O Ano Olier em Saint-Sulpice de Paris
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 166

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Saint Sulpice, Paris. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

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Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.

 


N° 166/9 (2017:2)




O Ano Olier em Saint-Sulpice de Paris em reflexões euro-brasileiras
Sulpicionismo, restauração e romantismo no século XIX
De Ch.M. de Talleyrand (1754-1838) e Eugène Delacroix (1798-1863)

 
Saint Sulpice, Paris. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Entre os vários eventos de 2017 motivados pela passagem de datas históricas em Paris, há um que, menos percebido por visitantes, merece particular atenção na análise de processos culturais: o do „ano Olier“.

Como o nome indica, essa comemoração refere-se a Jean-Jacques Olier (1608-1657), fundador do Seminário de Saint-Sulpice, principal centro da „escola francesa da espiritualidade“.

Na monumental igreja de St. Sulpice, a segunda em dimensões de Paris, uma exposição lembra a sua vida e a sua obra, situando-as no seu contexto epocal, na sua expansão e no seu significado na atualiO ano, inaugurado na festa do patrono - S. Sulpício - no dia 22 e janeiro, é comemorado com palestras de teólogos, historiadores e especialistas de arte e música, além de exposições e concertos.

Entre os temas tratados, salienta-se o da atualidade de uma espiritualidade na tradição sulpiciana, tematizado por Mariel Mazzocco, da Universidade de Genebra, que a vê como adequada para o tempo presente.

O Seminário de St. Sulpice foi já considerado em diversas ocasiões nos estudos culturais relacionados com o Brasil das últimas décadas. Um dos seus principais momentos foi o do estudo da influência sulpiciana e da escola francesa de espiritualidade no Novo Mundo, tratado no Canadá francês, em Québec e Montreal (Veja).

Nessa e em outras ocasiões, lembrou-se também da influência sulpiciana, direta ou indireta no Brasil através de sacerdotes ali formados ou de brasileiros que estiveram em Paris e que foram marcados por correntes do pensamento e da vida religiosa da capital francesa.

Particularmente estudada e discutida foi a influência sulpiciana na política referente às missões indígenas no Brasil à época da Independência, cuja organização deteriorara-se desde a expulsão dos Jesuítas em fins do século XVIII.

O significado atual de estudos mais aprofundados do sulpicianismo decorre do recrudescimento de tendências e movimentos sociais e políticos que, hoje, manifestam preocupações quanto a desenvolvimentos e a sistemas políticos, pleiteando mudanças, reformas e reconstruções compreendidas como renovações de situações criticadas.

Embora em geral situados em determinado espectro político e partidário, esses movimentos caracterizam-se por diferentes pêsos quanto a temas, problemas e inquietações. Neles se aglutinam, entre outros, tanto aqueles que sentem em risco a cultura ocidental, em particular a herança do esclarecimento e do humanismo, a liberdade e a emancipação, como aqueles que desejam estados fortes em recuperação de soberanias nacionais ou aqueles católicos que, criticando desenvolvimentos pós-conciliares, defendem um retorno à tradição, inserindo-se em corrente histórica que remonta ao Concílio de Trento do século XVI.

A consideração desses movimentos e tendências atuais exige assim cuidado diferenciador em análises, que são ao mesmo tempo políticas e culturais.

O momento restaurativo que se constata nesses movimentos sociais e políticos do presente relaciona-se de modo complexo com intuitos renovadores de instituições e situações. Mesmo os católicos mais tradicionalistas têem em mente uma renovação, esta, porém, a partir de fundamentos segundo normas tridentinas.

O conceito de restauração, portanto, exige em si atenção analítica diferenciadora, uma vez que possui diferentes conotações e implicações.

Os anelos restauradores/renovadores/reformadores podem manifestar-se de forma imprecisa ou mesmo ambivalente. Comparações com outras épocas da história marcadas por similares tendências podem assim aguçar a sensibilidade para percepções em dois sentidos, tanto para a análise de processos do presente, como para a historiografia.

A época que entrou na história como sendo por excelência a da Restauração foi aquela que se seguiu ao fim do império napoleônico: nela reestabeleceu-se o poder daqueles que procuram recuperar uma ordem suprimida ou abalada em processo cujo marco foi a Revolução de 1789.

Também aqui seria inadequado generalizações indiferenciadas. Aqueles que dela participaram o fizeram por diferentes motivos, nela agregando-se, entre outros, moderados liberais que, apesar de realistas, defendiam um sistema constitucional, sem intentos de vingança para com antigos revolucionários e adeptos do sistema caído, assim como ultra-realistas ou defensores de idéias absolutistas.

Também diferenciados eram aqueles impulsionados sobretudo por motivos religiosos - aqueles que se guiavam segundo uma vida religiosa, formas de culto e concepções teológicas do século do iluminismo e racionalismo e aqueles que procuravam uma restauração na tradição da campanha de renovação moral, de costumes e espiritual do clero como aquela representada pelos sulpicianos.

As reflexões euro-brasileiros motivadas pelo „Ano Olier 2017“ e que tiveram lugar na igreja de St. Sulpice, concentraram-se no vulto de Ch.-M. de Talleyrand (1754-1838), uma dos mais destacadas personalidades da história diplomática européia. Tendo obtido formação no seminário de St. Sulpice, foi - mal ou bem - sulpiciano.

A apreciação da personalidade e da vida de Talleyrand é marcada por paradoxias e inseguranças, o que pode indicar aproximações inadequadas por parte de historiadores. Talleyrand surge como homem da Revolução, da época de Napoleão, como liberal, constitucional moderado, mas motor da Restauração, como seminarista formado na mais severa das instituições - em S. Sulpice - sacerdote, bispo e influente personalidade eclesiásticas que agiu contra interesses da Igreja, chegando a ser excomungado. A sua figura é muitas vezes a de homem mundano, amante de festas e de representação, de condução de vida criticável, com traços de frivolidade, hedonismo e oportunismo, características denotadoras de um questionável caráter,

Essas dificuldades de apreciação de Talleyrand são de consequência para os estudos brasileiros, uma vez que um de seus íntimos e protegidos foi Sigismund von Neukomm (1778-1858), o compositor que esteve no Rio de Janeiro e que desempenhou relevante papel no desenvolvimento histórico-musical do Brasil.

Os dados que se possui a respeito de Neukomm, tornam pouco plausível que a sua vida e as suas atuações de cunho diplomático-cultural tivessem sido marcadas por uma atmosfera de frivolidade, oportunismo e hipocrisia.

As dificuldades na apreciação do homem e das ações de Talleyrand - nas suas implicações para os estudos de Neukomm sob a perspectiva do Brasil - indicam antes insuficiências quanto à percepção de situações mentais e psicológicas relacionadas com processos culturais nas quais o diplomata se inseriu.

O fato de Ch.-M. de Talleyrand ter recebido formação no Seminário de Saint-Sulpice sugere um caminho que poderia ser tomado para a compreensão mais aprofundada de sua personalidade e de seus procedimentos.

Saint Sulpice, Paris. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Tradição de implantação da (Contra-) Reforma católica na França

A exposição na igreja de St. Sulpice traz à consciência o contexto que explica a vida e a obra de Olier e que constitui os pressupostos para a compreensão de um estado de espírito e uma cultura interior que teria marcado a espiritualidade francesa e a vida no Seminário de St. Sulpice.

Lembra-se nela que o Concílio de Trento, estimulado pela reforma protestante e como em sua resposta, ainda não tinha trazido frutos na França. O lastimável estado do clero - apesar das tentativas de alguns bispos - era responsável em grande parte pelo enfraquecimento da vida religiosa da sociedade. O clero era formado por sacerdotes em grande parte sem vocação, que levavam um estado de vida não escolhido, que mantinham desejos de vida mundana, sem maior formação intelectua. Não havia seminários para a formação de sacerdotes, embora muitas tentativas tivessem sido feitas para criá-los.

O texto da exposição situa assim os pressupostos do sulpicianismo na Reforma católica, designando-a como resposta à Reforma protestante, o que merece particular atenção em ano no qual se comemoram os 500 anos da Reformação.

A Reforma católica era não só uma Contra-Reforma, mas compreendia-se como uma renovação, uma recuperação de ordem, disciplina e espírito religioso perdidos, sendo, assim, de cunho restaurativo.

O seminário, ligado à paróquia, possuia estruturas e vida distintas, tendo como objetivo ser uma comunidade de padres seculares como agentes formadores de novas gerações. Os jovens que ali entrava, em parte já padres, eram introduzidos numa vida que procurava ser solidamente fundamentada, simples e severa. Os seminaristas viviam em comum, com uma mesma regra de vida. A seguir, consagravam-se à formação de padres diocesanos, transmitindo e expandindo assim a cultura espiritual e de vida obtida, a serviço de expansão de um processo renovador e de criação de rêdes.

O seminário e sua paróquia dependia da abadia beneditina de Saint-Germain-des-Prés  sendo assim subordinado diretamente a Roma, e não ao bispo de Paris. Esta teria sido a fundamentação institucional de um ministério eclesial para além da diocese, extensivo a toda a França.

Tratou-se, assim, de um movimento marcado por um direcionamento a Roma, o que se manifesta até mesmo na arquitetura. Contemplando-se a fachada da igreja de St. Sulpice não se pode deixar de pensar em S. Giovanni in Laterano em Roma (Archibasilica Sanctissimi Salvatoris et Sanctorum Iohannis Baptistae et Evangelistae in Laterano), arquibasílica que desempenha a função de catedral de Roma, sede do Papa como bispo de Roma. Esse significado simbólico-eclesial de St. Sulpice não é suficientemente considerado em textos histórico-artísticos e arquitetônicos, prejudicando assim a compreensão do monumento.

Talleyrand, aristocrata e levado ao seminário por outros motivos do que aqueles de vocação, exemplificava os problemas derivados de um clero constituído por religiosos que tinham de levar uma foma de vida não escolhida, afeitos a tentações da vida mundana.

Teria personificado, assim, justamente o principal problema humano na formação sacerdotal que tinha dado origem aos esforços de Olier e à fundação do seminário.

Compreensivelmente, a atmosfera do seminário foi sentida pelo jovem Talleyrand como delimitadora, escura e triste na sua severidade e distância ao mundo, sendo os anos ali passados guardados negativamente na lembrança do diplomata. Tendo experimentado na sua própria juventude a atmosfera de um movimento que pretendia a reforma do clero como exemplos moralizadores da vida cristã na tradição tridentina de auto-reforma da Igreja em afastamento do profano, não se poderia partir de uma proximidade de Talleyrand ao restauracionismo tradicionalista católico.

Também a amizade e proteção que dedicou a Neukomm, apenas compreensíveis a partir de simpatia e afinidades quanto a visões e modos de vida, não torna plausível uma proximidade de Neukomm a círculos marcados pelos intentos de auto-reforma católica.

Esses cuidados diferenciadores são de significado para a consideração da música sacra na obra composicional de Neukomm e que constitui importante parte de sua produção. Em particular nos anos que precederam a sua vinda à França e a aproximação a Tayllerand foram dedicados sobretudo à composição de obras sacro-musicais.

A constatação da economia e reserva no uso de meios expressivos, da simplicidade melódica, harmônica e estrutural no tratamento de textos, foi discutida em diversas ocasiões nos estudos músico-culturais de orientação cultural relacionados com o Brasil.

A contenção registrada em composições religiosas de Neukomm, diferindo de muitas outras obras para a igreja de sua época, que em muitos casos utilizavam-se de meios teatrais, levou a que se discutisse uma precedência de sua obra quanto ao movimento da restauração litúrgica e sacro-musical de décadas posteriores, correspondendo a critérios de sacralidade que iriam tornar-se normativos com o Motu Proprio de Pio X (1903).

Como discutido em St. Sulpice, porém, essa interpretação surge como inadequada projeção anacrônica de desenvolvimentos posteriores ao passado. A contenção quanto a recursos e meios de expressão, à forma e elementos musicais de melodia e estruturação harmônica, assim como ao tratamento de textos em Neukomm não seria resultado imediato de correntes de reforma católica como aquelas representadas pelo sulpicianismo, mas sim antes expressões tardias ou mantidas de uma „nobre simplicidade“ do século das luzes.

F.V.E.Delacroix (1798-1863) - filho de Ch.-M. de Talleyrand?

Entre as principais obras de arte do interior da igreja de St. Sulpice encontram-se pinturas de Eugène Delacroix, um dos principais representantes do Romantismo na arte francesa. Segundo a opinião de vários autores, Delacroix teria sido filho de Talleyrand. O fato de ter-se confiado a configuração pictórica da Capela dos Anjos da igreja de St. Sulpice a Delacroix chama a atenção e desperta o interesse para análises mais aprofundadas das relações entre o Romantismo e a religião. Ainda que não fosse devoto e mesmo considerando de forma distanciada a religião, Delacroix dedicou grande parte de sua obra a motivos religiosos e, entre elas destacam-se os afrescos de St. Sulpice.

Essa situação aparentemente paradoxal tem levado a diferentes tentativas explicativas e que, sob alguns aspectos, adquirem significado atual. A fascinação de Delacroix por assuntos religiosos apesar de seu distanciamento apresenta sobretudo relações com a experiência estética do culto e da cultura cristã em geral.

A vivência do belo nos ritos surge como o caminho que o aproxima de uma espiritualidade que não podia ser alcançada através da razão. Nesse sentido uma das representações da capela dos anjos em St. Sulpice - a luta de Jacó com o anjo - adquire particular significado. Ela surge ao lado das representações de São Miguel combatendo o dragão e da expulsão de Heliodorus do templo.

A luta de Jacó com o anjo é compreendida como uma imagem de concepções de Delacroix sobre a presença divina que se encontra no interior do homem. Seria essa presença divina que o possibilita de perceber e admirar o belo, de dar satisfação na realização do bem e de consolá-lo quando comete erros.

A consideração das obras de Delacroix em St. Sulpice adquire significado no presente, uma vez que muitos daqueles preocupados com a cultura cristã-ocidental que estaria ameaçada pela islamização não são religiosos praticantes e mesmo a-religiosos. O receio pela perda de uma cultura tem traços românticos, são derivados sobretudo de experiências estéticas da arquitetura, das artes, de formas de culto e sobretudo da música sacra.

De ciclos de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.  "O Ano Olier em Saint-Sulpice de Paris em reflexões euro-brasileiras
Sulpicionismo, restauração e romantismo no século XIX. De Ch.M. de Talleyrand (1754-1838) e Eugène Delacroix (1798-1863)“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 166/9 (2017:2). http://revista.brasil-europa.eu/166/Saint_Sulpice.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
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Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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