representações plásticas na sua arquitetura e do programa iconográfico em que se inserem.

Através da linguagem visual que estabele relações de coerência entre as representações exteriores e interiores do edifício, a catedral adquire particular relevância para estudos imagológicos de visão do mundo medieval.

O programa visual oferece importantes subsídios para a compreensão de interpretações de sentidos das Escrituras e de concepções teológicas que possibilitavam o estabelecimento de relações entre o Velho e o Novo Testamento e, assim, de entendimento da história à luz do sistema de imagens.

Um dos principais focos de atenção na consideração artístico-cultural da catedral de Estrasburgo é a coluna do Juízo, também chamada de coluna dos anjos. Trata-se de uma coluna que se encontra no meio do transepto sul do edifício e que apresenta plásticas de autor anônimo que evidenciam um programa iconográfico relativo ao Juízo Final.

Esse programa representa de forma exemplar concepções da época da sua realização na primeira metade do século XIII, tendo constituído uma inovação para a época.

As relações de sentidos dessa coluna devem ser analisadas no conjunto do programa iconográfico da parte sul do edifício, assim como no seu todo. Em outras igrejas, representações do Juízo Final encontram-se sobretudo num dos portais da fachada ocidental.

Os fiéis, que entravam na igreja, eram lembrados do Juízo dos fins dos tempos e, assim, admoestados por meios visuais a conduzir uma vida de acordo com os preceitos e normas religiosas.

A colocação dessas representações numa coluna no interno da Igreja levanta questões quando a razões, abrindo caminhos a interpretações. Supõe-se que teria sido resultado não só de motivos pragmáticos, mas sim também de um estado de espírito dominado, na época, pelo temor que o fim do mundo ocorresse em breve. Entretanto, a coluna de Estrasburgo apresenta uma visão menos aterrorizante do Juízo no fim dos tempos do que outras representações medievais, uma vez que não contém representações do inferno e da separação de almas dos justos e dos condenados às penas eternas.

Pode-se reconhecer relações teológicas com representações marianas no portal do transepto sul - o da morte de Maria e o da sua coroação na assunção - assim como o de concepções de Ecclesia na tensão tipológica Igreja/Sinagoga também ali representada plasticamente.

No centro do portal encontra-se Salomão no seu trono e como juiz com uma espada, prefigurando tipologicamente Cristo que retorna à terra no fim dos tempos para o julgamento de vivos e mortos.

Questões de leitura - o sentido literal favorecido pela impressão

Trata-se, assim de uma eclesiologia na linguagem de imagens que pode ser vista como ponto de partida e fundamento da análise do programa iconológico e que apresenta particular atualidade no presente devido ao ano que focaliza a Reformação, uma vez que esta, dirigindo a atenção sobretudo ao sentido literal do texto bíblico em detrimento do sentido velado possibilitado por uma leitura hermenêutica, teve consequências também para a concepção de Igreja.

Ocorrendo à mesma época do desenvolvimento da imprensa e, assim, da divulgação dos textos bíblicos, contribuiu a uma mudança de modos de leitura e entendimento de seus sentidos. Até então, a linguagem das imagens e a transmissão oral de suas interpretações tinha sido predominante, fato também compreensível pelo fato de grande parte da população não saber ler e escrever. Significativamente, J. Gutenberg, a imprensa e sua difusão são lembrados em exposições, monumentos e nomes de via em Estrasburgo, cidade que foi um dos centros da edição de livros.

Estrasburgo. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Aproximações à leitura da linguagem visual da coluna do Juízo Final

Pode-se distinguir, na distribuição das doze representações plásticas na coluna, três áreas sobrepostas. Na parte inferior, encontram-se os quatro evangelistas, na parte central os anjos com trompetes e, na superior, três anjos e uma representação de Cristo.

A representação dos evangelistas apresenta os atributos simbólicos tradicionais - Homem (Mateus), Leão (Marcos), Touro (Lucas) e Águia (João).

Como tratado em estudos, cursos e seminários, esses símbolos são de fundamental relevância para considerações teórico-culturais. Correspondem aos elementos ar, fogo, terra e água nas suas múltiplas relações e interações no mundo natural percebido pelos sentidos, entre elas com as épocas do ano, as partes do Zodíaco e suas implicações tipológicas na compreensão do Homem.

À luz dessas relações, a leitura dos Evangelhos adquire novas focalizações. Particular atenção merece o evangelista João, pois indica as consequências das tensões entre a tipologia e a anti-tipologia do Velho e do Novo inerente ao sistema. Significativamente, é o único Evangelista retratado como jovem, sendo todos os demais representados como homens de idade, com barbas. Essa representação, nas múltiplas correspondências possibilitadas pela linguagem simbólica, evidencia o significado da água no edifício das concepções filosófico-naturais de antiga proveniência. Corresponde, na linguagem das constelações, à transformação do escorpião em águia.

A importância de sentidos musicais nessa linguagem de imagens evidencia-se nos anjos que tocam instrumentos de metal entre os Evangelistas da base e a parte superior da coluna. Com os seus toques, dirigidos àqueles que se situam abaixo, no âmbito terreno, o dos elementos, anunciam a chegada do Juízo e os julgamentos ao mundo, dirigindo-se aos quatro pontos cardeais.

O significado musicológico dessas representações é relevante sob muitos aspectos, sobretudo também por trazer à consciência a necessidade de uma condução de estudos organológicos não apenas sob o aspecto sistemático, em classificações abstratas e artificiais, mas sim em estreita relações com uma simbologia de remotas oribgens.

Os anjos que acompanham a representação de Cristo como Juíz na parte superior da coluna trazem atributos de sua paixão. Abaixo do seu trono, encontram-se os homens ressuscitando.

Relações com concepções de tempo: partindo do presente à luz do que virá

O programa iconográfico, para além de indicar relações com a compreensão do mundo perceptível pelos sentidos e de sua interpretação na tradição da filosofia da natureza, evidencia elos com concepções temporais do passado, presente e futuro. 

O ponto de partida é o presente, o da alma e da Ecclesia que, correspondendo aos preceitos na sua vida surge como uma noiva que recebe Cristo que vêm em espírito àqueles assim pré-dispostos. É a partir do presente que interpreta-se o passado, a história da encarnação.

A vinda de Cristo em carne, a uma humanidade carnal, já pertence ao passado, não se repetindo. O posicionamento no presente, porém, procede-se sob o signo do que é esperado no fim dos tempos. No futuro, no terrível dia, Cristo não virá como noivo, mas como rei e juiz.

Essas relações temporais e concepções relativas à alma e à Igreja evidenciam o fundamental significado mariano da arquitetura catedralícia.

Consequências para a compreensão da história

O deslocamento do modo de ler as Escrituras ao sentido literal das palavras, diminuindo o significado da leitura de imagens e de sua compreensão segundo sentidos velados, fomentado pelo desenvolvimento da imprensa que foi de tão grande significado para Estrasburgo e para a Reformação, possui assim dimensões extraordinariamente amplas e que dizem respeito à compreensão da realidade existencial percebida pelos sentidos e da própria situação do homem no tempo.

Esse deslocamento fomenta uma compreensão da história como desenvolvimento em continuidade cronológica, diversa daquela marcada por um sistema caracterizado por tensões entre o Velho e o Novo, entre tipos e anti-tipos e que parte do presente em prospectiva do que há a vir, dirigindo a partir do atual o olhar ao passado que não mais retorna.

Significado atual de questões levantadas pela coluna do Juízo Final

A coluna do Juízo Final da catedral de Estrasburgo adquire particular interesse na atualidade marcada pelas celebrações dos 500 anos da Reforma Protestante em cidade que é uma das capitais da Europa. Estrasburgo abriga o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, instituição última a ser recorrida por todos aqueles que procuram a justiça. Desde 1998, grande número de julgamentos são ali feitos.

Perante a coluna do Juízo Final e da análise do programa iconológico da catedral de Estrasburgo, toma-se consciência da relevância de estudos voltados à transmissão do edifício cultural medieval aos países extra-europeus descobertos no início da era moderna, em particular também ao Brasil.

Toma-se consciência, também, considerando a história da Reforma nessa importante cidade do Protestantismo e da imprensa, das dimensões das transformações culturais que necessariamente ocorrem no Brasil com a expansão de correntes evangélicas de diferentes denominações no presente.

Entre outros aspectos, essas implicações dizem respeito à percepção do mundo e à compreensão da história. A visão de uma continuidade temporal do Antigo ao Novo, fomentada pela leitura literal de textos, contradiz o edifício de concepções e imagens e causa assim incoerências na sua compreensão, prejudicando assim reflexões esclarecedoras que também poderiam questioná-lo e mesmo relativá-lo.

Não correspondendo a um posicionamento do homem no presente, e que orienta a sua vida segundo preceitos - não nessariamente normas consuetudinárias - essa reorientação na concepção histórica fomentada pela leitura literal ou „ao pé da letra“ tem consequências éticas. A discussão dessa problemática não poderia encontrar local mais favorável para ser desenvolvida do que em Estrasburgo, pelas suas instituições cidade marcada por preocupações relativas ao Direito como sede do tribunal europeu de Direitos do Homem.

De ciclos de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.  "A coluna do Juízo Final da catedral Notre Dame de Estrasburgo, cidade do Tribunal Europeu de Direitos do Homem“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 166/4 (2017:2). http://revista.brasil-europa.eu/166/Catedral_de_Estrasburgo.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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