Imaginação em Educação Musical
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 167

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 167/15 (2017:3)



Imaginação, Plano e Figuras em Educação Musical
Pela defesa da livre imaginação em Educação Musical


Guilherme Antônio Celso Ferreira
Professor Adjunto da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Brasil

 

GUILHERME ANTÔNIO CELSO FERREIRA

Guilherme Antônio Celso Ferreira nasceu em 1973 em Belo Horizonte. Graduou-se no curso de Composição da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG em 2000. Iniciou Mestrado em Composição na Universidade de Washington (EUA) sob orientação do professor Joel-Francois Durand, mas foi aceito para o programa de doutoramento direto na UNICAMP, onde se titulou doutor em processos criativos pelos Instituto de Artes, sob orientação de Sílvio Ferraz. Por dez anos, Guilherme lecionou Contraponto, Musicalização, Apreciação e Percepção Musical na Fundação de Educação Artística - FEA, em Belo Horizonte, onde, anteriormente, foi aluno em cursos ministrados por Dante Grela. Atuou como docente na EMESP (Escola Villa-Lobos) em São Paulo, na Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG e na Oi-Kabum, escola de arte e tecnologia, onde foi coordenador pedagógico. Como compositor, teve seu trabalho retratado no filme Matéria de composição, do diretor Pedro Aspahan, em 2013. Guilherme Antônio Celso Ferreira é professor adjunto na Escola de Música da UFMG na área de Licenciatura, desde o ano de 2013.


 
Guilherme Antonio Celso Ferreira


Introdução

 

Christian von Ehrenfels, em seu artigo On Gestalt-Qualities (1937, p. 521), nos diz que a teoria da Gestalt começa com a pergunta: o que é uma melodia? No entanto, a aplicação dos conceitos das teorias da Gestalt tem sido mais amplamente utilizada nas artes visuais. Parte dos problemas quanto à empregabilidade desses insights na música são debatidos em um artigo de Mark Reybrouck (1997).

 

Tentaremos fazer uma breve revisão da história desses conceitos e da importância deles para a fundamentação dos atuais preceitos de pensamento musical ou do neologismo Audiation  (GORDON, 2000, p. 15-40), traduzido neste trabalho como Audiação, dentro de um contexto de Educação Musical. Utilizaremos a poesia de William Blake com suas tensões e paradoxo como guia para a construção de uma rota que nos leve a propor, ao que se espera, uma maneira criativa de retratarmos essas questões.

 

Com o título The Marriage of Heaven and Hell Blake (1988, p. 33-45) implica a união de forças antagônicas utilizando-se de uma miríade de forma que vão de poesia a provérbios, de sátiras a paródias. Blake desconstrói a visão tradicional que coloca a razão acima das demais paixões. Ele enxerga a energia (e a imaginação) em conflito com a razão como sendo uma força fundamental para a vida, isso em um período histórico entusiasmado pelos ideais do Iluminismo. Não é preciso dizer que essa perspectiva também se chocava com o establishment religioso da época.

 

Esse livro de Blake é de uma radicalidade ímpar para sua época, e em certa medida é tido como uma antecipação tanto de ideias de Karl Marx como de Sigmund Freud (e também de certa maneira como antecipação de Nietzsche). Repleto de ironias, o céu é representado como cheio de saberes convencionais e de bondade, mas na verdade uma metáfora para o conservadorismo, e o inferno é representado cheio de energia, de força, criativo e imaginativo.

 

Blake nos oferece mais que uma crítica, ele estava imbuído de uma visão. Em The marriage of Heaven and Hell ele imagina uma dialética entre repressão e desejo e uma maneira de unir esses contrários. Blake despreza a separação tradicional e cartesiana entre corpo e mente buscando e propondo ao invés disso que o corpo é uma extensão do espírito, se aproximando, assim, mais da noção dos incorporais dos antigos estoicos gregos do que a nossa noção de corporeidade.

           

O poeta nos propõe uma limpeza e purificação da percepção para libertarmos nossa imaginação. Blake foi um dos primeiros defensores da liberdade sexual. Nos Provérbios do Inferno (1988, p. 35-38), Blake ataca fortemente a fé tradicional: "As prisões são construídas com pedras da Lei, Bordéis com tijolos da Religião."


Enquanto que a razão é analítica para Blake, a imaginação é uma força de fusão capaz, inclusive, de unir contrários e de vencer conflitos que a razão não consegue. Embora a obra seja descrita como um casamento - e Blake se retrata como um profeta ao lado de Ezequiel e Isaías - a obra retrata disputas e choques, e todos os conflitos nesta obra satírica são vencidos pelas forças satânicas.

 

Blake herda do poeta John Milton uma visão mítica sobre as Américas. Elas podem ser vistas em Paradise Lost (1667) como evocações do Éden e do Pandemonium, respectivamente os modelos colonizadores no norte e no sul das Américas e os impérios Inglês e Espanhol.

 

Já, ressonante com isso, David Hume, filósofo inglês, conhecido pelos seus escritos sobre o entendimento humano, chegou a deduções bastante céticas quanto ao conhecimento do mundo empírico. Como todo empiricista, ele argumenta que nossas ideias são como que imitação de impressão dos nossos sentidos, uma vez que ideias geralmente se sucedem à impressão dos sentidos. Hume já argumentava, inspirado em Locke, que havia três princípios de associação entre ideias: semelhança, contiguidade espaço-temporal e causa e efeito.

 

Para a escola alemã que estava interessada no estudo da percepção, a Gestalt, elaborou sobre essas bases estabelecidas por Hume. De acordo com a Gestalt, nós teríamos princípios inatos, tais como os da proximidade (duas coisas que estão próximas parecem estar “juntas”), da similaridade (duas coisas que se assemelham parecem estar “juntas”), o do fechamento (closure) e da boa forma que nós usamos para organizar as partes dos eventos em uma unidade, um todo.

 

A psicologia da Gestalt e o Behaviorismo tem uma relação interessante. A Gestalt surgiu do Behaviorismo e ao mesmo tempo o opôs. De acordo com a Teoria da Gestalt, a mente humana não é passiva na percepção, pelo contrário ela organiza e molda o que percebe ativamente. As relações de figura e fundo e a percepção de movimento, por exemplo, são campos de estudo para seus teóricos. O que consideramos aqui é que esses dois campos (cinético e figural) seriam também de ordem do musical e de maneira mais abrangente dos discursos sonoros.

           

Os proponentes da Gestalt estavam interessados na atenção seletiva e pelo fato de que ela estava centrada no observador ao contrário do Behaviorismo, para o qual a mente do observador tinha pouca importância.

 

A terapia da Gestalt, a palavra significa “inteiro” em alemão, coloca sua ênfase na unidade do corpo e da mente, tal como Blake se interessava. A meta de tal terapia é conseguir certa afinação com (e entre) nossas ações de maneira a descobrir quais sentimentos se encontram escondidos. Uma vez revelados, o paciente pode escolher padrões mais saudáveis aplicáveis à situação. O comportamento humano é determinado pelo mundo da percepção e não pelo mundo da sensação. Portanto, diferentes pessoas terão diferentes realidades.


Quanto à similaridade, em Doctrine of the Similar, Walter Benjamin (1999 p. 694) nos diz que existe uma poderosa faculdade mimética que perpassa toda a linguagem. Ela é constatada em jogos infantis, no pensamento mágico e sobrevive nas onomatopeias e, de certo modo, de acordo com ele, na caligrafia, compondo assim dois lados da linguagem: um lado mágico e um lado semiótico.


A repetição e a imitação são coisas distintas. Por outro lado, a dificuldade de se retratar o que seria a cópia em música é uma questão central. A cópia exata, a repetição literal, tentada no minimalismo, por exemplo, muitas vezes leva mesmo assim à imitação ou à entropia, como observamos acima. A repetição é a repetição do mesmo, e a imitação é, a princípio, aberta a alguma transformação de elementos da estrutura.

 

Existe uma redução de entropia na repetição, provinda da capacidade do cérebro humano de automatizar. Depois de um certo número de repetições, por exemplo, na coordenação de um movimento motor, o cérebro não mais precisa monitorar continuamente esse movimento, liberando a mente para outras funções.


Quanto à proximidade de elementos, vamos recorrer novamente a Blake e seus ensinamentos em The marriage of Heaven and Hell, quando nos diz que para conhecermos os limites de determinada coisa só é possível se nós ultrapassarmos tais limites. As bordas são feitas ao serem ultrapassadas. “O verme perdoa o arado que o corta”, Provérbio do Inferno.

 

No campo da educação musical, Edwin Gordon (2000) propõe o conceito de Audiação, que entendemos como um pensar musical, ou pensamento musical. Gordon estava preocupado com o desenvolvimento do ouvido tonal especificamente, mas podemos generalizar em grande parte sua abordagem, e é a este pensamento que pretendemos alinhar com a teoria da Gestalt para ver se rendemos algum fruto.

 

De acordo com Gordon, a Audiação é desenvolvida em estágios. Ele identifica 6 (seis) estágios em seu desenvolvimento. No primeiro estágio, o músico é capaz de fazer apenas “retenção momentânea” de elementos. Já no segundo estágio, ocorre “a imitação e audiação de padrões tonais e rítmicos e reconhecimento e identificação de um centro tonal”. Em um terceiro estágio, “o estabelecimento da tonalidade e da métrica, objetiva ou subjetiva”. No quarto estágio, a “relembrança dos padrões tonais e rítmicos organizados e audiados noutras peças musicais” e, finalmente, no sexto, a “antecipação e predição de padrões tonais e rítmicos”.


O que se percebe no esquema de Gordon é a centralidade da imaginação (antecipação) e da memória (lembrança) no desenvolvimento da escuta. O músico experiente é capaz de, ouvindo, audiar (imaginar musicalmente) trechos musicais que tenham relação com o que ele escuta, além de improvisar e selecionar livremente, baseado no que ele imagina.

 

John Keats, outro expoente do romantismo Inglês, escreveu: “Melodias escutadas são doces, as imaginadas são mais doces ainda!”

 

A guisa dos fundamentos da prática musical

           

Mas voltemos ao som, e à pergunta inicial desse artigo (e à de Ehrenfels) precisamos considerar o fato de que a música, e consequentemente as melodias, são feitas de sons (e ruídos) organizados, sons de discurso, sons (e ruídos) em um “plano”, sons que foram e são imaginados.


A questão parece estar em ampliarmos o conceito de “sons organizados” na definição de música, para incluir sons além das notas tradicionalmente consideradas partes do idioma musical como também novos tipos de organizações discursivas.

 

Uma questão que se coloca é a de que nem tudo que é som é uma nota. Temos o que se chama de ruído (Geräusch), Ehrenfels (1932, p. 522). O autor entendia o mundo sonoro como repleto de Gestalten. Os sons da fala, para ele, eram constituídos de vogais (notas) e consoantes (ruídos). Ehrenfels, no artigo supracitado, nos fala também de ruídos (geräusche), componentes da fala, e de consoantes como Gestalten. Assim, o discurso humano é repleto de gestalten, e a fala humana e o entendimento humano se dão pela compreensão de Gestalten.

           

Nos sons da língua falada na nossa lida diária, as palavras que usamos para nossa comunicação, as que compõem a nossa rica e rebuscada prosódia, podem ser classificadas e agrupadas quanto à rítmica, no caso do português, em três grupos apenas. São eles:

          

As oxítonas (1) com acento na última sílaba, como em “café”; as paroxítonas (2) com acento na antepenúltima sílaba, como em “mato”; e, por último, as proparoxítonas (3), como em “última”. Assim, temos ao nível da rítmica uma organização de elementos possíveis no plano das palavras. Poderíamos imaginar aqui a aplicabilidade dos conceitos propostos por Grosvener W. Cooper e Leonard B. Meyer em The rhythmic structure of music (1963, p.6).


São com esses elementos rítmicos básicos que em português se formam todas as Gestalten da linguagem. Temos um plano de acentuação, de stress dinâmico dado em cima das palavras, como também um jogo de direcionalidades no campo tonal. Em música, o elemento básico da melodia também apresenta as mesmas propriedades de stress e direcionalidades, formando frases musicais.

           

O elemento básico da música é então a nota/som, o “sinal” que é então passível de ser organizado pela forma da série harmônica, e de ser analisado como fenômeno.

 

Retornando ao que se passa pela “nota/som”, pelo elemento básico do discurso musical, Daniel Levitin na obra This is your brain on music (2006, p. 14-16), diz que os parâmetros do som são: um “som” (cor), altura, durações,  tempo (bpm), contorno (direcionalidade), timbre, volume, localização (ou espacialização) e reverberação.          

 

A melodia é então algo especial, uma espécie de entidade que ocorre no tempo com um ritmo determinado. Ela é algo que memorizamos e que identificamos como um todo, algo inteiro, completo, com uma identidade própria. A melodia é algo bem delineado. Mesmo para quem não consegue cantá-la, é possível reconhecê-la, pois ela deixa suas pistas claras.


Que detenhamos uma certa estrutura geral de certas melodias é fato de interesse e relevância. Somos capazes de reconhecer sua estrutura central como sendo geradora de padrões diversos e inusitados. Tendo como referência o estudo de análise proposta por Schenker, Heinrich, no Free Composition (1935), demonstra a manifestação de eventos, como por exemplo, a maneira de capturar as forças de impulso e resolução, no entorno do conceito de Urlinie (ou linha primordial) e da unidade de apreensão como aspecto possível da consciência humana.  Outrossim, passar a considerar regras como a de tratar os saltos com cuidado, com a tendência a compensa-los por graus conjuntos em movimento contrário. Ainda, compor exercícios quebrando regras metodicamente, após ter tentado segui-las, ou seja, privilegiando graus conjuntos, zelando atentamente pelos saltos e criando discursos sonoros. Dessa forma, a partir de seu próprio tema, compor variações.

 

Similaridade

 

O importante aqui é imaginarmos e lembrarmos que para Ehrenfels teríamos tanto melodias de notas quanto melodias de sons, ou melhor, teríamos melodias de sons/notas. E é isso que está em jogo com o plano, com o fundo. Quais são nossas figurações disponíveis e que incluem, a princípio, tanto notas quantos outros sons possíveis?

           

As ideias de Ehrenfels nos parecem assim tão radicais e com aplicabilidade atuais. Quais jogos possíveis de figura e fundos, quais possíveis jogos de luz? Como se combinam esses elementos no discurso sonoro? Como se dariam os movimentos nesse plano? Poderiam ser catalogados, discernidos e/ou discretizados? Tais planos possuem também um nível de contrastes, de caricaturas?  Diagramas? 

 

Temos no plano sonoro agora o que seriam a proposições, as melodias, os agrupamentos desses átomos, os “sons/notas” em figuras subindo e descendo, ou oscilando, formando agenciamentos, curvas, linhas e vetores. Símbolos, e de alguma maneira todos os sinais, atos e gestos podem ser ordenados como sendo termos, proposições e argumentos em uma lógica que remonta àquela da semiótica de C. S. Peirce.


Cabe perguntar: É a lógica que percebemos na música tomada de empréstimo da lógica que aprendemos da linguagem natural, ou se é um outro caso, ainda mais especial? Seria a música um campo onde certas propriedades da linguagem são possíveis, enquanto que na linguagem verbal elas estão ausentes? A ausência mesma do verbal pode ser relativizada assim, algo é compartilhado entre o verbal e a esfera musical, por exemplo, a direcionalidade dos elementos é uma marcação presente nos dois campos.


Termos (palavras), sentenças (frases) e enunciados (discursos) são parte integrante da lógica do discurso que também se aplicam em relação com nossas Gestalten em sala de aula. Essa divisão trinitária está de acordo com as categorias peirceanas - e iremos encontrar a presença do pensamento peirceano em outros lugares também! Temos finalmente, então: Notas (pulsos e sons), melodias (figuras e motivos) e formas musicais (discursos sonoros).

 

Desta maneira, poemas seriam formas possíveis de argumentos em arranjos intensamente intrincados e rebuscados. Além da dedução, indução e abdução (analogia!). Poesias são demonstrações de afeto!(s) Poetas escrevem em uma linguagem diferente. Eles usam as palavras de um modo diferente. Eles jogam com as palavras de modo que nos fazem pensar profundamente sobre linguagem e realidade.


A poesia é uma forma de argumentação. É uma maneira de concatenar frases, de modo tal a produzir um “sentido”, um entendimento, uma verdade. Algo infalsificável! Algo que pode ser, portanto, discernido. Vemos, por exemplo, Cruz e Souza refletir em Missal e Broquéis (1998) sobre o poema Sabor: “Por fim, as palavras, como têm colorido e som, têm do mesmo modo, sabor.” Podemos pelo menos imaginar que sabor seria esse? Podemos propor isso como exercício de imaginação em nosso plano de aula?

           

Proximidade

 

Temos, portanto, a noção de ordem, de agenciamento, de processamento, de organização, de verdade, de argumentação, do autêntico e do real. Temos isso porque vivenciamos a experiência diária dessas coisas. O que está próximo tende a se agrupar. Isso ocorre no tempo e isso ocorre no espaço.

 

As formas dos silogismos possuem analogias musicais. Metáforas e metonímias também, como “clima” e não como uma definição ou identidade. Mas dada essa estruturação extremamente lógica, essa ordenação chega a ser possível. A menção de uma sala em uma construção, naturalmente pode levar à enumeração de outros espaços e salas contíguos nessa construção.

 

Se pensarmos no tipo de frase que Gertrude Stein trama, concatena, em The Making of Americans (1925), perceberemos que a autora se vale da construção de outra natureza discursiva em relação à convencional. Neste épico do solo, das terras e do espaço norte americano e ao mesmo tempo do mundo, ou do homem no mundo, Gertrude Stein nos dá novamente Homero na América profetizada por um John Milton. Temos uma família mítica, mas, contudo, uma família americana.


Isso pode levar à conectividade de unidades um pouco dessemelhantes. Isso pode levar ao “espalhamento”, bem como à dispersão de elementos. Os símbolos não são mais os mesmos, e Odisseu agora é outro. A questão da vizinhança é central na percepção: nós percebemos através das vizinhanças.

 

Causa e efeito

 

Chegamos ao raciocínio clássico, à causalidade. Cognições do tipo: Se isso, então aquilo. (p –> q). Uma programação, um algoritmo. Eles são possíveis no plano musical? Dada certas condições em algumas premissas, a afirmação a seguir é verdadeira, ou o fato a seguir procede ou tem existência.

 

É importante lembrar que o mundo dos estoicos, essa maravilhosa tradição espiritual, como diz Émile Brémhier em seu trabalho A teoria dos incorporais no estoicismo antigo (2012), o mundo dos estoicos é composto de princípios espontâneos, contendo vida e atividade neles mesmos, e nenhum deles pode ser dito propriamente o efeito do outro. A relação de causa e efeito entre dois seres está completamente ausente de sua doutrina. Se há relação, ela é de outro gênero: esses princípios são, antes, momentos ou aspectos da existência de um único e mesmo ser, o fogo, cuja história é a própria do mundo.

 

Enuncia-se assim a divisão trinitária como previsto em C. S. Peirce, uma Fenomenologia trata das qualidades universais dos fenômenos em seu caráter fenomenal imediato, neles mesmos enquanto fenômenos. Destarte, trate dos Fenômenos em sua primeiridade. A ciência normativa trata das leis da relação dos fenômenos com os fins; isto é, trata dos Fenômenos em sua Segundidade, e a terceira grande divisão sendo a metafísica, a reflexão, ou a livre imaginação!


Para nos relembrarmos da atualidade da força da poética de Blake, é bom atentarmos para o fato de que Charles Bernstein cita o poeta inglês no século XXI, enquanto nos tenta falar sobre o nascedouro do sentido, da imaginação.

A poesia é também uma forma única de tecer argumentos. Vejamos, por exemplo, o experimento de linguagem e imaginação poética que Castro Alves nos retrata em O Laço De Fita, em Espumas Flutuantes (1997, p. 83), seu livro de poemas de 1870. A atenção do leitor é conduzida, enlaçada do início ao fim, sutil e ao mesmo tempo brutalmente, num gesto que é pueril e imponente, do qual se resta um traço ligado a afetos.


 O laço de fita

 

Não sabes, criança? 'Stou louco de amores...

Prendi meus afetos, formosa Pepita.

Mas onde? No templo, no espaço, nas névoas?!

Não rias, prendi-me

Num laço de fita.

 

Na selva sombria de tuas madeixas,

Nos negros cabelos da moça bonita,

Fingindo a serpente qu'enlaça a folhagem,

Formoso enroscava-se

O laço de fita.

 

Meu ser, que voava nas luzes da festa,

Qual pássaro bravo, que os ares agita,

Eu vi de repente cativo, submisso

Rolar prisioneiro

Num laço de fita.

 

E agora enleada na tênue cadeia

Debalde minh'alma se embate, se irrita...

O braço, que rompe cadeias de ferro,

Não quebra teus elos,

Ó laço de fita!

 

Meu Deus! As falenas têm asas de opala,

Os astros se libram na plaga infinita.

Os anjos repousam nas penas brilhantes...

Mas tu... tens por asas

Um laço de fita.

 

Há pouco voavas na célere valsa,

Na valsa que anseia, que estua e palpita.

Por que é que tremeste? Não eram meus lábios...

Beijava-te apenas...

Teu laço de fita.

 

Mas ai! findo o baile, despindo os adornos

N'alcova onde a vela ciosa... crepita,

Talvez da cadeia libertes as tranças

Mas eu... fico preso

No laço de fita.

 

Pois bem! Quando um dia na sombra do vale

Abrirem-me a cova... formosa Pepital

Ao menos arranca meus louros da fronte,

E dá-me por c'roa...

Teu laço de fita.


Conclusão: Por um mundo de planos mais pluralistas

 

José Ortega-y-Gasset em On the Concept of Sensation  (1975, p. 99) adverte:


Quando nós percebemos algo e é algo que realmente nos interessa, nós vivemos completamente no ato da percepção. Pode haver outros atos envolvidos, mas estaremos vivendo completamente envolvidos no ato daquilo que estamos percebendo.            


Um chamado assim para a força da percepção é também um chamado para a imaginação. Em nossas salas de aulas, devemos promover a imaginação e a criatividade. A imaginação está em constante flerte com a percepção. É a preocupação com a questão da atenção de inspiração na teoria da Gestalt. É certamente um jogo. A intenção é saber a qual tipo de jogo está se referindo em um plano capaz de manifestar inúmeros outros jogos, os mais diversos tipos, modalidades, subgrupos e suas singularidades?           

           

A sensação, o sentir é o que está em jogo no desenvolvimento da percepção. O que vem a ser a sensação? O que é uma sensação? É possível descrevê-la? Como Proust nos retrata em Em busca do Tempo Perdido quando faz com que memórias explodam na cabeça de um personagem de toda uma vida passada em uma região da França em tempos passados? É possível fazer de outra forma? De uma maneira estruturalista? Formal? Por meio de uma equação, um grafo, um diagrama, de maneira a não conduzir a imaginação do observador? De incitar uma diferença. De provocar um “choque”. Talvez passar por uma metamorfosis!.

 

São incontáveis as possibilidades de investigação a respeito da educação musical, e o campo é promissor. Tudo depende mesmo da intenção e atenção durante o processo de percepção. É em torno do saber que se compartilha em conjunto que se constrói uma comunidade. Buscar práticas de ensino não convencionais é consequência natural do exercício da livre imaginação.

       

Poderíamos concluir relembrando Maura Penna em seu belíssimo livro Música(s) e seu Ensino, onde em um artigo intitulado: “Música(s) e seu Ensino: reflexões sobre cenas cotidianas” (2008, p. 65) aponta:


Cabe reconhecer, finalmente, que a predominância do modelo conservatorial, a sua força como padrão de um “ensino sério de música” e, ainda, a falta de questionamento desse modelo são fatores que dificultam e atrasam a renovação das práticas pedagógicas e metodológicas. Portanto, deixemos pra trás as práticas fixas da tradição, buscando construir alternativas que atendam às necessidades dos diferentes contextos em que a educação musical pode atuar, comprometendo-se sempre com um projeto de democratização do acesso à arte e à cultura.


 

O próprio conceito de audiação, portanto, é delineado pelo avanço e a prática livre da imaginação musical, seja por meio da improvisação dentro dos tipos progressivos de audiação (escutar, ler, escrever música familiar ou não familiar, etc.) ou pela escuta prospectiva ou antecipação (predição de padrões espectros-temporais) nos estágios de audiação (retenção momentânea, imitação, estabelecimento de centro tonal, etc.). A imaginação, no entanto, é livre, mas ao mesmo tempo submetida a certas leis (ou tendências) de associação, criando forças associativas e dissociativas com possíveis rupturas nos pulsantes eventos do real.



Referências bibliográficas


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BRÉHIER, Émile. A teoria dos incorporais no estoicismo antigo. Tradução de Fernando Padrão Figueiredo e José Eduardo Pimentel Filho; transliteração e tradução do grego de Luiz Otávio Mantovaneli. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. 


COOPER, Grosvenor, and Leonard B. Meyer. The rhythmic structure of music. Vol. 118. University of Chicago Press, 1963.


EHRENFELS, C. V. On Gestalt-qualities. Psychological Review 44.6 (1937): 521.

Gasset, José Ortega Y. Phenomenology and art, 1975.


GORDON, Edwin. Teoria de aprendizagem musical. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.


LEVITIN, Daniel J. This is your brain on music: Understanding a human obsession. Atlantic Books Ltd, 2011.

 

PEIRCE, Charles Sanders. "Collected Writings (8 Vols.). Harvard University Press, Cambridge 58, 1931.

 

PENNA, Maura. "Música (s) e seu ensino." Porto Alegre: Sulina, 2008.

 

SCHENKER, Heinrich. "1979. Free Composition." Trans. and ed. E. Oster. New York, 1935.


TEIXEIRA, Ivan. Missal; Broquéis. Martins Fontes, 1998. Reybrouck, Mark. Gestalt concepts and music: Limitations and possibilities. Springer Berlin Heidelberg, 1997.

 


Ferreira, Guilherme Antônio Celso.“Imaginação, Plano e Figuras em Educação Musical. Pela defesa da livre imaginação em Educação Musica“.. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 167/15 (2017:3). http://revista.brasil-europa.eu/167/Guilherme-Ferreira_Imaginacao_em_Educacao_Musical.html