A Porta de Santiago em Malaca
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 167

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Malaca. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

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Malaca.Fotos A.A.Bispo 2017.
Santiago de Compostela no texto, 2012©Arquivo A.B.E.

 


A.A.Bispo
N° 167/4 (2017:3)


A porta de Santiago da antiga fortaleza „A Fermosa“ (Famosa) de Malaca
e a presença do „Apóstolo do Ocidente“ no Oriente:
o „Matamoros“ em meio marcado pelo conflito „Mouros X Cristãos“

40 anos de primeiro encontro com o Dr. José Lopez Calo, Universidad de Santiago de Compostela

 
Malaca. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Não há monumento que mais atraia a atenção de visitantes das mais diversas nações e religiões que visitam Malaca do que a Porta de Santiago. É a mais conhecida e emblemática construção de uma cidade que hoje é o principal centro histórico, de cultura, lazer e turismo de uma nação islâmica, a Malásia.

Não há texto referente a Malaca que não considere a Porta de Santiago. Mesmo a literatura de cunho especíalizado empresta particular atenção a esse principal testemunho da época da administração portuguesa nessa longínqua região no século XVI e no início do XVII. Dessa forma, esse relito influencia visões históricas da antiga Malaca e, pela sua importância, das ações e da presença portuguesa no Oriente.

Pertencendo outras regiões do globo alcançadas, descobertas, conquistadas e colonizadas pelos portugueses a um contexto de dimensões globais, inseridas em processos que não podem ser estudados em independência geográfica, a Porta de Santiago surge também como sendo de valor documental para países como o Brasil.

A Porta de Santiago adquire, hoje, um significado de grande atualidade, merecendo ser considerada com atenção nos estudos de processos culturais em relações internacionais. A expansão do Islão e a recrudescência de conflitos na atualidade, que leva a profunda crise de sociedades e de instituições européias, faz com que testemunhos históricos de tensões entre o Ocidente cristão e o Islão no passado adquiram particular relevância.

Esses relitos em Malaca surgem como memoriais de desenvolvimentos e fatos do passado, trazendo à consciência que os problemas atuais podem ser analisados em paralelos históricos que, apesar de todas as diferenças, permitem aproximações quanto a mecanismos processuais similares e a seus fundamentos culturais.

Para isso, as análises devem partir de aproximações teórico-culturais outras daquelas da historiografia convencional. A atenção deve ser dirigida a imagens, uma vez que estas prometem o reconhecimento de mecanismos sistêmicos de um edifício cultural nos seus efeitos e nas suas atualizações em diversos contextos e épocas. É neste sentido que a Porta de Santiago adquire particular relevância.

Malaca. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

A fortaleza de Malaca e sua formosa torre

Se hoje a Porta de Santiago é conhecida sob o cognome de „A Famosa“, essa denominação deve ser entendida como sendo de pars pro toto. Essa designação, ou melhor, a „Fermosa“, valia para a Fortaleza de Malaca, em particular para a torre erigida por Afonso de Albuquerque ((1453-1515), o segundo Vice-Rei do Estado Português da Índia, em 1511.

A consideração dessa fortaleza precisaria ser feita, em estudos mais pormenorizados, na vasta rêde de fortificações levantadas pelos portugueses no mundo e, em particular, na sequência de suas construções no vasto „Estado da Índia“. (José Manuel Garcia, „Breve roteiro das fortificaç~øes portuguesas no Estado da Índia“, Fortalezas da Expansão Portuguesa, Oceanos 28, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1996, 121 ss.)

Como o Brasil também possui significativos exemplos de arquitetura militar portuguesa, a consideração ampla dessa rêde e do seu desenvolvimento histórico surgem como de significado para estudos de história da arquitetura de orientação cultural no Brasil.

A conquista de Malaca foi precedida aos primeiros contatos estabelecidos por Diogo Lopes de Sequeira, em 1509. Seguindo ordenações de D. Manuel I (1495-1521), Afonso de Albuquerque deu início à proteção da cidade conquistada do sultanato com uma fortificação. Tratou-se, portanto, de uma obra que correspondia à política de arquitetura militar manuelina.

„Ainda os Portugueses não tinham posto pé em Malaca, já o rei D. Manuel recomendava ao vice-rei D. Francisco e Almeida que erguesse naquela cidade uma ‚fortaleza‘ em madeira que, com essa finalidade, foi enviada de Lisboa para ser montada no local. Contudo, só após a conquita de Malaca em 1511, Afonso de Albuquerque, dando cumprimento à ordem régia, iniciou a construção da fortaleza no local onde antes se erguia a Grande Mesquita da cidade, empregando pedra retirada destee e doutros edifícios religiosos, dos túmulos de sultões e também pedra importada de zonas vizinhas, pois em Malaca não existia. O local escolhido situava-se à beira de água, de acordo com a prática, (...) de as fortificações e as armadas se protegerem mutuamente.“ (Manuel Lobato, „Fortalezas do Estado da Índia: Do Centro à Periferia“, A Arquitetura Militar na Expansão Portuguesa, Porto, Castelo de S. João da Foz, Junho-Setembro de 1994, Catálogo de exposição, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1994, 47)

A principal construção da fortaleza foi levantada por Tomás Fernandes nas décadas que se seguiram: uma torre com quatro andares, protegida por um muro. Servia como moradia ao capitão. Sob a administração do primeiro de seus capitães, Rui de Brito Patalim, a construção foi ampliada, ganhando a torre mais um andar. Dela podia-se ter uma ampla visão das redondezas, o que facilitava a vigilância.

A fortificação foi reforçada a partir de 1564 com a construção de um outro muro envolvendo a cidade, primeiramente uma cerca de madeira, a seguir de pedra. Com essa medida, a antiga fortaleza passou a ficar no interno da área protegida, passando também a ser conhecida como „Fortaleza velha“.

Levantou-se, no muro, na sua parte voltada às águas, o baluarte de São Pedro (Couraçada). No norte da cerca, levantou-se o de São Domingos e, na parte sul, o de Santiago. No centro da paliçada, ao sul, levantou-se o baluarte das Onze Mil Virgens. As mais importantes eram a Porta da Alfândega, em direção à ponte do rio de Malaca, e a de Santo António, do lado do baluarte das Onze Mil Virgens.

O fato de terem os portugueses erguido a torre em local onde se encontrava a antiga mesquita de Malaca, para isso demolida, e de terem empregado nela e em outras construções pedras de mesquitas e de túmulos de sultões também não pode ser visto apenas como expressão de necessidade material pelo fato de não haver pedras no local.

Malaca. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Demolição/rededicação de mesquitas sob o aspecto da visão do homem

A rededicação de mesquitas após conquistas ou a sua substituição por igrejas - assim como, vice-versa, o uso de igrejas como mesquitas ou a sua destruição por mouros foi um fato comum na história da Reconquista, ocorrendo, na época, no Norte da África.

Esses procedimentos refletem não apenas atos de vingança ou intenções de demonstração de poder de vencedores, mas devem ser considerados em correspondência a imagens do edifício religioso-cultural.

Se a tensão tipológico-antitipológica Igreja/Sinagoga é conhecida da linguagem visual documentada em plásticas visuais, a problemática igreja-mesquita necessitam considerações menos baseadas em evidências. É antes derivada de concepções antropológicas do homem no campo de tensões entre o terreno ou carnal e o espiritual - de um binário que é, na verdade, trino.

Um fator importante nesses estudos é considerar que as igrejas que substituiram antigas mesquitas - demolidas ou não - foram em geral dedicadas a Maria.


Denominações de portas e baluartes e sentidos hagiológicos

A denominação de portes e baluartes segundo santos não pode deixar de ser considerada com especial atenção sob a perspectiva dos estudos culturais.

Correspondendo a uma prática comum em fortes, fortalezas e outras construções militares portuguesas e inserindo-se em tradição generalizada do Ocidente cristão, essas denominações não são arbitrárias.

São nomes que invocam proteção de santos cuja história de vida e características de exemplaridade correspondem às funções de defesa ou de ações militares, tanto no sentido real como no metafórico do termo.

As denominações correspondem assim a uma complexa hagiologia, de história hagiográfica e de tradição oral. Incluindo santos cuja existência histórica real nem sempre pode ser confirmada, evidenciam correspondências a imagens de um edifício cultural de remota proveniência.

Os santos invocados nas portas e baluartes da fortificação de Malaca são aqueles cujos elos com a esfera militar decorrem já da sua própria vida - como Santo Antonio e das Onze Mil Virgens - outros, exigem considerações mais amplas de sentidos, como a de São Domingos. A de Santiago merece neste contexto uma particular consideração, pois trata-se de um apóstolo - o „apóstolo do Ocidente“.

Santiago „Matamoros“, a Reconquista ibérica e a conquista de Malaca

A dedicação de uma das portas de Malaca ao apóstolo São Tiago Maior revela a a inserção das ações em Malaca em processo de Reconquista do Ocidente cristão que, já tendo alcançado o Norte da África, estendeu-se no Oriente. Tratava-se de uma extensão da expulsão de mouros, ou seja de ação compreendida como sendo de reação defronte a um processo de expansão e ocupação por parte do Islão.

Na perspectiva européia, não se tratou assim de ato de violência ilegítima a serviço de fins pragmáticos, mas sim primordialmente de expulsão e contenção de uma expansão islâmica que também se fazia sentir no Oriente.

Combatida essa dominação na Índia, a concentração do poder islâmico, baseado economicamente no comércio, ter-se-ia dado crescentemente transferido para os Estreitos Malaios, razão do significado de Malaca.

Santiago foi o santo por excelência da Reconquista, fato já expresso no seu cognome de „Matamoros“. Santiago a cavalo no combate a mouros é potente imagem na iconografia e foi motivo de visões por ocasião de batalhas entre cristãos e não-cristãos também em contextos extra-europeus.

Se porém o centro da devoção a Santiago em Compostela situa-se na Espanha, o significado do seu culto nas ações portuguesas decorre sobretudo de fundamentos mais profundos da hagiologia.

Esses fundamentos dizem respeito à tradição que vê em São Tiago Maior o „Apóstolo do Ocidente“. Esse apóstolo teria vindo por navio pelo Mediterrâneo até o extremo Ocidente, as costas da Galícia, na visão geográfica do mundo o „finis terrae“.

Como tratado em simpósio levado a efeito em Portugal em 1997 pela passagem de Macau à China, colocam-se aqui paradoxais questões relativas a conceitos de Ocidente e Oriente, uma vez que o apostolado do Ocidente surge como que levado ao Oriente, ou seja, o Oriente tornar-se-ia por assim dizer Ocidente no culto a Santiago.

A superação desse problema reside na compreensão não-geográfica de ocidente, ou seja do local de caída do sol na escuridão das águas do oceano no sentido metafórico e ou imagológico do termo, o fim da terra na antiga visão do mundo.

Como indica a tradição de sua vinda em barco pelo mar Mediterrâneo e o seu culto à beira do Atlântico, a imagem de Santiago é relacionada com a navegação, com viagens, com caminhos por terra e mar e com a água.

A rêde de caminhos de Santiago percorridos por peregrinos desde a mais remota Idade Média revela um complexo conjunto de associações e imagens decorrentes da tradição da vinda do apóstolo por barco e por terra ao fim da terra no Ocidente.

Muitas dessas associações, não explicáveis pelas Escrituras, indicam a cristianização de práticas, imagens e concepções mais antigas, em particular daquelas relacionadas com Hermes, como tratado em diferentes contextos nos estudos euro-brasileiros das últimas décadas.

Essa cristianização de antigas imagens explicaria também características herméticas que teria tido o culto em Compostela consideradas por diferentes autores.

Representações plásticas na Porta de Santiago

Não é de supor-se que esse antigo conjunto de concepções e imagens estreitamente relacionado com Santiago de Compostela tivesse continuado a vigorar entre os neerlandeses que tomaram Malaca dos portugueses.

A ocorrência de representações navais e militares holandesas devem ser antes consideradas como seculares, sem sentidos mais profundos.

É, porém, um problema da história das artes de orientação cultural indagar se antigas associações não permaneceram vivas, sobretudo em tradições marítimas e militares. Neste sentido, as plásticas que se encontram na Porta de Santiago de Malaca dão ensejo a reflexões e interpretações.

No centro do escudo central da Porta de Santiago encontra-se a imagem de uma nave, com bandeiras ao vento. Essa imagem é ladeada por um guerreiro com escudo e por uma figura feminina com uma palma.

O conjunto é emoldurado por representações de armas, balas de canhão, tambor, corneta, e objetos da vida quotidiana como pote e faca.


Abaixo, no fêcho dos arcos da porta, encontra-se uma face de cunho grotesco e que, pelos seus traços, parece ser uma referência ao tipo humano ali encontrado pelos europeus e que é representado com um aro passado pelos lábios.

Ter-se-ia, nessa representação, um significativo exemplo de interações entre imagens do nativo da região e aquelas da tradição do Grotesco ocidental. Rodeado que é por motivos vegetais, poder-se-ia interpretá-lo como uma representação do „homem natural“ a partir da perspectiva do renascido através o batismo, surgindo, assim, como grotesco. Todo o conjunto plástico que ornamenta a Porta de Santiago surge como coerente, também sob a perspectiva da tradição relacionada com Santiago de Compostela.

Em lápide de sepultura do período holandês, apresentaa nas ruínas da antiga igreja do outeiro, encontra-se também a imagem de uma nave.


De ciclo de estudos da A.B.E. sob
a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.“A porta de Santiago da antiga fortaleza „A Fermosa“ (Famosa) de Malaca. A presença do „Apóstolo o Ocidente“ no Oriente.O„Matamoros“ em meio marcado pelo conflito „Mouros X Cristãos“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 167/4(2017:3). http://revista.brasil-europa.eu/167/Porta_de_Santiago_Malaca.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
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Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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