Malaca em „Retalhos d‘uma Odyssea“
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 167

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Malaca, Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Malaca, Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Malaca, Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Malaca. Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.

 


A.A.Bispo
N° 167/13 (2017:3)


Malaca em visões de processos históricos - narrativas e imagens
à luz de tensões políticas na Coréia entre China e Japão no passado e no presente

Releitura de
„Retalhos d‘uma Odyssêa“ de António de Campos Júnior (1850-1917)
nos 100 anos de seu falecimento

Reflexões no People‘s Museum (Muzium Rakyat), Malaca

 

Estudos de processos culturais em relações internacionais, em particular aqueles voltados às interações entre o Ocidente e o Oriente, levantam questões historiográficas, não só de levantamento e de leitura de fontes, mas sim também de perspectivas na consideração de fatos e decorrências.

Essas visões do passado também são condicionadas pelos contextos nos quais se inserem aqueles que contemplam e interpretam a história e podem e devem, assim, ser consideradas sob o aspecto de processos e processualidades.

Estudos culturais e estudos da própria ciência (science studies) - em particular daquela de análise de correntes de pensamento e rêdes de pensadores -relacionam-se em complexas interações. Esta é uma constatação que vem marcando há décadas as reflexões euro-brasileiras. Essas preocupações remontam a discussões na área da Metodologia da História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo à época da fundação da organização voltada a estudos de processos culturais em 1968.

As perspectivas interdisciplinares então resultantes trouxeram à consciência, porém, que não só procedimentos históricos, mas também empíricos e sistemáticos interferem-se mutuamente.

Não só a história é indispensável aos estudos de processos culturais. Também aqueles que partem predominantemente de observações no presente e de intuitos de análise de estruturas e mecanismos ou a partir de reflexões filosóficas e ideológicas não podem deixar de considerar a filosofia ou ideologia de seus autores. A própria história revela a preocupação do homem em detectar ordenações, estruturas e mecanismos no seu próprio caminho no decorrer temporal.

O centro histórico de Malaca como área museal

Malaca, Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Essas reflexões ganharam em atualidade no ciclo de estudos euro-brasileiros levados a efeito em 2017 em Malaca. Este ciclo realizou-se após 20 anos de encontros em Macau e Hong Kong por motivo da passagem desses territórios à China, em 1986/1987. Nessa ocasião, assim como em viagens posteriores promovidas pela ABE à China (Veja) e a bairros chineses em Penang, Malásia (Veja) e em outras regiões do mundo, questões culturais relacionadas com a imigração chinesa estiveram repetidamente na esfera dos trabalhos euro-brasileiros.

Aquele que entra no antigo centro de Malaca fica surpreendido pela intensidade da presença chinesa na histórica cidade malaia. Templos, lojas comerciais, restaurantes e músicos ambulantes testemunham também em Malaca o significado de grupos populacionais chineses na Malásia e trazem à memória a relevância de Malaca na história das relações do Ocidente com o Extremo Oriente.

O significado do porto de Malaca no Estreito de mesmo nome no passado - que hoje cabe a Singapura - marca a fisionomia do centro histórico da cidade. Este surge como uma grande área museal, com muitas instituições culturais instaladas aos pés da colina com as ruínas da igreja do outeiro em área arqueológica da antiga fortaleza portuguesa. O conjunto de diferentes museus que ali se encontram trazem exemplarmente à consciência de problemas historiográficos nas suas relações com aqueles dos estudos culturais.

O People‘s Museum (Muzium Rakyat), aberto em 1992, trata da história de Malaca sobretudo sob o aspecto do desenvolvimento técnico a benefício do bem-estar da população e do progresso econômico de Malaca. O museu possui além o mais uma seção dedicada aos esportes de Malaca, uma galeria da comunidade e uma seção da UNESCO.


A seu lado situam-se outros museus, de Tecnologia, etnográficos e científico-naturais e, entre êles, nas proximidades, o do Islão no Mundo.
As escavações arqueológicas revelam fundamentos de construções portuguesas do século XVI e, não muito distante, à beira-rio, encontra-se o reconstruído galeão português „Flor-do-Mar“ do Museu Marítimo com
exposições sobre a história de Malaca sob a perspectiva malaia. (Veja)

Já pelo fato do People‘se Museum encontrar-se em edifício construído sobre as ruinas de construção holandesa evidencia subtituições, superposições, deslocamentos e interferências históricas e, paralelamente, de perspectivas e avaliações de desenvolvimentos.

Nesse complexo museológico e histórico, onde a sensibilidade é aguçada para questões de diferentes posicionamentos na escrita da história, coloca-se também o problema, do ponto de vista euro-brasileiro, das visões historiográficas no referente a Malaca em Portugal e, por extensão, no Brasil.

Lembrando o historiador António Maria de Campos Júnior (1850-1917)

Nessas reflexões, lembrou-se de António Maria de Campos Júnior (1850-1917), militar, historiador e escritor português cujo centenário de morte é rememorado no corrente ano.

Nos seus „Retalhos d‘uma Odyssêa“, texto publicado em jornal e republicado em forma revista em Ta-Ssi-Yang-Kuo - Arquivos e Anais do Extremo-Oriente Português, de J.F. Marques Pereira,  em 1889-1900 (Lisboa: José Bastos, série II - vol.III-IV), Campos Júnior expõe concepções de história, focalizando Malaca com especial atenção. O seu estudo foi reeditado nos seus dois primeiros volumes em 1984 pela Direcção dos Serviços de Educação e Cultura (Arquivo Histórico de Macau), sendo esses e o terceiro volume republicados em fac-simile pela Direcção dos Serviços de Educação e Juventude e Fundação Macau, em 1995.

Através de artigos em jornais portugueses (O Século, Diário de Notícias, A Tarde e outros) e sobretudo através de peças teatrais, Campos Júnior foi também conhecido no Brasil, especialmente em meios da imigração portuguesa.

Como historiador, dedicou-se a épocas e vultos portugueses, estabelecendo elos entre o passado e o presente, ou interpretando o passado à luz de ocorrências da sua época. Assim procedendo, a sua atuação como historiador relacionou-se estreitamente com a política nacional e internacional da passagem do século XIX ao XX.

Sendo açoriano, nascido em Angra do Heroísmo, Campos Júnior foi considerado em encontros na Missão Católica de Colonia à época da constituição do Instituto de Estudos da Cultura Musical no Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS), então sob a direção do Dr. Armindo Borges, também originário dos Açores. Voltou a ser considerado nos ciclos de estudos euro-brasileiros realizados em Macau, em 1996/7.

Atualidade: conflitos entre o Norte e o Sul da Coréia

Devido a seu procedimento historiográfico - a consideração do passado motivada por acontecimentos atuais - os „Retalhos d‘uma Odyssêa“ adquirem singular atualidade.

Os problemas internacionais que hoje se levantam com as tensões no Extremo Oriente - Coréia do Norte e Sul, China e Japão - trazem à consciência, aqueles que levou a Campos Júnior escrever o seu estudo nos anos de 1890.

Trata-se da guerra de 1894/1895, a assim-chamada primeira guerra entre o Japão e a China. Motivo de guerra foram conflitos quanto à Coréia e a posse do palácio de Seoul pelos japoneses. O desfecho da guerra, com a derrota da China, marcou processos históricos de grandes consequências: Coréia como estado independente, Formosa/Taiwan como colonia japonesa, e a consciência, por parte da China, da sua necessária modernização.

Já na abertura do seu texto, o autor menciona que foi a guerra entre o Japão e a China que veio evocar na sua alma de patriota a memória da odisséia portuguesa de marinheiros, de comerciantes, de missionários e de exploradores científicos nessa distante região do Oriente.

A tradição deixada - como em todos os continentes - era segundo êle mais duradoura e grandiosa do que os padrões levantados nas terras descobertas.

Singularmente atual, Campos Júnior salienta com essas palavras a importância da memória e a superioridade de um patrimônio cultural imaterial àquele material.

Significado da história em visões amplas de decorrências

Estreitamente relacionada com esse ponto de partida é a imagem que expõe do procedimento histórico como um subir de alta montanha. Essa imagem foi considerada em outro contexto cultural da segunda metade do século XIX: o do Hino Alpino de Antonio Carlos Gomes (1836-1896). (Veja)

Campos Júnior utiliza aqui uma linguagem visual de remotas origens e que parte da diferença entre os baixos de terras úmidas, encharcáveis, insalubre e de miasmas com as alturas de melhor atmosfera, de ar puro, onde „os condores voam“. Também essa menção a condores indica uma imagem corrente na sua época, tendo sido decantada em „O Condor“ de Carlos Gomes.

Nessas alturas, abria-se para o autor o panorama de oitocentos anos de história e avistava-se o horizonte distante da obra dos portugueses. Era esse subir às alturas que possibilitava assim também uma nova auto-consciência patriótica. A história possibilitava uma elevação de mente acima da deprimente situação de Portugal da época, da sua fraqueza militar, das dívidas, da miséria, interrompendo, por instantes, o esmorecimento do tempo presente. Das alturas da história, os problemas do presente pareciam menores.

„Dobremos por um pouco a estatistica pobrissima dos nossos arsenaes, o balancete desanimador dos nossos haveras, a conta atormentadora das nossas dividas, o libello tristissimo das nossas miserias, e subamos para quebrar, ao menos por instantes, esse esmorecimento, que umas vezes se desafoga na lastima piégas dos nossos erros e outras se mascara no sarcasmo d nossa propria desventura.// Lá de cima talvez nos pareçam mais pequenos esses a quem a fortuna distanciou de nós. (...)“

Enquanto nações mais ricas enviavam naves de guerra ao Extremo Oriente em tempo de guerra, Portugal lembrava de suas ações no passado.

O autor salienta que os dois países então em guerra, a China e o Japão, antigos rivais, tinham sido tirados pelos portugueses da nebulosidade de fatos pouco concretos e lendas. Tinham sido navios portugueses os primeiros que da Europa singraram os mares dessa região distante.

Se a esquadra de Afonso de Albuquerque (1453-1515) fora a primeira que levantara a bandeira do Cristianismo no Mar Vermelho, a pequena frota de Fernão Peres d‘Andrade (?-1552) a primeira da Europa que esvoaçara ante as muralhas de Kuang-Tung, a Cantão dos geógrafos portugueses.

Mencionando Fr. Gaspar da Cruz (1520-1570) como iniciador da propagação cristã na China e autor do primeiro texto moderno sobre o país após a obra do veneziano Marco Polo, Campos Júnior salienta terem sido os portugueses aqueles que abriram caminho em Cantão à entrada do Cristianismo e que fizeram, do „árido retalho de Macau“ a primeira e durante três séculos a única possessão européia na China e o primeiro empório do comércio exclusivo com o Japão e o império chinês.

Portugal conseguira chegar a esses países e impenetráveis ao comércio direto com a Europa „anulando“ nos mares as antigas linhas comerciais de Genova e Veneza, „arrancando“ aos persas e aos muçulmanos o monopólio comercial do Oriente.

Campos Júnior lembra particularmente que o Japão foi revelado mais claramente ao Ocidente pelos comerciantes e pelos missionários portugueses. O predomínio português no Japão afirmara-se de forma positiva através de uma instituição de caridade, o hospício e o asilo de Funai.

Antigas tensões entre a China e o Japão e a estrategia portuguesa

Novamente voltando à questão então atual da guerra entre a China e o Japão, Campos Júnior lembra que os portugueses defrontaram-se com as antigas rivalidades entre chineses e japoneses relacionadas com a Coréia, que o Japão havia já dominado. O orgulho chinês, que em tempos remotos levara as suas conquistas até às fronteiras do Indostão, não podia conformar-se com as reinvidicações japonesas. 

Os portugueses não quiseram, porém, segundo Campos Júnior, explorar esse ódio remoto, recusando propostas que iriam quebrar a neutralidade entre os dois países. O historiador lembra de Fernão Mendes Pinto (1509-1583) - o „Marco Polo da Renascença“ - e Bento de Góis (1567-1607), o explorador científico. Salienta terem sido um missionário o realizador dos primeiros trabalhos europeus acerca da lingua chinesa e missionários portugueses aqueles da língua japonesa.

Os portugueses teriam sido no Extremo Oriente sobretudo navegadores, comerciantes, catequistas e exploradores científicos. Não chegaram a ser conquistadores, uma vez que cedo esgotou-se a energia de Portugal.

Significado da história no estado de espírito de desalento português

O texto de Campos Júnior manifesta o quanto essa visão da história servia para levantar o ânimo dos portugueses, oferecendo uma lição e estímulos perante o desalento e a tendência de portugueses de sua época de, admirando outros povos, entregarem-se ao desconsolo perante a própria decadência.

„Que raça, grande e forte, nós fomos! Expansiva, intrepida, confiada na sua próspera estrella, alma ao largo e ao longe, o sangue a referver-lhe na febre de arrojadas ambições, o coração a pulsar-lhe de orgulho pela propria audacia, como ella cruzou o mundo - (...) - com os seus marinheiros, os seus missionarios, os seus soldados, os seus commerciantes, os seus exploradores e os seus colonos! E que altiva lição nos ficou d‘essa actividade, d‘essa perspicacia, ‚essa iniciativa emprehendedora, d‘essa valentia d‘anomo, que tanto admiramos hoje em outros povos, quando, n‘um riso de escarneo, traduzimos a exageração desconsoladora da nossa decadencia!“ (pág. 4)

Compreende-se, relendo Campos Júnior, posições e pontos de vista que já preocupavam a comunidade luso-brasileira em fins dos anos de 1960 e início dos de 1970, quando de muitas partes de salientava que os estudos culturais, musicais e demopsicológicos relativos a Portugal não podiam orientar-se somente segundo as sempre lembradas características de tristeza, nostalgia, saudade, de uma mentalidade decantada em fados. (A.A.Bispo, "O Fado e a questão do Ethos luso e luso-brasileiro", Brasil-Europa & Musicologia: Aulas, Conferências e Discursos, Colonia: I.S.M.P.S., 1999, 262-266)

Rivalidade Gênova/Veneza, concorrência de Veneza com Lisboa e o Egito

Após oferecer um panorama geral da história anterior à expedição de Vasco da Gama (1469-1524) e das conquistas dos portugueses no Oriente sob o ponto de vista dos conhecimentos que se tinha na Europa acerca da China e do Japão da Antiguidade à Idade Média, Campos Júnior termina por considerar a rivalidade comercial e política entre Gênova e Veneza e que se manifestara na história de vida de Marco Polo, lembrando da suposição de que os seus conhecimentos teriam dado impulsos ao infante D. Henrique (1394-1460) e à escola de Sagres.

É nessa ampla visão analítica de concorrências européias nos seus elos com potências muçulmanas que Campos Júnior insere as suas considerações sobre Malaca.

O apogeu português advindo de riquezas do Oriente, da África e do Brasii, e que levara Lisboa a transformar-se em metrópole de um império colonial até então jamais visto, despertava tanto animosidades por parte de Veneza como também despertava temor aos muçulmanos.

Na análise do autor, o Egito desempenhou nesse campo de tensões um papel importante. Era o país da esfera islâmica mais interessado em que o comércio com o Oriente não fosse desviado da antiga linha do Mar Vermelho e que punha em risco o significado de Alexandria.

Ligada ao Egito por comuns interesses mercantís, Veneza pediu-lhe auxílio perante os empreendimentos portugueses. O Egito, incitado por interesses comerciais, de expansão islâmica e de preponderância, passou a colocar obstáculos aos portugueses através de mamelucos e „mouros“, concitando contra os portugueses os reis de Calecut e de Cambaia, movendo contra Portugal uma tenaz guerra com o concurso de turcos e de venezianos.

Os portugueses, porém, „varreram do Mar Vermelho as frotas mahometanas, os nossos solados batram os mamelukos e subjugaram os potentados orientaes, e os nossos commerciantes e missionarios annullaram a influencia dos mouros, ricos e prestigiosos em todo o littoral da Asia.“ (op.cit. 69)

Campos Júnior prepara assim a sua consideração de Afonso de Albuquerque (1453-1515) e a tomada dos três maiores centros do comércio oriental - Ormuz, Goa e Malaca.

Voltando à imagem da visão que se obtém do alto da montanha, o autor decanta a visão ampla de Albuquerque, que num „lance d‘aguia“ descortinou as bases do imperio e da prosperidade e onde podia atingir mais fundamentalmente os inimigos.

A Albuquerque é conferido no texto um papel importante na decadência de Veneza e no processo que levou ao fim da preponderância do Egito.

„A odisséia portuguesa não sobresaltara somente Veneza, feria tambem os maometanos, preponderantes na Asia, arrogantes dominadores em Constantinopla. O egito era o potentado maometano mais diretamente interessado em que o comercio o Levante não fosse desviao da antiga linha do Mar Vermelho. Ligada ao Egito por interesses mercantis, Veneza foi pedir-lhe o auxili para que ficasse improficua a descoberta dos portugueses. Veneza procurou empurrar contra os portugueses o Egito, movido pelos seus interesses de comercio, de religiao e de preponerancia.  O Egito empenhou-se naquela liga comercial, concitou contra os portugueses os reis de Calecut e de Cambaya, mouveu uma guerra tenaz com o concurso dos turcos e dos venezianos. Os portugueses varreram do Mar Vermelho as frotas maometanas, os soldados bateram os mamelucos e subjugaram os potentados orientais, os comerciantes e missionarios anularam a influencia dos mouros, ricos e prestigiosos em todo o litoral da Asia. Albuquerque apoderar-se dos tres maiores emporios do comercio oriental - Ormuz, Goa e Malaca.“ (ibidem)

Opulência de Malaca, amizade com chineses e inimizade com muçulmanos

Campos Júnior salienta ter sido Malaca, uma das maiores e mais ricas cidades do Oriente no século XVI, lembrando das riquezas encontradas por Albuquerque na conquista da cidade, a lendária Aurea-Chersoneso: bandeira e canhões dos vencidos, especiarias das Molucas, ouro e prata do Japão, brocados, pérolas e louças da China.

Na visão do autor, porém, também aqui o aspecto imaterial era o principal da ação portuguesa: a „noção prática, incontroversa, da existencia d‘aquelles dois extraordinarios paizes“. (op.cit., 70).

Campos Júnior centua que em Malaca eram numerosas as colonias de comerciantes da China e do Japão e grande o tráfico entre a cidade e aqueles países.

Albuquerque, se foi implacável com os muçulmanos que ali encontrou, ordenou que fossem respeitados os chineses e japoneses que ali viviam, comerciantes ou tripulantes de juncos.

„Previa claramente que este acto de generosiade, excepcional n‘aquelles tempos, havia de tornar-nos mais facil e seguro o caminho para o Extremo-Oriente.//Em relação aos chinezes era mais do que generosidade: era gratidão“. (op.cit., 70).

Os portugueses já eram conhecidos em Malaca antes da sua conquista. Dois anos antes, em 1509, ali chegara a esquadra de Diogo Lopes de Sequeira (1466-1530), vinda de Sumatra, onde estabelecera um padrão. Recebido pelo soberano local, celebrou um tratado e ali estabeleceu uma feitoria portuguesa, confiada a Rui de Araujo. Os comerciantes muçulmanos da cidadem temendo a concorrência, teriam incitado intrigas, ódios e hostilidades. 

„Em toda a parte o mouro contra nós, o inimigo irreconciliavel de quatrocentos annos, na represalia tradicional das nossas luctas sangrentas com elles, na Peninsula e na Africa!“.  (op.cit., 71)

O autor descreve o plano de traição, de assassínio de portugueses durante um banquete no palácio do sultão ao qual tinham sido convidados e como Lopes de Sequeira, tomando conhecimento da conspiração, não aceitou o convite.

Campos Júnior oferece nesse contexto o motivo da gratidão dos portugueses para com os chineses: teriam sido navegadores de quatro juncos chineses ancorados no porto que primeiramente o avisaram.

Já ao chegar ao porto tinham sido chineses que o preveniram contra os muçulmanos. Um novo plano do potentado, porém, utilizando-se de homens armados camuflados de mercadores, levou à tragédia que custou a vida de muitos portugueses que se encontravam na cidade. Os comandantes dos navios portugueses decidiram então que se castigasse a traição, queimando ou pondo a pique todas as embarcações, com exceção dos juncos chineses.

Quadros históricos - dramatizações e posições historiográficas

O quadro pintado por Campos Júnior desse acontecimento, nas dimensões do texto e na dramaticidade da exposição, serve a uma narrativa que serve para salientar a simpatia e os estreitos elos dos portugueses com a China e que teria fundamentos nos acontecimentos que teriam antecedido à tomada de Malaca.

Essas ocorrências teriam sido importante fator na decisão tomada por A. de Albuquerque para a sua conquista. Malaca devia passar a ser a base das expedições comerciais ao Extremo Oriente.

A ação violenta de Albuquerque teria representado um pagamento da traição dos muçulmanos para com Lopes de Sequeira. Quando a sua esquadra surgiu em Malaca, o sultão ainda procurou novamente com astúcia demonstrar amizade, recusava-se porém a libertar Rui d‘Araujo tomado como refém. (op.cit. 73)

Após os primeiros incêndios, deu liberdade para alguns portugueses cativos, mas Albuquerque passou a exigir indenizações pelos danos causaos aos portugueses, assim como um terreno para a construção de uma fortaleza. Percebendo que o sultão dava-se tempo para receber ajuda, Albuquerque ordenou o ataque à cidade. (op.cit. 74)

Campos Júnior não quis entrar em detalhes sobre essa luta. Limitou-se também aqui a pintar quadros a serviço da narrativa, capazes de chamar a atenção do leitor e mover as suas emoções.

Pinta o ataque à mesquita, em luta corpo a corpo, descrevendo a chegada do sultão em defesa dos seus combatentes. Menciona nesse contexto, também em descrição de alto teor pictórico e dramatúrgico, que talvez tenha sido a primeira ação militar em que os portugueses tiveram que repelir os grandes elefantes de guerra.

Lembrando os elefantes nas lutas entre os romanos e cartagineses, o autor salienta que, em Malaca, teriam sido os elefantes que mais aceleraram a derrota dos muçulmanos. Atacado o elefante do sultão, debandou este espavorido, matando muitos combatentes.

O ápice de dramaticidade comovedora da cena dá-se no texto de Campos Júnior com a menção de que Rui de Araújo, capturado como outros portugueses e ameaçados de morte, enviara a Albuquerque um bilhete em que, patrioticamente, dizia que estaria pronto a sacrificar-se para não por obstáculos á conquista.

Campos Júnior justifica a importância por êle dada à conquista de Malaca e que superava a atenção que dera a outros feitos da história militar portuguesa na Ásia.

Essa sua atenção era devida ao fato de que a posse da famosa cidade fora essencial para as relações comerciais e para a ação religiosa e política dos portugueses na China e no Japão. Se os portugueses não tivessem dominado o estreito de Malaca, era seguro que não teriam chegado àqueles distantes países.

De ciclo de estudos da A.B.E. sob
a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.“Malaca em visões de processos históricos - narrativas e imagens à luz de tensões políticas na Coréia entre China e Japão no passado e no presente. Releitura de „Retalhos d‘uma Odyssêa“ de António de Campos Júnior (1850-1917)“
.Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 167/13(2017:3).http://revista.brasil-europa.eu/167/Antonio_de_Campos_Junior.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

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