Aceh: guerras contra Malaca e os turcos
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 167

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Malaca, Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

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Malaca.Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.

 


A.A.Bispo
N° 167/9 (2017:3)


„Mouros X Cristãos“
O sultanato islâmico Aceh da Sumatra em guerras contra Malaca e o turcos
à luz de desenvolvimentos atuais na Europa, na Turquia e na Indonésia
- relendo uma carta e S. Francisco Xavier S.J. (1506-1552) -

Reflexões euro-brasileiras no Museu do Islão no Mundo em Malaca

 
Malaca, Foto A.A.Bispo 2017. Copyright
Grandes problemas da atualidade são os conflitos nos países islâmicos, o islamismo fundamentalista e, na Europa, à vinda de fugitivos de países islâmicos assolados por guerras. Atos de terrorismo islamista agravam uma situação marcada por inseguranças e riscos, com grandes consequências para a União Européia e as relações entre as nações.

A preocupação pela expansão do Islão e islamização do Ocidente são tematizadas por movimentos populares e partidos em diferentes graus de intensidade, seja em protestos relativamente à propaganda islamista, à construção de mesquitas, a muezins, à indoutrinação em escolas de Corão, ao uso de trajes e sinais ou ao sistema de direito islâmico que contraria constituições democráticas, direitos humanos e a tradição de pensamento ocidental.

A situação crítica de comunidades cristãs em países islâmicos leva a difíceis situações paradoxais no debate e nas iniciativas eclesiásticas.

Recentes desenvolvimentos políticos na Turquia, marcada por nova consciência islâmica e que, contrariando valores ocidentais, levanta questões quanto às possibilidades de pertencimento ou não do país à Europa, foram em grande parte apoiados por imigrantes turcos em países europeus.

Para além dos próprios fatos da imigração, expansão islâmica em geral e das abaladas relações entre a Turquia e a Europa, são o conceitos e anelos desses movimentos reativos que exigem a atenção de estudos de processos culturais.

Concepções e termos que pareciam já pertencer ao passado voltam à tona, entre êles o da Reconquista. Já essa expressão revela o significado desses desenvolvimentos críticos do presente sob a perspectiva dos estudos relacionados com Portugal e com países que foram marcados pela ação portuguesa no passado, entre êles o Brasil.

Anelos de uma nova „Reconquista“ do Ocidente à luz do passado português

A história da Península ibérica e em especial a de Portugal no processo de sua formação como nação é estreitamente relacionada com a luta secular dos cristãos no Ocidente pela recuperação gradual de territórios sob o poder muçulmano na Idade Média.

Esse combate teve prosseguimento no Norte da África  e foi levado às regiões extra-européias alcançadas pelos navegadores portugueses da África, da Ásia e das Américas.

A tomada turca de Constantinopla, antigo centro cristão de extraordinário significado foi o sucesso do Islão que abalou profundamente o Ocidente, também obrigando-o a procurar novas rotas de comércio em contorno da esfera islâmica pelo oceano, importante fator do significado que coube a Portugal na era das grandes navegações e contatos com povos das diferentes partes do mundo.

Conflitos e lutas dos osmanos e dos cristãos europeus determinaram a história do Mediterrâneo no século XVI, deixando profundas marcas na cultura religiosa do Ocidente: a vitória de Lepanto, em 1571, continuou através dos séculos a ser lembrada sobretudo na tradição mariana, no culto a Nossa Senhora da Vitória e do Rosário, sendo a festa do Rosário instituída em 1572.

Memória da Reconquista em tradições do Brasil e de outros países

A Reconquista deixou traços profundos na tradição popular, sendo representada até hoje em „lutas de cristãos e mouros“ ou outras expressões de similares sentidos em países como São Tomé e Príncipe e Brasil. É compreensível, assim, que o estudo e a análise dessas tradições tenham constituído importante objeto no âmbito dos estudos de processos culturais relacionados com Portugal e com o mundo extra-europeu marcado pelos portugueses.

Se essas representações já tinham sido estudadas por muitos autores na área da pesquisa do folclore no Brasil, o início dos estudos euro-brasileiros em meados da década de 1970 na Europa passou a tratá-las nas suas inserções mais amplas em processos culturais. Essas reflexões e análises foram conduzidas em ciclos de estudos e encontros em diferentes contextos, na Europa e em países da África do Norte e da Ásia, entre êles no Marrocos, em 1977 (Veja), na Turquia (1985/6) (Veja) e em Malta (1987) (Veja).

Paralelamente, desenvolveram-se estudos de referências em fontes históricas, em particular da documentação missionária, procurando-se analisar as informações no contexto mais amplo de processos culturais. Resultados desses estudos foram tratados em conferências e seminários em instituições de Roma, sendo então a problemática também considerada sob o aspecto teológico e da Ciência Comparativa das Religiões. A perspectiva culturológica abriu novas possibilidades de análise das tensões seculares entre o Islão e o Cristianismo.

Estudos de fundamentos de um conflito inerente ao sistema cultural

O direcionamento da atenção a concepções e imagens de um edifício cultural revelou que nele se encontram os fundamentos desse conflito e que possuem implicações para a própria concepção do homem, ou seja, possuem dimensões antropológico-culturais. 

Essa problemática foi exposta por ocasião do colóquio inter-cultural promovido pela ABE e levado a efeito no Centro Cultural São Paulo em 2004 por motivo dos 450 anos de fundação de São Paulo. Lembrou-se, então, que não é pelo fato do Brasil não ter experimentado diretamente conflitos com muçulmanos que a problemática não mereça ser considerada com atenção sob a perspectiva brasileira: o país foi descoberto em época e em contexto fundamentalmente por ela marcado.

O complexo temático esteve novamente em pauta no ciclo de estudos realizado na Índia, em particular em diálogos na Diocese de Goa, em 2011. (Veja) Teve prosseguimento na Malásia, no mesmo ano. (Veja)

Retomada de estudos de tensões Islão/Cristianismo no arquipélago malaio

A retomada desses estudos no arquipélago malaio à luz das preocupações do presente, focalizou novamente as tensões entre o Islão e o Cristianismo em Malaca, dirigindo porém agora a atenção à participação da Turquia nos combates muçulmanos contra a cidade portuguesa no século XVI.

Essa participação merece ser considerada com atenção, pois traz à consciência os elos internos na esfera islâmica através de vastas regiões do globo, relacionando desenvolvimentos do Mediterrâneo com aqueles da longínqua região asiática. Sendo não só a Malásia país islâmico, mas também a Indonésia - hoje a de maior população islâmica do mundo e que vivencia grande intensificação religiosa -, essa consideração do passado adquire particular relevância atual.

Malaca possui hoje, aos pés do monte com as ruínas da igreja de S. Paulo (Veja), ao lado da Porta de Santiago e no recinto da antiga fortaleza, um grande museu dedicado ao Islão no mundo.

Memória dos ataques e sucessos de Aceh em Malaca

Todo aquele que visita o seu centro, junto à ponte da cidade velha e ao forte a beira-rio, é confrontado com placa informativa que lembra o papel que sempre desempenhou a questão da defesa de Malaca na sua história. 

Nela apresentam-se antigas imagens dos ataques a Malaca portuguesa por forças islâmicas de Aceh, o sultanato ao norte de Sumatra que mais combateu a cidade cristã, assim como dos ataques de holandes na conquista da cidade e as medidas de defesa que estes por sua vez tomaram.


Aceh possuia uma tradição islâmica mais antiga do que outras regiões da atual Indonésia. Devido à sua posição geográfica, foi atingido muito cedopelo Islão em expansão no Índico, provavelmente já no século VIII . Após a criação de reinos islâmicos de Perlak, Pasai e de Tamiah, o de Aceh significou que já em fins do século XIII o Islão já estava estabelecido na região.


O sultanato de Aceh, originado em 1496, ganhou em potência comercial com a vinda de muçulmanos fugidos de Malaca após a conquista da cidade pelos portugueses em 1511. Compreende-se, assim, que Aceh tenha-se tornado o principal inimigo dos portugueses, então identificados como cristãos em geral. A inimizade entre Aceh e Malaca tinha fundamentos religiosos e razões históricas derivadas da conquista.


O papel da Turquia nos ataques de Aceh contra os portugueses

A atualidade dos desenvolvimentos políticos e da intensificação religiosa na Turquia, assim como as tensões entre esse país e a Europa leva a que se lembre em particular do apoio turco aos ataques islâmicos contra Malaca no século XVI.

Im 1566, Aceh enviou emissários a Istambul, pedindo apoio na luta contra os portugueses. O poder osmânico enviou uma grande esquadra que, inicialmente com 15 naves, atingiu Aceh com dois navios, aos quais outros se seguiram. Aceh tornou-se uma espécie de protetorado osmânico.

Relações comerciais entre europeus e Aceh puderam desenvolver-se com as atividades da Companhia Neerlandesa da Índia Oriental que, em 1602, estabeleceu uma representação em Aceh.

A história posterior é marcada por conflitos e guerras, estreitamente relacionadas com questões religiosas internas ao próprio Islão. Os muçulmanos de Aceh combateram o Islão antes popular e heterodoxo dos Minangkabau e entraram em conflito com os holandeses que defenderam esses últimos.

Presenciação da batalha de 1547 por S. Francisco Xavier (1506-1552)

Há um documento da história missionária que tem sido pouco considerado nos estudos referentes aos conflitos Islão/Cristianismo. Trata-se de uma longa carta que Francisco Xavier SJ escreveu a Dom João III (1502-1557) em Goa, logo após o seu retorno de Malaca, a 20 de Janeiro de 1548.

Nela, o missionário menciona a armada que ali foi formada para um ataque contra os dachens/achens - as forças de Aceh - possibilitada por capitais particulares e na qual muitos homens de Malaca lutaram. Entre êles, S. Francisco Xavier salienta a participação nos combates de Diogo Soares como capitão do maior navio da frota, e que teria levado à morte de muitos dachens.

O Jesuíta lembrava que o seu pai tinha sido capitão de galés e galeões, vivera na Índia durante vinte anos, tendo sido morto pelos „mouros“, justificando assim o empenho de Diogo Soares no combate ao Islão. (Carta de Xavier a D. João III, 20 de Janeiro de 1548, Documentação para a História das Missões do Padroao Português do Oriente: India, coligida e anotada por António da Silva Rego IV, Lisboa: Fundação Oriente/Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1991, 23)

A menção de Diogo Soares de Melo ou de Albergaria, o „Galego“ na carta de Francisco Xavier merece particular atenção sob a perspectiva dos estudos relacionados com o Brasil. Chegado à Índia ao redor de 1538, com má fama de violência e de pirataria, livrara-se da prisão apenas devido ao apoio de Martim Afonso de Souza (1500-1564), o sucessor de Estêvão da Gama (ca. 1505-1576).

A carta de Francisco Xavier permitiu, assim, dar prosseguimento, em Malaca, dos etudos euro-brasileiros levados a efeito no Museu Martim Afonso de S. Vicente (Veja) e na cidade que leva o seu nome de Madagascar: Diego Suarez/Antsiranana (Veja). Atingindo Malaca em 1547, ali permaneceu sob ordens do seu protetor, o rei de Birma, onde tinha alcançado grande fortuna e posições de alta influência.

Essa carta de Francisco Xavier é de interesse sob muitos aspectos, não deixando porém de colocá-lo em luz pouco favorável. Não só causa estranheza - embora compreensível pela situação da época e pelo seu condicionamento cultural - a sua posição perante a morte de tantos dachens. Também pela sua recomendação ao rei de uma pessoa de fama duvidosa pela sua violência e atos de pirataria devido a seus méritos e emprêgo de capitais na luta contra o Islão a sua carta surge como estranha para um „apóstolo do Oriente“.

O mais questionável, porém, é o uso que faz do sistema do Padroado Português apesar de ser enviado e representante de Roma na sua intervenção na esfera portuguesa. No pedido que faz ao D. João III de recompensa a Diogo Soares e a outras pessoas que empregaram capitais e combateram na luta contra Aceh usa o recurso de colocar pêso de consciência no rei de Portugal. Recompensar os homens que participaram na luta contra o Islão em Malaca serviria para o descargo de consciência do rei!

De ciclo de estudos da A.B.E. sob
a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A..“„Mouros X Cristãos“. O sultanato islâmico Aceh da Sumatra em guerras contra Malaca e o turcos à luz de desenvolvimentos atuais na Europa, na Turquia e na Indonésia - relendo uma carta e S. Francisco Xavier S.J. (1506-1552).
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 167/9(2017:3). http://revista.brasil-europa.eu/167/Aceh_Islao_e_Cristianismo.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
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