Saint Julien como protetor do homem a caminho
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 166

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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St. Julien, Paris. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

St. Julien, Paris. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

St. Julien, Paris. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

St. Julien, Paris. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

St. Julien, Paris. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright


Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.

 


N° 166/10 (2017:2)



Visões românticas do passado à luz de imagens do homem
Saint Julien como protetor daqueles que procuram asilo e do homem a caminho que canta
O seu significado para a história universitária e da música no exemplo de F. Chopin (1810-1849)

Église de Saint Julien - le Pauvre, Paris

 

Um dos menos conhecidos monumentos históricos de Paris é a igreja de Saint-Julien-le Pauvre, situada na Rive Gauche, não distante de Notre-Dame. Dali deslumbra-se a catedral ao fundo, entre as árvores de contíguo parque, entre elas a mais velha de Paris.

É uma perspectiva da grande catedral gótica que difere daquela frontal, do vasto espaço que acentua a sua monumentalidade, possibilitando assim uma vista menos comum do que aquela em geral conhecida dos panoramas da capital francesa.

Os visitantes de Paris, que não deixam de ir à Notre Dame, pouco percebem a existência da pequena igreja recôndita e modesta e não avistam a catedral a partir de uma perspectiva que de forma especial aguça a sensibilidade para a compreensão do significado de Notre Dame no Romantismo do século XIX.

Notre Dame - Paris. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Trata-se de uma visão profundamente romântica aquela possibilitada apor Saint-Julien-le Pauvre. O observador encontra-se em terreno de remotas origens históricas, na antiga confluência de duas vias romanas, onde já no século VI levantou-se um abrigo e capela que ficou ligado ao nome Julianus Hospitator. Este santo, mencionado na Legenda Aurea, é um daqueles vultos hagiográficos cuja estória de vida revela complexas interações entre simbolismo imagológico de diferentes origens e o histórico documental.

O nome de Saint-Julien-le Pauvre, também designado como o Hospitaleiro, desperta associações com imagens do viajante, do foragido e migrante, do romeiro, do peregrino, do pobre e necessitado que procura abrigo e hospedagem, do homem que se encontra a caminho.

Saint-Julien é assim também o protetor de trovadores, de músicos e poetas cantores em viagem, daqueles decantam a sua sina e a terra que deixaram.

Atualidade da imagem de Saint-Julien em época de migrantes e fugitivos

A dedicação da igreja de Julien-le Pauvre traz assim à mente um simbolismo de natureza antropológico-musical de ampla riqueza de sentidos e que surge como singularmente atual em época marcada por migrantes e fugitivos que procuram abrigo e hospedagem.

O longínquo passado que se encontra permanentemente presente através da imagem de Julien-le Pauvre é descortinado pelo visitante por detrás de ruínas.

O cair em ruínas, destruições e reconstruções de estados arruinados marcam a história de Saint-Julien-le Pauvre. Já em 886 foi a antiga igreja destruída pelos normanos. Doada ao capítulo de Notre Dame em 1045, que o transferiu à abadia Longpont em 1120, foi reconstruída entre 1170 e 1225, passando a desempenhar importante papel na vida espiritual e intelectual da França.

Saint-Julien e a história da universidade de Paris

À luz da imagem de Saint-Julien, da sua veneração como exemplo e protetor do homem que canta e que se encontra a caminho, a história da universidade francesa revela dimensões simbólico-musicais que até hoje não foram devidamente valorizadas.

Em Saint Julien-le Pauvre - e assim sob o signo de sua estória, imagem e veneração - foram nomeados os reitores da Sorbonne e ali tiveram lugar as reuniões e assembléias da universidade até 1524.

A área por detrás da igreja é celebrada ainda hoje como tendo sido o berço da universidade. A rue du Fouarre, que liga a de la Bûcherie com a rua Galande, tornou-se sede da Faculdade de Artes, sendo o próprio nome da via lembrança dos assentos utilizados pelos estudantes nas aulas dadas ao ar livre.

Também as dez escolas posteriores, batizadas segundo antigues albergues, tais como os do Cheval rouge ou de l‘Aigle d‘or, denotam a tradição da hospedagem àqueles a caminho própria da veneração do santo designado como Julianus Hospitator. Ainda hoje são ali lembradas a estadia de Dante Alighieri (ca.1265-1321), em 1304, e as aulas do filósofo e físico Jean Buridan (ca. 1300-1358), reitor da universidade entre 1325 e 1348.

Em 1651, a igreja passou ao Hôtel-Dieu, o mais antigo hospital de Paris, fundado como abrigo em 651, e que, na sua dedicação a S. Cristóvão, revela a permanência da lógica da linguagem de imagens da hagiografia.

Após a secularização e profanização do período revolucionário, Saint Julien-le Pauvre voltou a ser utilizado para o culto em 1826. Tornou-se, assim, um exemplo significativo da restauração. Em fins do século, passou a servir ao rito católico grego, o que se mantém até o presente.

Os concertos em Saint Julien-le Pauvre - o Festival Chopin

A sua história secular, as estórias e as tradições do seu passado medieval, o estado ruinoso em que caiu e que ainda pode ser lido nos seus muros fazem com que a recôndita igreja de Saint-Julien-le Pauvre e a contígua área verde se tornem um local impregnado de valores românticos no centro de Paris.

É esse romantismo que torna compreensível a fascinação que despertam os concertos que ali se realizam e que são dedicados sobretudo aos grandes compositores do século XIX.

Na programação de 2017, destacam-se entre outros recitais de pianistas como Philippe Alegre e Thomas Tobing com obras de compositores como Beethoven, Schubert, Chopin e Liszt. Sobretudo Chopin encontra-se repetidamente considerado nos recitais, assim em concerto na data de seu nascimento, em 1 de março, assim como em Festival Chopin com a participação de pianistas como Junjko Okazaki e Teresa Czekaj.

Se à primeira vista parece ser fora de lugar a realização desses recitais não em salas de concertos ou em salões, mas sim em espaço religioso ainda destinado a culto, é a atmosfera romântica que impregna Saint-Julien-le Pauvre que justifica essa função, possibilitando até mesmo novas possibilidades de fruição e compreensão das obras nas suas inserções em processos culturais do século XIX.

Essas possibilidades são particularmente produtivas no caso de Chopin. Vem de encontro aos sentidos que se depreendem da tradição hagiográfica da imagem de exemplaridade de Saint-Julien o fato do compositor polonês também ser um viajante, um artista que saiu da sua terra, sem meios, qe procurou e encontrou abrigo na capital parisiense, onde viveu entre 1831 e 1849, onde alcançou os seus principais êxitos e onde veio a falecer.

Novas perspectivas para os estudos de relações entre Chopin e Paris

Essas relações entre Chopin e Paris em época marcada pela vitalidade de sua vida social e cultural são tratadas em várias publicações, podendo-se lembrar, pela sua ampla divulgação, livro de Tadeusz Witold Szulc, jornalista polonês estabelecido nos Estados Unidos que passou anos no Brasil, para onde emigrou em 1941, tendo realizado estudos universitários no Rio de Janeiro (Tad Szulc, Chopin In Paris: The Life and Times of the Romantic Composer, 1999).

Poucos são os compositores que mais marcaram e marcam a imagem da capital francesa. Os concertos do Festival Chopin da Société Chopin à Paris, fundada em 1911, realizando eventos na Embaixada da Polônia e em salões representativos, fazem com que a sua obra empreste sentidos e qualidades emocionais a espaços.

O túmulo de Chopin no cemitério Père Lachaise é um monumento funerário procurado por seus admiradores, a placa na casa em que viveu e morreu na Place Vendôme é visitada, assim como o seu busto nos jardins de Luxembourg. Há em Paris um museu dedicado a Chopin e um Hotel Chopin

Esses estreitos elos entre Paris e Chopin adquirem projeção internacional, influenciam reciprocamente imagens e a compreensão de sua obra também fora da França. Recitais são frequentemente acompanhados por palestras nas quais é lembrada a sua vida em Paris e o Paris da sua época, e os ouvintes acompanham a sua fruição com imagens que possuem da capital francesa.

Corre-se o risco, assim, de projetar-se anacrônicamente um Paris cuja fisionomia e vida urbana foi reconfigurada após a sua morte à época da vida do compositor. Essa projeção de situações posteriores a anteriores não é sem consequências para o estudo e a análise de sua obra nas suas inserções em processos culturais.

O Paris que teve a sua fisionomia marcada por Georges-Eugène Hausmann (1809-1891), a metrópole reconfigurada segundo impulsos do Classicismo e sob a influência da Académie des Beaux-Arts, e que é o novo Paris que domina a imagem da capital francesa, não é aquele da cidade da época de vida de Chopin, assim como o Paris de sua época não é aquele da torre Eifel, muito posteriormente erigida.

Chopin e Paris à luz de desenvolvimentos político-culturais atuais

O recrudescimento de clamores pelo patriotismo e pelo nacionalismo na atualidade política tem levantado complexas questões nos estudos culturais. Termos, conceituações e visões que pareciam há muito superadas são retomadas e exigem a atenção na análise de processos culturais. Em vários contextos epocais e político-culturais tem-se procurado analisar as diferentes conotações e as transformações por que passaram anelos e concepções do nacional e do nacionalismo.

A constatação da reinterpretação e mesmo instrumentalização de concepções à época da formação de estados nacionais europeus no século XIX em período posterior, sobretudo daquele dos anos de entre-guerras, tem evidenciado a gama de questões historiográficas que se levantam para o tratamento do nacional e do nacionalismo segundo critérios adequados ao estudo de processos no seu desenrolar temporal nos diferentes contextos.

A consideração de Chopin, cuja imagem é permanentemente marcada na literatura pelo seu ardor patriótico polonês mantido vivo em Paris, a cidade de sua predileção, dirige a atenção a outras questões relativas ao patriótico e ao nacional no século XIX. Também aqui, porém, constatam-se reinterpretações sob o signo de situações e desenvolvimentos políticos posteriores, em particular do período de entre-guerras e da Segunda Guerra Mundial.

Desenvolvimento das reflexões e estudos a partir do Brasil

Problemas decorrentes de perspectivações do passado a partir de posicionamentos e visões nacionalistas dos anos de 1920 e 1930 constituiram uma das principais preocupações do movimento de renovação teórica em áreas de estudos histórico-musicais e culturais originado em São Paulo em meados dos anos de 1960.

Valorações nacionalistas de décadas passadas continuavam a vigorar através de publicações e da assimilação pouco refletida de conceituações garantidas pela autoridade de seus autores. As suas visões historiográficas, porém, implicavam numa desvalorização de compositores e obras do passado, vistos como imitadores de modêlos europeus, exemplos de uma fase que teria antecedido aquela verdadeiramente nacional.

O reconhecimento de que essa desqualificação do século XIX na ótica nacionalista - grave por tratar-se de um século no qual o país fêz a sua independência, mantendo-se unido nas suas grandes dimensões - foi um dos principais fatores que levaram à proposta de orientação dos estudos segundo processos, não segundo categorizações do objeto ou projeções anacrônicas, o que levou à fundação de sociedade dedicada a esses estudos, assim como a seu Centro de Pesquisas em Musicologia, em 1968.

A apreciação de Frédéric Chopin por Mário de Andrade („Atualidade de Chopin“, Obras Completas de Mário de Andrade, XIV, São Paulo: Martins, 1963, 167-198) foi importante razão de debates sobre problemas derivados de considerações e valorações do passado em anos marcados por tensões e guerras.

O revolucionarismo, patriotismo e o nacional salientados na literatura histórico-musical, em particular em publicações de natureza literária e sentimental, teriam possibilitado tais valorações positivas de sua pesonalidade e obra. Assim, enquanto que críticas ferinas eram feitas a uma vida musical marcada por óperas e compositores do século XIX, justamente um compositor que como nenhum outro dominava programas de ensino e repertórios e que poderia ter sido considerado criticamente pela predileção de sus composições por diletantes, da música doméstica, de sal∫ao e círculos burgueses, foi valorizado pela sua imagem de revolucionário a serviço da liberdade.

Em visão retrospectiva, poder-se-ia constatar uma projeção de posicionamentos e visões da época no passado, um procedimento sob certos aspectos similar daquele que possibilitou a instrumentalização de Carlos Gomes pelo fascismo italiano e ítalo-brasileiro nos anos do seu centenário. (Veja)

A extraordinária difusão da obra de Chopin veio assim de encontro não só aos intentos de reconsideração do século XIX a partir de uma orientação segundo processos, como também àqules de desenvolvimento de uma musicologia de orientação científico-cultural em contextos globais.

Chopin na musicologia de orientação segundo processos culturais

Vários foram os aspectos tratados e as iniciativas que marcaram o caminho das reflexões através das décadas. Chopin e sua obra no foram considerados no contexto de sua difusão e cultivo na América Latina em geral, em estudos sob o aspecto da recepção musical, na discussão teórica relativa a conceitos de transplantes culturais no século XIX na América Latina no âmbito o projeto Musik in Life of Man/Universal History of Music des ICM/UNESCO. Foi considerado sob a perspectiva de uma história da música em contextos globais focalizada segundo o conceito de "cultural encounters" no ciclo de cursos semestrais do Instituto de Musicologia de Colonia (1997-2000).

A dedicação de um seminário à pesquisa especializada de sua obra na musicologia, na procura de determinações de tendências quanto à sua apreciação e análise, correspondeu a preocupações teóricas e objetivos de outros cursos e seminários.

Relacionou-se com aqueles voltados à superação de limites geográficos europeus na pesquisa histórico musical de orientação científico-cultural, aos estudos do Clássico e do Romântico nas suas relações e interações e mesmo às possibilidades de aportes antropológicos ao estudo de processos histórico-musicais.

O seminário pôde contar com estudos anteriores realizados e com o apoio de pesquisadores e músicos do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS). Desde a sua fundação, músicos e estudiosos poloneses desempenharam importante papel nos seus trabalhos. Os complexos processos difusivos sob a perspectiva de relações interamericanas e transatlânticas - entre o Brasil, a França e os Estados Unidos  - relativamente às suas inserções político-culturais internacionais foram objetos de estudos com base em documentação referente à atuação da pianista Guiomar Novais (1895-1979).

Para a sua realização foram feitos levantamentos de fontes no Brasil, na França e nos Estados Unidos. Os materiais documentais foram analisados em viagens de estudos a vários centros norte-americanos possibilitadas pela Academia Brasil-Europa. Esses trabalhos nos Estados Unidos, em particular aqueles levados a efeito em 1996, deram impulsos e abriram perspectivas para os eventos que se seguiram.

Ciclos de estudos e contatos na Polonia e colóquio internacional no Brasil

O seminário em Bonn foi precedido e acompanhado por viagens de estudos a várias instituições da Polonia. O cultivo da obra de Chopin e a sua pesquisa nesses institutos poloneses, assim como os concursos internacionais constituiram importante objeto de consideração dos participantes do seminário. Estes, após receberem introdutoriamente uma visão geral dos principais centros, organizações, instituições, concursos, da literatura e de gravações, discutiram o desenvolvimento e a situação da pesquisa do compositor e de sua obra no contexto da situação política e político-cultural da Polonia no presente.

Uma particular atenção na discussão de tendências contemporâneas do pensamento no tratamento de Chopin e sua obra foi dada à distinção entre Chopinismo, Chopinística e Chopinologia. Sob esses três conceitos considerou-se também a difusão e o cultivo da música de Chopin no Brasil.

O seminário encerrou-se com um colóquio público, no qual ao lado de conferências, apresentaram-se trabalhos realizados durante o semestre. O programa musical foi realizado graças ao apoio de estudantes de diferentes escolas de música alemãs preparados pela diretora artística do ISMPS.

Os estudantes foram, com esse semestre, preparados à participação em simpósio internacional de estudos interculturais que teve lugar no Brasil, em 2004. Nessa ocasião, promoveu-se um ato simbólico perante o monumento a Chopin ofertado pela comunidade polonesa do Rio de Janeiro a Chopin na Praia Vermelha.

Praia Vermelha, Rio. Foto A.A.Bispo 2004. Copyright

De ciclos de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.  "Visões românticas do passado à luz de imagens do homem. Saint Julien como protetor daqueles que procuram asilo e do homem a caminho que canta. O seu significado para a história universitária e da música no exemplo de F. Chopin (1810-1849)“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 166/10 (2017:2). http://revista.brasil-europa.eu/166/Chopin_em_Saint-Julien_le_Pauvre.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller,
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