Henrique - o primeiro malaio no Brasil
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 167

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Malaca, Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

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Malaca. Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.

 


A.A.Bispo
N° 167/6 (2017:3)


Henrique de Malaca, o primeiro malaio que esteve no Brasil
O personagem
Panglima Awang - o „Magalhães malaio“
História e ficção a serviço de patriotismos no Sudeste Asiático
e sua dramatização na literatura

Reflexões euro-brasileiras na „Flor do Mar“ do Museu Marítimo de Malaca

 

O interesse pela Malásia nos estudos euro-brasileiros não deixa de causar estranheza numa primeira aproximação. Por demais distante no tempo e no espaço parece ser a Malásia para justificar viagens de estudos como aquelas promovidas pela ABE em diferentes ocasiões.

De fato, uma cidade como Kuala Lumpur pouco parece oferecer em subsídios para o desenvolvimento de estudos que relacionem a Malásia e o Brasil.

Penang, ao contrário, abre muito mais amplas possibilidades, dirigindo também a atenção a relações com a China, a chineses no comércio do Estreito, a chineses na imigração, a malaio-chineses e a interações culturais com harmonizações de imagens e concepções, o que também é de fundamental importância para Malaca. (Veja)

Do ponto de vista histórico, porém, nenhuma cidade da Malásia supera Malaca como ponto de partida para estudos Malásia-Brasil nas suas inserções mais amplas no âmbito dos estudos de processos culturais do arquipélago malaio nas suas dimensões globais.

Ali, as ruínas que testemunham a presença portuguesa no século XVI e início do XVII representam os seus principais bens patrimoniais, procurados por malásios e visitantes de muitos outros países, entre outros da Índia e de outras regiões da Ásia que experimentaram no passado a ação dos portugueses.

Sobretudo os indianos confrontam-se em Malaca com um passado estreitamente vinculado com a história de seu próprio país, do antigo Estado Português da Índia, em parte submerso ou silenciado na atualidade.

Goa e Malaca não podem deixar de ser consideradas nas suas fundamentais relações e as ruínas de Malaca trazem à consciência que foi a partir de Goa que iniciou-se a história da presença e das ações portuguesas em Malaca.

A conquista da cidade-estado, em 1511, quando Afonso de Albuquerque (1453-1515 ), segundo prescrições do Vice-Rei da Índia, venceu as forças do sultanato ali estabelecido, fazem também ressurgir na memória o contexto amplo representado pela ação portuguesa contra a expansão e o domínio islâmico na Ásia que se processava tanto na Índia como no arquipélago malaio.

O combate aos muçulmanos e os sucessos dos portugueses na Índia levaram pelo que tudo indica a uma ainda maior concentração do poder econômico, do controle do comércio do Estreito, da dominação islâmica nas ilhas do Sudeste asiático e sua islamização religioso-cultural.


Atualidade de estudos de Malaca: conflitos com o Islão e malaio-portugueses

É justamente essa focalização à problemática da expansão e dominação islâmica combatidas pelos portugueses que demonstra a relevância e sobretudo a atualidade da consideração dessa esfera do globo nos estudos de processos culturais no presente.

A atualidade de conflitos e guerras no mundo islâmico e das tensões causadas no Ocidente pela imigração e fortalecimento de identidade islâmica de grupos sociais em países europeus - e subsequentes reações de movimentos nacionais e identitários - constituem principais preocupações de estudos de processos culturais voltados ao presente. Levantando questões teóricas de natureza fundamental, dizem respeito também a estudos culturais relacionados com o Brasil. (Veja)

Malaca não dispõe apenas de ruínas, mas sim de uma comunidade malaio-portuguesa que, apesar dos muitos séculos que a distanciam do passado português cultiva a memória dessa época a serviço de uma identidade diferenciada no contexto malásico.

Tem-se, nesse cultivo, um extraordinário e surpreendente fenômeno que merece ser considerado com atenção em análises de processos culturais e é justamente nesse contexto que se encontra também um ponto de partida para estudos malaio-brasileiros.

História e construção de história sob o signo do patriotismo malaio


É significativo sob diferentes aspectos que na exposição no bojo da nave „Flor do Mar“, uma réplica da legendária nau do Museu Marítimo de Malaca (Veja) empreste-se particular atenção ao primeiro malaio que percorreu o mundo, tornado popularmente conhecido através da novela ou romance histórico de ficção Panglima Awang, de Harun Aminurrashid (Harun bin Mohd Amin) (1907-1986).

O autor, malaio nascido em Kampung Telok Kurau, Singapura, tornou-se conhecido pelo uso de material histórico nas suas obras. Como principal representante desse gênero de literatura, insere-se em processos culturais de reafirmação de identidades nacionais locais em décadas históricas marcadas por correntes nacionalistas em várias partes do globo - também no Brasil.

O emprêgo de dados históricos do protagonista e de ocorrências expostas no romance Panglima Awang é marcado por liberdade literária no uso de dados históricos. É, assim, uma elaboração na qual interage a imaginação do autor com fatos comprováveis em fontes.

Essa história-ficção de 1957, publicada a partir de 1958 em várias edições e idiomas,  deu origem a um quase mito que, correspondendo a aspirações autovalorizadoras dos países da região, difundiu visões históricas e promoveu o ufanismo em diversas nações na segunda metade do século XX.

Exigindo ao mesmo tempo correções, Panglima Awang tornou-se assim uma problemática historiográfica marcada por dissensões entre aqueles voltados a construções históricas sob o signo nacionalista e patriótico de valorização regional - como o historiador filipino Carlos Quirino (1910-1999) na década 1980 - e aqueles que procuram conduzir uma pesquisa histórica exclusivamente baseada em fatos verídicos fundamentados em fontes.

O personagem central do romance - Panglima - baseia-se no escravo Enrique, conhecido das fontes como Enrique, ou Henrique de Malaca. As fontes históricas que mencionam o seu nome são o relato de viagem de Fernão de Magalhães (1480-1521) do cronista proveniente da República de Veneza Antonio Pigafetta (ca.1491-ca.1534), o testamento de Magalhães e a lista dos marinheiros da expedição de circum-navegação do mundo (1519-1522).

O „Magalhães malaio“ na exposição da „Flor do Mar“ em Malaca

A exposição na „Flor do Mar“ apresenta um breve resumo da novela Panglima Awang a partir de sua edição de 1964.

O protagonista surge no romance como tendo sido capturado ao dirigir um movimento anti-português, o que levou a ser extraditado a Portugal. Esse exílio é ponto de partida do seu envolvimento com a viagem ao redor do mundo de Fernão de Magalhães, destinada à procura da Ilha das Especiariais.

O texto da exposição expõe resumidamente o fato de Magalhães não ter encontrado reconhecimento e apoio de D. Manuel I (1469-1521), deixando então Portugal. Dirigindo-se à Espanha, nação concorrente e inimiga de Portugal, encontrou ali junto a Carlos I (1500-1558) o apoio a seu projeto. A rota tomou a direção ociental, cruzando o Atlântico e o Pacífico, circundando a América do Sul, uma vez que a rota pelo Cabo da Boa Esperança estava marcada pela presença portuguesa.

Após meses de atribulações várias, motins, falta de água, doenças e pragas, a expedição atingiu Cebu, nas Filipinas. Logo após a morte de Magalhães e a tragédia da „Death Feast“, Panglima abandona a expedição e navega de volta a Malaca para dar continuidade à sua luta contra o imperialismo (sic) e reconciliar-se com a sua noiva Tim Gayah.

Panglima, retornando por fim às Filipinas, teria realizado a circum-navegação do mundo, cabendo assim a um malaio a verdadeira consecução do projeto de Fernão  de Magalhães e, consequentemente uma posição de primeira grandeza na historia marítima, dos conhecimentos e do contato entre povos e culturas.

Esse „Magalhães malaio“ surge não só como um herói de nações da região como vulto de uma epopéia que demonstrou na prática a possibilidade de alcançar o Oriente pelo Ocidente e o fato já há muito suposto de ser a terra um globo.

O texto exposto expõe de forma segura que Panglima teria sido o Magalhães malaio pelo fato de ser o primeiro homem que navegou através do mundo, completando a circum-navegação de Magalhães (na realidade meia circum-navegação). Confirmando que Enrique não teria navegado de volta à Malaca, salienta que o mais importante é o fato de ter retornado a seu arquipélago malaio e ao contexto de sua língua e cultura.

No relato de A. de Pigafetta, o nome de Henrique de Malaca surge no momento do atracamento em Cebu, no dia 28 e março de 1521, quando Enrique atuou como intermediário ou intérprete. A questão do conhecimento ou não da língua local por parte de Henrique tem sido discutida de modo controverso e dela baseiam-se suposições quanto à sua origem.

A questão da origem de Henrique de Malaca: Filipinas, Sumatra, Taprobana

Segundo o romance e a construção do mito histórico, Panglima teria sido originário das Filipinas, a ela retornando no decorrer da expedição de Fernão de Magalhães.

Os historiadores, porém, partem de Sumatra como sua terra natal, uma indicação corroborada por menção explícita nas fontes.

Henrique foi também conhecido como Henrique de Taprobana, um nome que é considerado como designação não só de Sumatra, mas também de Ceilão/Sri Lanka e Kalimantan.

Essas ambivalências quanto ao termo Taprobana levantam questões ainda pouco solucionadas - diria respeito a determinado grupo etno-cultural ou ao uso do termo como cognominação em sentido genérico, relacionado com uma cor de pele cobre? O termo era de antigas origens e trazia a conotação de região longínqua, para além da qual encontravam-se „mares nunca de antes navegados“, como decantada em „Os Lusíadas“ de Camões (c. 1524-1580).

As armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana

(...)

Dizem que, desta terra, co‘as possantes
Ondas o mar, entrando, dividiu
A nobre ilha Samatra, que já dantes
Juntas ambas a gente antiga viu;
Quersoneso foi dita, e das prestantes
Veias d‘ouro que a terra produziu,
‚Aurea‘ por epíteto qlhe ajuntaram;
Alguns que fosse Ofir imaginaram

(Canto X, CXXIV)

Escravizado ou escravo adquirido ou resgatado?

Henrique é descrito como escravo de Fernão de Magalhães, acompanhando-o desde a época que se seguiu à conquista de Malaca por Afonso de Albuquerque (1453-1515) em 1511.

O menino, que teria 12 anos, foi batizado com o nome de Henrique e recebeu formação cristã, aprendendo o português. O nome Henrique era usual em Portugal na época, trazendo conotações derivadas de importantes vultos da história nacional, da nobreza e do clero, bastando lembrar do Infante Dom Henrique, O Navegador (1394-1460) ou de Frei Henrique Soares de Coimbra (ca. 1465-1532). Foi usado para filhos de soberanos africanos que, após terem sido batizados, aprendido o português e recebido formação cristã, deveriam ser como príncipes agentes da cristianização de seus povos.

A atribuição do nome ao malaio não necessita ser necessariamente entendida como indicativo do santo do dia do seu batismo. Pode-se supor outros motivos, talvez até mesmo que o jovem tivesse como pais pessoas de liderança no seu grupo étnico-cultural de origem. Isso explicaria a atenção especial a êle dada por Fernão de Magalhães, do qual tornou-se não simples serviçal mas sim acompanhante e auxiliar. Teria sido Henrique uma espécie de príncipe?

As circunstâncias da aquisição do escravo por Afonso de Albuquerque são consideradas dubiamente na literatura. Ao contrário da afirmação de que o conquistador de Malaca teria escravizado Henrique, mais seguramente seria supor ter sido êle comprado ou „resgatado“ o escravo de algum comerciante islâmico. Provindo de Sumatra, Henrique seria originário de um povo ainda não islamizado. Não é provável que Henrique tenha comprado ou escravizado um malaio muçulmano.

Quando Afonso de Albuquerque deu ordens a que Magalhães viajasse, Henrique foi levado com êle para Portugal. Nunca deixou o seu senhor, sendo assim também o primeiro malaio que esteve em países europeus. Tomando parte na expedição ao redor do mundo com destino à ilha das especiarias, sobreviveu a Magalhães, falecido em Mactan. A expedição pôde ter continuidade com os sobreviventes. Por fim, só a nave Victoria, com 18 marujos sob o comando de Juan Sebastián Elcano (1476-1526), retornou a Portugal, fazendo uma parada para suprimentos em Ternate, nas Molucas.

Na exposição, salienta-se o fato surpreendente de Henrique ter sobrevivido a atribulada viagem. Teria sido sempre um homem independente, alcançando também a liberdade quanto à sua situação de escravo por desejo de Magalhães de 24 de agosto de 1519, recebendo também um pagamento.

Embora livre por testamento, a necessidade de seus serviços como tradutor levou a que fosse levado a servir o novo capitão. Para reconquistar a sua liberdade, Henrique teria co-planejado o sanguinolento banquete com o potentado de Cebu Raja Humabon, no qual 24 europeus encontraram a morte.

A posição privilegiada para um escravo não teria sido assim bem vista pelos navegantes, tendo aqui residido um fator que levou os sucessores de Magalhães a querer mantê-lo no estado de escravo e este, em reação, à assim-chamada traição.

Henrique como mediador e tradutor

No prefácio à tradução fancesa do relato de A.Pigafetta, o problema do entendimento com povos extra-europeus, o significado de tradutores para a comunicação, o papel exercido por Henrique na expedição de Magalhães e a constituição de vocabulários nas várias línguas foi pormenorizadamente considerado.

O autor lembra o fato de que o homem que viaja por países longínquos não pode expressar os seus desejos e idéias, vendo-se obrigado a comunicar-se por sinais, ineficientes e capazes de provocar equívocos. Para evitar tal inconveniente, os navegantes procuravam obter intérpretes ou um vocabulário dos povos visitados, e quando não o havia, procuravam formar um.

Quando Magalhães concebeu o projeto de ir ao mar do Sul pelo Ocidente, sabia que Juan Carvajo, que passou quatro anos no Brasil, e seu escravo Henrique, natural de Sumatra, o ajudariam, um nas costas da América e outro no Oriente. O primeiro que compilou um vocabulário foi Pigafetta; mas parece que não pensou nele até que já havia passado o estreito de Magalhães, visto que do Brasil não recolheu mais do que dez ou doze palavras.

„En el barco de Magallanes había un esclavo de Sumatra, pero no hablaba más que la lengua malaya, que no se extendía entonces, ni ahora tampoco, más allá de las islas Filipinas. Pigafetta no pude recoger ninguna palabra de las islas Marianas.
En las Filipinas sintió más de una vez el disgusto de no entender la lengua de los pueblos que las habitan, porque, aunque el esclavo Enrique fué su intérprete, varias ocasiones; y esto sucedió continuamente cuando el esclavo les traicionó y abandonó en Zubu. Fué el encargado de tratar con el rey de Chipit, en la isla de Mindanao, después con el de Borneo y con todos los de las islas en que anclaron los españoles, particularmente con los reyes de las Molucas.

De esta manera Pigafetta compuso un vocabulario de ciento sesenta palabras en Zubu, y otro de cuatrocientas cincuenta en las Molucas. Por qué Fabre, que dió todas las palabras brasileñas y casi todas las de los patagones, no copió ni una sola de las Filipinas y sólo cuarenta y seis de las Molucas?

(....) Si Pigafetta hubiera recogido más palabras brasileñas las habría yo colocado al lado de las patagonas, (...) (A. Pigafetta, Primer Viaje en torno del globo, trad. F. R., Morcuende, Madrid: Espasa Calpe, 1999, 190-191)

O fato de Henrique ter podido compreender a língua da região de Cebu, foi um dos argumentos que sustentou a argumentação de ter tido uma origem em Cebu, e não em Sumatra. Do relato, constata-se que entendeu também a fala de um comerciante siamês que dominava o idioma local.

„7 de abril de 1521 - El domingo, 7 de abril, entramos en el puerto de Zubu. (...)

Embajada al rey. - El capitán envió entonces a uno de sus discípulos, con el intérprete, de embajador al rey de Zubu. Llegados a la villa, encontraron al rey rodeado de una inmensa multitud, alarmada por el estruendo de las bombardas. El intérprete comenzó por calmar al rey, diciéndole que era una costrumbre nuestra, y que este estrépito no era mas que un saludo en señal de paz y amistad para honrar al mismo tiempo al rey y a la isla. Con ello se aquietó todo el mundo. El rey, por intermedio de su ministro, preguntó al intérprete qué podía ataernos en su isla y qué queríamos. El intérprete respondió que su amo, comandante de la escuadra, era capitán al servicio el rey más grande de la Tierra, y que el objeto d su viaje era llegar a Malucco (...). El comerciante de Ciam, aproximándose entonces al rey, le dijo en su lenguaje: Cata rajá chita, esto es: Señor, tened cuidado. Estas gentes (nos creian portugueses) son los que han conquistado Calicut, Malacca y todas las Grandes Indias.“ El intérprete, que habia comprendido lo que el comerciante acaba de decir, añadió que su rey era mucho más poderoso por sus ejércitos y por sus escuadras que el e Portugal, de que el siamés acababa de hablar; (...) (op.cit. 93-94)

Referências a Henrique no relato de Pigafetta: traição e conjuração

Em contraste com a figura idealizada do „Magalhães malaio“, o relato de Pigafetta oferece um retrato pouco positivo do caráter de Henrique, o intérprete da expedição.

Disgusto del intérprete. - Enrique, nuestro intérprete, el esclavo de Magallanes, resultó ligeramente herido em el combate, lo que le sirvió de pretexto para no bajar a tierra, donde se necesitaban sus servicios, y pasaba el día entero ocioso, tumbado en su ester. Odoardo Barbosa, gobernador del navío que antes mandaba Magallanes, le reprendió severamente, advirtiéndole que, a pesar de la muerte de su amo, continuaba siendo esclavo, y que a nuestra vuleta a España le entregaría a doña Beatriz, viuda de Magallanes, amenazándole con azotarle si inmediatamente no bajaba a tierra para el servício de la escuadra.

Conjuración contra los españoles. - El esclavo se levantó tranquilamente, como si no hubiera oído las injurias y amenazas del gobernador, y una vez en tierra fué a casa del rey cristiano, a quien dijo que esperábamos partir a poco, y que, si quería seguir su consejo, podría apoderarse de los navíos con todas sus mercancías. El rey le escuchó favorablemente, y urdieron juntos la traición. Volvió en seguida el esclavo a bordo y mostró más actividad e inteligencia que antes.

1 de mayo de 1521. - La traición - La mañana del miércoles primeiro de mayo, el rey cristiano envió a decir a los gobernadores que tenía preparado un regalo de piedras preciosas para el rey de España, y que para dárselas les rogaba que viniesen a comer con él, acompañados de algunos de su séquito. Fueron, en efexto, veinticuatro, entre ellos nuestro astrólogo, llamado San Martín de Sevilla. (...)

Sospechas. _ Juan Carvajo y su ayudante volvieron inmediatamente a los navíos, sospechando la mala fe de los indios al ver, según dijeron, que el enfermo curado milagrosamente conducía a nuestro capellán a su casa.

Asesinato. - Apenas habían terminado sus palabras cuando oímos gritos y ayes. Levamos anclas en seguida y nos acercamos a la costa, disparando muchos bombardazos contra las casas.

Juan Serrano, abandonado. - Viemos entonces cómo conducían hasta la orilla del mar a Juan Serrano, herido y agarrotado. Rogó que no sisparásemos más, porque le asesinarían. Le preguntamos qué les había sucedido a sus compañeros y al intérprete, y respondió que a todos los degollaron, excepto al esclavo, que se pasó a los isleños. (...) (op.cit. 116-117)

A questão da „traição“ - problemas de lealdade na circum-navegação

Não se pode deixar de notar, porém, que, segundo o relato de Pigafetta, Henrique tratou com rei local já cristão, sendo o seu ato antes de traição à Espanha. Tendo sido poupado do massacre e permanecido na ilha, retornara assim a um grupo cultural cristianizado. Não se poderia também supor que, após ter sido formado, aprendido o português e passado toda a sua vida em viagens com europeus retornasse a um contexto social e cultural não já marcado pelo cristianismo.

Esse ódio de Henrique aos espanhóis que se manifesta no seu ato incita a reflexões sobre um problema que sempre se coloca em relação a Fernão de Magalhães sob a perspectiva portuguesa. Embora tendo-se distinguido em atos militares a serviço de Portugal e tendo assim dado provas de patriotismo, pelo fato de ter procurado e obtido o apoio da Espanha após não ter tido sucesso em Portugal levou a que passasse a ser considerado como desleal ou mesmo traidor.

Já em Os Lusíadas registra-se essa imagem. Justamente na estrofe em que Camões menciona o Brasil, citando a viagem de Magalhães, designa-o como desleal.

„Mas cá onde mais se alarga, ali tereis
Parte também, co‘o pau vermelho nota;
De ‚Santa Cruz‘ o nome lhe poreis;
Descobri-la-á a primeira vossa frota.
Ao longo desta costa, que tereis,
Irá buscando a parte mais remota
O Magalhães, - no feito, com verdade,
Português, porém não na lealdade.“

(Canto X, CXL)

O ato de „traição“ de Henrique aos espanhóis, após a morte do seu amo, poderia relativar essa imagem de Magalhães.

A dramatização de Henrique na literatura européia do século XX

Se o Panglima Awang dá testemunho do tratamento novelístico e do significado de Henrique de Malaca na literatura malaia do século XX, lembrado nas suas relações entre ficção e história na exposição na „Flor do Mar“ de Malaca, não se pode esquecer que também esse malaio deu ensejo a textos de história romanceada na Europa dessa época.

Como um dos principais exemplos dessa literatura pode-se citar o livro „Fernando de Magalhães: a História da primeira circum-navegação“ do historiador, jurista e escritor alemão Rudolf Baumgardt (1896-1955), escrita na época conturbada políticamente de fins da década de trinta. (Fernando Magallan: Die Geschichte der ersten Weltumseglung, Berlin: Zeitgeschichte-Verlag, 1941)

„Qual era a aparência do homem, que, com 37 anos, acompanhado por um serviçal malaio, atravessou a fronteira para seguir a sua vocação e que deveria custar a sua pátria?“ (op.cit.99)

(...) êle encontra Henrique, o ferido, enfraquecido pela perda de sangue, mais deitado do que encostado na sala de pilotagem, no mesmo local onde sempre se encontrava para receber as ordens do seu senhor.

Barbosa parou à sua frente. Ah, o garoto malaio também sempre estava ali quando era disciplinado! Ele vai afogá-lo, êle grita:

„O que você faz aqui, preguiçoso? Desça à terra! Como tradutor, anda“

Henrique continuou a olhar com os olhos apáticos e não respondeu.

Não ouve? gritou Barbosa e deu-lhe um pontapé. „Vou fazê-lo correr!“

Henrique tatubeou, apoiou-se no corrimão, a sua pele é flácida e amarela, treme de febre.

Barbosa ruge:

„Por que continua a malandragem? Não tem ouvidos, cachorro preguiçoso?“

Henrique o olha a fundo. Onde está o seu admiral? Todos o abandonaram, por isso devia ter morrido. Barbosa e os oficiais teem culpa que o seu senhor já não possa protegê-lo.

„Anda“, Barbosa dá-lhe um soco nas costas capaz de derrubá-lo, „vou levá-lo de volta à Espanha para que seja entregue a ona Betriz. Vou fazer que seja disciplinado com açoite se não obedecer imediatamente às minhas ordens!“

Henrique arrasta-se num bote. De volta à Espanha? O Admiral tinha mandado que ele estaria livre após a sua morte.

Ele treppa na praia. Não vai ao depósito, cambaleia à cidade. O seu bom senhor está morto; o seu bom senhor deve ser vingado.

Êle procura o irmão do rei, e, com êle, o soberano. O escuro soberano encontra-se em apuros, êle deve o seu cargo aos espanhóis, êle não os tinham ajudado em Maktan, os caciques não o obedecem, os vencedores da ilha vizinha são perigosos.

Henrique ouve os seus lamentos, êle diz:

„Você é mais forte do que todos, se tomar as mercadorias dos estrangeiros. Você deve fazer, pois os estrangeiros, encolerizados devido a Maktan, prendê-lo e levá-lo. „

Na manhã seguinte, o malaio surge de novo a bordo, é mais obediente e prestativo, Pigafetta diz que „êle mostrava uma atividade e prestatividade como nunca“. (...) (op.cit. 307-308, trad. do editor)


Stefan Zweig (1881-1942) - Henrique em Magellan: o homem e seu feito (1938)

Uma razão que justifica uma particular atenção ao „Magalhães malaio“ de uma perspectiva euro-brasileira é o fato de Stefan Zweig, o escritor alemão que viria a falecer no Brasil, ter tratado romanceadamente a figura de Henrique na sua obra Magellan: Der Mann und seine Tat (Ed. Knut Beck, S. Fischer Verlag 1938).

Zweig reconheceu o importante fato de ter sido Henrique o primeiro homem que, percorrendo o mundo, retornou à sua esfera cultural de origem. Por essa razão, considera-se a imagem criada nessa obra como um antecedente da idealização patriótico-nacionalista de Panglima como tratada na exposição em Malaca.

Zweig menciona, na abertura da sua obra, ter encontrado e lido livro sobre a viagem de circum-navegação de Magalhães a caminho do Brasil:

„Tive, no ano passado, pela primeira vez a oportunidade já tão longamente desejada de viajar à América do Sul. Sabia, que, no Brasil, estariam à minha espera uma das mais belas paisagens da terra...“

De ciclo de estudos da A.B.E. sob
a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „ Henrique de Malaca, o primeiro malaio que esteve no Brasil. O personagem Panglima Awang - o „Magalhães malaio“. História e ficção a serviço de patriotismos no Sudeste Asiático
e sua dramatização na literatura
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 167/6(2017:3). http://revista.brasil-europa.eu/167/Henrique_de_Malaca.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
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