A
Flor do Mar reconstruída em Malaca
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 167

Correspondência Euro-Brasileira©

 



Malaca, Foto A.A.Bispo 2017. Copyright
Malaca, Foto A.A.Bispo 2017. Copyright
Malaca, Foto A.A.Bispo 2017. Copyright


Malaca. Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.

 


A.A.Bispo
N° 167/5 (2017:3)


A Flor do Mar (Froll de la Maar) reconstruída em Malaca
Relações entre a história da navegação e a do comércio em perspectiva malaia
crítica a um sistema monopolizador e protecionista atribuído a portugueses

Museu Marítimo de Malaca, 2017

 
Malaca, Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

O Museu Marítimo de Malaca merece ser considerado com atenção especial nos estudos de processos culturais relacionados com Portugal e países cuja história foi marcada pela ação e pela presenca de portugueses.

Esse significado é devido sobretudo à réplica de uma histórica nave da época da conquista de Malaca: a Flor do Mar (Flor de la Mar, Frol de la Mar), uma das mais ambiciosas construções navais portuguesas da história das relações entre a Europa e o Oriente do século XVI. Essa nave entrou na história devido aos problemas que apresentou em várias ocasiões e pelo seu trágico fim logo após a conquista de Malaca (1511), quando naufragou às costas da Sumatra.

Malaca, Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Esse seu fim e o fato de ter levado ao fundo do mar os despojos obtidos da vitória a caminho de serem levados a Portugal marcaram a imagem da Flor do Mar na historiografia e nas tradições, fomentando suposições imaginosas. Sobretudo o fato de guardar no seu bojo tesouros do último sultão de Malaca desperta idéias de fabulosas riquezas. Os Lusíadas decantam a opulência de Malaca, lembrando da antiga Quersoneso e de Ofir das Escrituras:


Dizem que, desta terra, co‘as possantes
Ondas o mar, entrando, dividiu
A nobre ilha Samatra, que já dantes
Juntas ambas a gente antiga viu;
Quersoneso foi dita, e das prestantes
Veias d‘ouro que a terra produziu,
‚Áurea‘ por epíteto lhe ajuntaram;
Alguns que fosse Ofir imaginaram.

(Canto CXXIV)

Descobrir esses tesouros seria de interesse para a mais exata avaliação da situação de Malaca conquistado por Afonso de Albuquerque (1453-1515). O seu resgate tem sido sobretudo requisitado por questões de propriedade dessas riquezas, se elas deveriam pertencer à Malásia, a Portugal ou à Indonésia.

Considerada como sendo o mais valioso navio naufragado do mundo, teria sido encontrada no Estreito de Malaca, sendo que o local exato do naufrágio poderia ser identificado por satélite. O valor dos bens que se encontram no fundo do mar é avaliado em ca. e 80 bilhões e dólares.

A Flor do Mar é assim objeto de interesse para estudos da história da navegação e mesmo da história cultural e de um folclore do mar.

Malaca, Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Memória de uma nave legendária de Portugal em Malaca

Malaca, Foto A.A.Bispo 2017. Copyright
Reconstruída e colocada na área museal, próxima ao centro da cidade e junto às águas, a nave abriga uma exposição de cartazes e objetos referentes à história de Malaca nas suas relações com o mar.

Esse museu é uma instituição singular em diferentes sentidos. Merece atenção o fato de ser a conquista portuguesa e a história posterior neerlandesa e britânica lembrado em nave portuguesa no centro de uma cidade de país islâmico.

Celebrar um passado marcado pela derrota das forças islâmicas no século XVI numa réplica de nave dos conquistadores - e não numa réplica de embarcação local - é fato que incentiva reflexões.

Além do mais, o papel que nela desempenha o malaio-português Christopher De Mello, merece ser registrado, uma vez que revela elos com a memória e com a identidade da comunidade de remotas origens portuguesas do „bairro português“ de Malaca.

A nave surge como imagem significativa de uma surpreendente conservação de consciência de individualidade diferenciada e subsequentes esforços de reconstrução do passado por parte da comunidade de descendentes de portugueses. (Veja)

A Flor do Mar na construção naval portuguesa para a carreira da Índia

A Flor do Mar foi construída em Lisboa, em 1502, para a carreira da Índia. Foi a maior nau até então construída, duas vezes maior do que as embarcações até então empregadas.

É uma nave que merece particular atenção nos estudos de construção naval, sendo significativo que a ela dê-se tanta atenção no Museu Marítimo de Malaca. As reflexões giram em torno de diferenças entre a nau, a caravela, o galeão (Raúl Sousa Machado, „Das Barcas aos Galeões“, Navios e navegações - Portugal e o Mar, Oceanos 38, Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses 1999, 98ss.).

A atenção, porém,volta-se sobretudo ao termo carraca. um nome que tem a sua correspondencia no termo flamengo kraeck e que levanta dúvidas terminológicas. A carraca ter-se-ia desenvolvido a nau e da caravela, sendo porém muito maior e mais pesada do que esta.

A sprimeira viagem da Flor do Mar deu-se sob o comando de Estevão da Gama (1430-1497), quando constatou-se ser de difícil manobra em regiões de correntes rápidas do cabo das Correntes no canal do Moçambique, retornando a Portugal em 1503.

Em 1505, comandada por João da Nova (ca.1460-1509), tomou parte da sétima frota portuguesa à Índia, com 22 navios e que levava D. Francisco de Almeida (ca.1450-1510), primeiro vice-rei da Índia.

Na viagem de retorno, em 1506, enfrentou de novo problemas no canal de Moçambique. Realizou várias viagens e participou durante anos de importantes acontecimentos no Índico.

Sob João da Nova, a nau participou da conquista de Socotra. Permaneceu no mar da Arábia a serviço da esquadra de Afonso de Albuquerque (1453-1515). Tomou parte na conquista de Curiati e Muscat em 1507, de Khor Fakkan e Ormuz.

Serviu como nau de D. Francisco de Almeida na batalha de Diu, em 1509.

Embora tivesse Almeida planejado levar a Flor do Mar de volta a Portugal, o seu sucessor Afonso de Albuquerque manteve-a na Índia. Sob Albuquerque, participou da conquista de Goa, em 1510, assim como a de Malaca, em 1511.

Em fins de 1511, ao trazer de retorno Afonso de Albuquerque após a conquista de Malaca, afundou durante uma tempestade no Estreito de Malaca, na costa da Sumatra,região do reino de Aru.

Navegação e comércio: transformações trazidas pelos portugueses

Malaca, Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Os visitantes de Malaca são confrontados já no centro histórico da cidade com placa informativa na qual se salientam as relações entre o significado do porto local e do rio de Malaca no comércio do Estreito.

Essas informações refletem um intuito por parte das instituições oficiais em salientar que essa extraordinária importância do porto de Malaca antecedeu à chegada dos portugueses, tendo sido a razão de terem para ali navegado. Durante o sultanato, o porto tornara-se o mais movimentado do mundo, e isso devido a dois fatores: a segurança garantida no Estreito de Malaca e a condução em fairness dos negócios, o que explicava a confiança dos comerciantes de diferentes regiões. Os tratos estavam sob o controle de um mestre do porto, que era aquele que tinha a palavra final nas transações.

Embora tivesse continuado a desempenhar um papel de importância na navegação, o porto teria sofrido com a mudança do sistema comercial sob os portugueses e, também, sob os holandeses.

Segundo o Museu, a posição alcançada antes da chegada dos europeus era devida ao livre comércio, os portuguêses e holandeses, porém, teriam implantado um sistema baseado em monopólio, levantando altas taxas, o que levou ao afastamento de comerciantes. Com os ingleses, Singapura passou a estar no centro dos desenvolvimentos, caindo Malaca, cujo porto também perdia calado, a uma posição secundária.

Encenações do comércio anterior aos portugueses na Flor do Mar

Essa visão da história é tratada com mais pormenores e encenada no bojo da nau Flor do Mar do Museu Marítimo.


Tratando da administração do comércio do porto de Malaca, ali explica-se que os capitães, chegando a Malaca, deviam dar notícia ao mestre do porto (Syahbandar) e, através dele, obter o consentimento do sultão.

Subsequentemente, trocavam-se presentes e entrava-se em acordo sobre direitos comerciais, facilidades portuárias e provisões de depósito.

Um comitê especial tinha a tarefa de determinar as taxas. Tinha o objetivo de savalguardar o interesse de Malaca, assim como o de comerciantes. Um grupo de mercadores de Malaca negociava o preço dos bens com os capitães ou seus representantes. Os bens eram então distribuidos e comercializados no porto, nas tendas do bazar ou em barcos atrelados na ponte.


O principal período de comércio era entre os meses de dezembro e março, quando chegavam navios da Ásia ocidental e oriental. Os jungos, botes e navios de Java e das Ilhas de Especiarias traziam mercadorias durante os meses de maio e setembro.

As águas eram patrulhadas pela marinha compreendida pelos nativos e pelos Orang Laut sob o comando de um admiral. Milhares de árabes, persas, gujeratis e outros comerciavam aqui, onde se falava um total de 84 línguas.

Tradicionalmente, havia um sistema de comércio de trocas onde a quantidade de bens pertencentes a uma parte era trocada por outros considerados de igual valor. Mercadores malaios e estrangeiros poderiam fazer esse tipo de comércio com aborigines como os Jakuns, Semang e Senoi. Produtos da floresta, como resina, sizal, sândalo, raízes eram trocados por potes, pratos e vasilhas, sal, tabaco e outros produtos trazidos por mercadores do estrangeiro.

A exposição lembra que esse tipo de comércio era também praticado na comunidade malaia, especialmente em praças de mercado onde ocorria concentração popular. Mercadores estrangeiros que vinham a Malaca também participavam desse tipo de comércio. Esse sistema decaiu a partir da introdução do sistema monetário.

Intuitos implícitos à crítica ao sistema comercial português em Malaca

O principal intuito que se percebe na exposição é - como na placa oficial de informação turística - o de salientar o livre comércio, o que teria sofrido sob os portuguêses. Estes teriam praticado um sistema de moou a ser monopólio do govêrno. Os oficiais eram funcionários cujo salários eram pagos de acordo com a sua posição e papel na hierarquia.

Sob esse sistema, navios no Estreito de Malacca eram forçados a atracar e pagar taxas antes de obter permissão de comércio a taxas fixas, sob pena de punimentos severos, incluindo confiscação de bens e afundamento de navios.

O curso da ação forçaram mercadores estrangeiros, especialmente muçulmanos, de comerciar com outros portos como Aceh, Brunei, Pattani e Johor.

Esse sistem impunha uma taxa básica de 5% sob o valor total da carga. Mercadorias da China eram taxadas de 10% enquanto que de Bengala de 8%. Entretanto, alimentos não eram sobrecarregados de taxas de importação, uma vez que Malaca dependia de alimentos importados.

Como os autores da exposição salientam, os portugueses não puderam sustentar o monopólio, sendo suplantados por portos rivais e vizinhos. O desejo de monopolizar o comércio de especiarias em Terrate e Tidore, o da pimenta em Keah e o tin em Perak não pôde ser realizado.

A exposição, assim, vê, nos portugueses, devido ao sistema monopolizador introduzido, um fator relevante, senão o principal na decadência do porto de Malaca. Sugere, implicitamente, que aqui residiria a principal causa de um desenvolvimento que, posteriormente, levaria ao extraordinário sucesso de Singapura sob os britânicos.


De ciclo de estudos da A.B.E. sob
a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „ A Flor do Mar (Froll de la Maar) reconstruída em Malaca. Relações entre a história da navegação e a do comércio em perspectiva malaia - crítica a um sistema monopolizador e protecionista atribuído a portuguese.“
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 167/5(2017:3). http://revista.brasil-europa.eu/167/Flor-do-Mar.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller,
N. Carvalho, S. Hahne