O Portuguese Settlement em Malaca

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 167

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Malaca. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

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Malaca. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

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Malaca. Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.



 


N° 167/10 (2017:3)


O Portuguese Settlement ou Kampong Portugis em Malaca
na perspectiva dos estudos relacionados com o Brasil
Missões Católicas Portuguesas em processos identitários na imigração
e o assentamento de malaio-portugueses no Chão di Padre

Pelos 30 anos anos de encontro sobre folclore português e tradições brasileiras
na Missão Portuguesa de Colonia em cooperação com o ISMPS

 

O Portuguese Settlement em Malaca, situado a pouca distância - ca. de 5 km - do centro histórico da cidade, em Ujong Pasir, foi alvo de visita promovida pela A.B.E. em março de 2017.

A visita realizou-se no âmbito dos ciclos de estudos euro-brasileiros desenvolvidos no arquipélago malaio por motivo dos 20 anos dos encontros levados a efeito na Diocese e Instituto Inter-Universitário de Macau, em 1986/1987, motivados pela passagem do território - assim como do de Hong Kong - à China.

Trata-se de um bairro de litoral, em região plana e baixa, constituído por uma rêde ruas de moradias térreas e cuja via principal leva a um largo onde se encontra um colégio católico mantido por religiosas, um grande cruzeiro, campanário e altar. Este é interligado com uma praça fronteiriça - o Square - onde se concentra o comércio, em particular restaurantes com amplos espaços cobertos e grande número de mesas ao ar livre que oferecem pratos de pescados anunciados como tipicamente portugueses.


Reclames em malaio, inglês e português trazem nomes portugueses e imagens associadas com Portugal e com uma cultura portuguesa do mar, tais como caravelas e sereias.


Essa praça que se abre ao mar é marcada por um edifício central, com torre, na qual se lêem as designações malaias do Settlement, conhecido como Kampong/Kampung Serâni ou Kampong Portugis. Todo o conjunto assim centralizado revela uma coerência construtiva.


Um bairro sui generis - reduto de singular lusitanidade

O tranquilo Settlement, com suas residências, simples, algumas ainda de madeira e cobertas de zinco, a maioria, porém, de alvenaria, com varandas e jardins, apresenta-se como um enclave nessa parte de Malaca, marcada que é por vias de maior tráfego e construções heterogêneas quanto à altura e ao estilo, de intenso comércio. Da praça principal do Settlement, pode-se ver nas proximidades, quase que como uma moldura, altos edifícios de apartamentos à beira-mar.

O Kampong Portugis contrasta assim do seu contorno não só pelo fato de ser habitado por um grupo populacional determinado, o de malaio-portugueses que se identificam como portugueses.

Êle diferencia-se dos bairros envolventes também pelo fato de constituir um espaço com características idílicas, um mundo simples e de ingênua alegria, marcado por nostalgia ou saudades de um longínquo passado, de amor por tradições e de sentimentos de lealdade e de afeto por uma pátria virtual, distante no espaço e no tempo.

Trata-se assim sobretudo de fatores subjetivos, valores sentimentais, de uma atmosfera de calor humano, paz, harmonia e amor que caracteriza o Settlement ou que, pelo menos, constituem características decantadas pelos seus moradores.

Significativamente, os visitantes são recebidos no local com imagem de cantor e guitarristas com as palavras „Unity Equals Strength/Peace & Harmony Equals Love“.

Há muito tornou-se o Portuguese Settlement um local procurado por habitantes de Malaca pelas suas festas e pela atmosfera que nelas domina, em particular no período das festas juninas.

As festas de São João e São Pedro dos „portugueses“ atraem grande número de visitantes e constituem principais fatores que levaram o bairro a tornar-se uma das atrações turísticas de Malaca.

Significativo é que o próprio museu de Malaca promove visitas guiadas a turistas ao Portuguese Settlement em cooperação com o Perbadanan Muzium Melaka (Perzim).

Malaio-portugueses atuam na valorização do Settlement, da história e da cultura tradicional portuguesa, seja através do museu criado no local, seja através de atuações junto a instituições oficiais de Malaca, servindo como organizadores de eventos e guias, como Martin Theseira.

Limkokwing University no Hotel Lisboa

Malaca. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

O mais representativo edifício do bairro é aquele do antigo Hotel Lisboa, hoje sede da Limkokwing Academy ou Limkokwing University. Esta instituição, que surge como um corpo estranho no Settlement, é representação, em Malaca, de uma universidade particular internacional atuante em diferentes países asiáticos. Possui objetivos explicitamente inovativos.

A sua presença no Settlement serve como impulso à procura de novas perspectivas para a consideração desse bairro malaio-português nos estudos culturais e para o tratamento de questões que nele se levantam.

Similaridades com cidades brasileiras de imigração portuguesa

O brasileiro que visita o Portuguese Settlement tem a impressão de ter-se deslocado para algum bairro praiano de cidades como Santos ou São Vicente, marcadas na sua formação e constituição populacional pela migração portuguesa.

Modos de vida, de vestir e agir, gestos, culinária, e muitos outros aspectos de uma cultura do quotidiano surgem como similares. Mesmo que poucos já entendam ou falem o português, mesmo o patuá malaio-português, ainda que afirmando que o saibam, o observador brasileiro sente-se transportado para uma „ponta da praia“ santista na longínqua e islâmica Malásia. Até mesmo o estilo de construções lembra edifícios de meados do século XX de Santos.

Atualização de estudos à luz de problemas da atualidade

Se a história e o presente da presença portuguesa no arquipélago malaio e em particular em Malaca já foram consideradas em diferentes ocasiões no âmbito dos trabalhos que levaram à fundação, em 1985, do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS e.V.) (Veja), o objetivo da visita promovida pela A.B.E. em março de 2017, para além de atualizar conhecimentos, decorreu à luz de questionamentos de uma atualidade marcada internacionalmente por inseguranças, tensões, crises, guerras e movimentos sociais e políticos.

Estes, preocupados com a expansão islâmica no Ocidente, visto como em risco, manifestam tendências nacionalistas, patrióticas, de defesa de valores tradicionais em nome da tradição cristã e humanista.

Retomam-se anelos e concepções que pareciam estar há muito superados de valorização cultural do que seria próprio e caracterizadores de identidade nacional, de difícil determinação, mais baseados em imagens e visões.

O identitarismo, combatendo o multiculturalismo e mesmo políticas integrativas, defende o etnopluralismo, o de relações entre nações definidas etno-culturalmente, que traz à lembrança ideologias dos anos de 1930 também conhecidas do mundo de língua portuguesa.

Essa procura de defesa de uma identidade sentida como em risco pelos europeus surge em tensão com a procura de manutenção ou recuperação de identidade de imigrantes, de diferenciação na sociedade em que se integram, o que também pode ser constatado em grupos de portugueses e brasileiros na Europa.

Essa situação exige assim análises mais diferenciadas de processos identificatórios em diferentes contextos.

É neste sentido que os „portugueses“ do Settlement de Malaca merecem particular atenção. Sentem-se e designam-se como portugueses, ainda que a descendência é de muitas gerações, remontando há séculos atrás.

São cidadãos da Malásia, com os mesmos direitos e deveres, mas vêem a sua pátria como sendo Portugal: um Portugal longínquo, que em geral nunca visitaram, uma imagem que cultivam de forma idealizada, vivendo em realidade virtual. São elos afetivos criados sobretudo por imagens transportadas pela música e tradição, por um folclore que não só se expressa em danças, instrumentos, roupas e pratos típicos, mas sim em costumes e modos de vida do dia-a-dia.

Aqui levantam-se assim sobretudo questões relativas a mecanismos de identidade no campo de tensões entre integração e diferenciação, de memória e reconstrução do passado, aspectos psicológicos e demopsicológicos, de sentimentos patrióticos à distância em tempo e espaço, de idealizações e vivência de realidades virtuais.

Pertinência de observações de 1981 de pesquisadora de Macau

Já há muito essa problemática identificatória que hoje surge tão atual foi reconhecida e tematizada. 

Destacou-se aqui Graciete Nogueira Batalha, de Macau, pesquisadora e autora de publicações de relêvo para o estudo de processos linguísticos e culturais no Oriente (Graciete Batalha: Catálogo da Exposição Fotobibliográfico e Documental, Macau: Instituto Cultural de Macau, Biblioteca Central de Macau, 1983).

Em inquérito linguístico em Malaca, registrou e analisou não apenas questões do idioma, mas sim também outros aspectos culturais, tecendo significativos comentários a respeito da situação dos habitantes do Portuguese Settlement:

„Nós não somos como os outros euro-asiáticos da Malásia. Eles não pertencem a pátria nenhuma, mas nós somos portugueses. A nossa pátria é Portugal“.

A nossa pátria é Portugal... Portugal que os não conhece... (...)Essa fidelidade quase fanática a uma pátria desconhecida e tão alheada é alguma coisa de quase miraculoso. E, no entanto, o portuguesismo dos serâni tem sido precisamente a origem de muitos dos seus males. Porque eles não se identificam com o povo malaio. (...)

Mas o facto real é que os membros dessa comunidade, que de um ou de outro modo se considera alienada, são cidadãos malaios. São-no de jure, com todos os deveres inerentes. E cremos que a solução dos seus problemas não está na passiva fidelidade à ancestralidade portuguesa, mas na completa integração na sociedade malaia a que têm de pertencer de facto. Só assim poderão reivindicar todos os seus direitos. (...)

(...) o „português“ de Malaca, por via de regra, não estuda o malaio. (....) muitos habitantes do bairro são completamente analfabetos em qualquer língua. (...) E os que estudam frequentam escolas de língua inglesa. (...)

Esta situação não os leva a parte alguma, a não ser que se espere uma emigração em massa, que aliás já começa a esboçar-se“. (Malaca - o Chão de Padre e seus moradores ‚portugueses‘. 2a. ed.-, Macau: Imprensa oficial, 1986, 21; 1a. ed. O Inquérito Linguístico Boléo em Malaca ... Separata de Biblos, LVII, 1981, Coimbra).

Essas observações da autora, lúcidas e previsoras de desenvolvimentos que de fato se processaram, deram ensejo a reflexões no âmbito dos trabalhos do ISMPS junto à comunidade portuguesa de Colonia na década de 1980 e abriu perspectivas para a percepção e interpretação de processos em outras comunidades portuguesas da imigração, entre outras no Hawai (Veja) e no Canadá (Veja).

„A minha pátria é a língua portuguesa“. Lusofonia como fundamento?


Um primeiro aspecto considerado foi de natureza teórico-cultural e, em particular, referente a métodos. Segundo a orientação do ISMPS, dirigida a processos culturais, a atenção não deve concentrar-se no idioma e em questões linguísticas.

Como vinha sendo discutido antes da fundação do ISMPS, a determinação de um objeto de estudos culturais a partir da lusofonia em contextos marcados culturalmente pelos portugueses leva a delimitações na análise de processos.

A língua, a manutenção do português não é o essencial e nem mesmo ponto de partida.

Nessa sua orientação culturológica, o instituto distinguiu-se desde a sua fundação de outras instituições voltadas ao mundo lusófono ou à comunidade de países de língua portuguesa.

Em diferentes partes do mundo há descendentes de portugueses que já não dominam a língua, mas onde se constata permanência de hábitos, usos, costumes, modos de vida e práticas culturais, assim como sentidos de identidade diferenciada relativamente à sociedade em que se integram.

A pesquisa deve ser assim antes de natureza cultural, voltada a processos, sejam de manutenção, transformação ou inovação, incluindo e mesmo salientando-se estudos demopsicológicos e de mentalidades.

Questões de métodos: história, pesquisa empírica e interações

Sob o aspecto metodológico, as reflexões tem-se concentrado sobretudo nas relações entre estudos históricos, baseados em fontes escritas, construções e objetos do passado, e aqueles antes empíricos de observações no presente. Também aqui Malaca pode servir como exemplo da necessidade - e da dificuldade - de procedimentos refletidos nas aproximações, análises e interpretações.

O passado português dos séculos XVI e parte do XVII continua presente no centro histórico de Malaca, onde as ruínas e relitos de antigas construções representam os seus principais bens patrimoniais e atrações turístico-culturais, e onde reconstruiu-se uma das mais famosas naus portuguesas para abrigar exposições do Museu Marítimo local. (Veja)

Para além desses bens patrimoniais, veem-se em Malaca referências por todo lado a esse passado histórico de séculos para fins de comércio, turismo e caracterização de uma imagem própria da cidade. Esse fenômeno surge como paradoxal, pois menções e sinais de elementos culturais de uma remota época vista como de invasão estrangeira e de opressão são empregados para fins emblemáticos e de atração.

A consideração dessa situação de aparente incoerência do passado português no centro de Malaca exige não apenas aproximações históricas e arqueológicas, mas também de reflexões voltadas ao presente.

Distinta e ainda mais diferenciada deve ser porém a consideração de bairros e comunidades constituídas de fato por descendentes de portugueses. Estas se concentram em igrejas, sendo estas as suas principais evidências. Estas, porém, não remontam ao longínquo passado do século XVI da conquista, do início da cristianização e do govêrno português, hoje em ruínas, mas sim de séculos posteriores.

Esse é o caso da igreja da Assunção e a de S. Francisco Xavier. Esta última, apesar da sua dedicação, foi construída no local de antiga igreja portuguesa por missionários franceses, exemplificando assim o transplante de modêlos europeus por religiosos de diferentes ordens no século XIX.


Um „assentamento“ fora do centro histórico do passado português de Malaca

O Portuguese Settlement não possui ruínas ou bens patrimoniais de remotos séculos da administração portuguesa de Malaca.

Nessas condições, numa primeira aproximação, diferentemente de procedimentos adequados para o centro histórico de Malaca, parecem constituir aqui sobretudo observações empíricas o caminho adequado para os estudos e análises dos „portugueses“ de Malaca.

A tendência inicial é de se considerar a existência desse bairro „português“ como um excepcional e singular fenômeno de manutenção de memória, língua e hábitos através de séculos. Continuidades e sobrevivências poderiam até mesmo abrir perspectivas para o estudo do longínquo passado.

Essa expectativa, porém, deve ser relativada e a consideração de fatos e desenvolvimentos históricos tornam-se indispensável para a própria condução adequada de estudos.

A comunidade „portuguesa“ do Settlement é resultado de um projeto dirigido, a ser compreendido no contexto político-cultural e eclesiástico da época em que nasceu.

Missões Católicas Portuguesas na imigração como objeto de estudos

Considerados devem ser sobretudo o desenvolvimento do pensamento e da prática no âmbito das missões católicas voltadas não tanto à propagação religiosa em todo o mundo, mas sim ao acompanhamento pastoral de comunidades cristãs na imigração.

Consequentemente, paralelos entre os desenvolvimentos em Malaca e em outras partes do globo podem e devem ser estudados. Esse intento marcou os trabalhos do ISMPS nas suas cooperações com a Missão Católica de Colonia nas décadas de 1980 e 1990, uma vez também que o vice-presidente do instituto, Pe. Dr. Armindo Borges, de origem açoriana, presidiu a Missão.


O significado do estudo de tradições e do cultivo de danças e da música tradicional portuguesa para fins de manutenção de espírito de unidade e dos elos emocionais na comunidade foi sempre salientado e levou à organização de ranchos e grupos de danças que tomaram parte em festividades, procissões e festivais de folclore que chegaram a reunir milhares de imigrantes da Alemanha, dos Países Baixos e da França.

Nas reflexões que acompanharam essas iniciativas, considerou-se paralelos em outros contextos e países.

Um caso que mereceu particular atenção foi o exposto no livro do Pe. Manuel Pintado, pároco da Missão Católica de Malaca, que ali viveu durante três décadas. O livro revela uma concepção marcada pela proteção, recuperação e cultivo de valores humanos num mundo que se encontra atribulado, o que surge como caminho para a própria sobrevivência do homem  No meio pobre dos pescadores cristãos de Malaca, sem possibilidades maiores de trabalho e sem perspectivas, valores humanos - amor ao próximo, solidariedade, modéstia, e alegria sã seriam garantias de sobrevivência. Assim, explicar-se-ia a felicidade e a serenidade que visitantes sempre registram entre os pobres moradores do bairro português de Malaca (Survival through Human Values, Malaca, 1974).

A esses fins servia o cultivo de danças, de práticas musicais e outras expressões tradicionais. O procedimento assim esboçado indica a interação entre expressões culturais transmitidas pela tradição do próprio meio e aquelas nele introduzidas por missionários com interesses culturais a partir da literatura ou de outros meios.

A história do Portuguese Settlement

A crônica do Portuguese Settlement indica ter sido a sua formação resultado da procura de auxílio por parte dos próprios pescadores. Estes, viviam há séculos espalhados pela costa, terra baixa e de manguezais, nos bairros da Banda Hilir e Praya Lane, sobrevivendo da pescaria, em grande simplicidade. Eram cristãos e diferenciavam-se pelo patuá português falado da sociedade malaia. Em modos de vida, costumes e tradições orais diferenciavam-se da cultura envolvente.

A erosão de terrenos pelas águas do mar teria aumentado as dificuldades da prática de pesca e a pobreza. Procurando auxílio na Missão Católica Portuguesa, em 1931, os missionários reconheceram a necessidade de fixá-los em povoado, reunindo os malaio-portugueses dispersos para melhor acompanhá-los.

Os motores do empreendimento foram os missionários jesuítas Pe. Alvaro Martins Coroado e J. P. François. O Pe. Álvaro Martins Coroado era uma das mais respeitadas personalidades do Catolicismo de Malaca cujo empreendedorismo construtivo já tinha sido louvado pelo bispo D. João Paulino d‘Azevedo e Castro (1852-1918) de Macau na sua obra sobre os bens das missões portuguesas na China, em 1915.

„O principal é a igreja matriz de S. Pedro em Bunga-Raya, retaurada em 1819, mas de construccão muito mais antiga (...) cercada por um extenso compound, dentro do qual está situada a residencia dos missionarios. Esta igreja acha-se hoje completamente transformada e muito aformoseada no seu interior, devido isso ao ardente zêlo do Ouvidor P. Alvaro Martins Coroado,em auxilio de quem têm acudio com importantes donativos em dinheiro, os christãos de Malaca e de Kuala-Lumpur“ (Os Bens das Missões Portuguesas na China, 2a. ed. fac-simile, Macau: Fundação Macau 1995, 153).

O Pe. J. P.François recorreu ao comissário inglês Reginald Chrichton - a Malásia encontrava-se sob administração britânica - solicitando um terreno para a implantação do assentamento. Este possibilitou a aquisição da área, sendo a sua memória até hoje conservada no nome de uma das ruas do Portuguese Settlement.

O terreno foi drenado, estabelecendo-se um reticulado de ruas para a criação do assentamento, que foi denominado de St.John‘s village.

Os missionários tiveram desde o início o cuidado de considerar os modos de moradia dos pescadores, inclusive para superar a sua relutância em transferir-se para o novo bairro. Procurando conhecimentos etnográficos de casas de pescadores com o suporte da Malacca Museums Corporation‘s (Perzim), construiram dez casas de madeira, cobertas de palha, com uma sala, cozinha e soalho e conchas trituradas, de 12 X24 metros. Alugadas por preços módicos, foram - então já em número de 68 - passadas à propriedade dos moradores em 1965 e gradualmente reformadas, de modo que hoje são na sua maioria de alvenaria.

Esse papel decisivo desempenhado pelos missionários na aquisição da área leva a que os seus moradores designem o assentamento como „Chão di padre“ ou „Padre-sa Chão“.

Reflexos de concepções político-culturais e etnográficas dos anos 30

Os missionários procuraram assim desde o início valorizar a cultura tradicional dos moradores, correspondendo nesse procedimento a concepções e tendências político-culturais e da etnografia e folclore de Portugal da época, então marcado pela visão do mundo, do homem e da sociedade do Catolicismo do Estado autoritário português.

Ao lado da atenção à cultura popular de tradição oral, deu-se atenção à história portuguesa, o que se manifestou na denominação das ruas, que trazem nomes como Albuquerque (Afonso de Albuquerque), Sequeirah (Diogo Lopes de Sequeira), d‘Aranjo (Ruy e Aranjo), Texeira (Jerónimo Teixeira) ou Eredia Manoel Godinho de Eredia).

A atenção dada a uma cultura fundamentada na história e na tradição correspondia a uma tendência dos anos 30 em Portugal e em outros países. Esse tradicionalismo parece poder explicar o interesse que se manteve pela história e pelo folclore português até o presente.

Tradicionalismo e religião: o português como idioma „cristão“

Esse tradicionalismo parece poder explicar o interesse que se manteve pela história e pelo folclore português até o presente. Entre os moradores, destacam-se entusiastas pelas tradições portuguesas, pela história, pelo próprio Portugal idealizado e pela conservação da versão local do português.

A influência dos missionários e da religião foi assim determinante, de modo que a consideração da cultura dos malaio-portugueses do assentamento não pode ser feita sem conhecimentos da história e do contexto eclesiástico de processos educativos, sociais e pastorais do século XX.

O fator principal da singular identidade e dos elos emocionais com Portugal como  pátria virtual de seus moradores não é tanto o idioma, mas a religião e uma cultura nela fundamentada. Esse fato já se evidencia na sinonímia do ser português com o ser cristão.

Esse uso indeterminado de termos, que já pode ser constatado em fontes do Oriente dos séculos XVI e XVII, explica-se pelo papel decisivo desempenhado pelos portugueses nos primórdios de processos de interações entre o Ocidente e o Oriente, pela importância primordial e extraordinária dada ao combate dos inimigos da Cristandade - em particular aos muçulmanos - e à propagação religiosa através de missionários que marcou a ação de Portugal no mundo.

Os habitantes do local, também são chamados de serâni/sarâni, um termo que seria derivado de nazareno, utilizado para a designação de católicos ou, em geral, de descendentes de portugueses.

Os moradores chamam a si próprios de kristán. Kristang é denominação também do próprio idioma - falar português é falar cristão - o papiá cristão.

Já esse fato indica - como mencionado acima - que aproximações linguísticas no estudo de comunidades descendentes de portugueses no Oriente não são suficientes e primordiais - a perspectiva deve ser em primeiro lugar teórico-cultural, sendo que é sob esse prisma que a própria linguagem passa a ser considerada.

Assim, o fato da crescente perda de proficiência em português ou em malaio-português, compreensível após tantos séculos e acentuada pelo uso quotidiano e pelo ensino escolar do inglês, não significa necessáriamente perda de sentidos de identidade.


De ciclo de estudos da A.B.E. sob
a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. .“O Portuguese Settlement ou Kampong Portugis em Malaca na perspectiva dos estudos relacionados com o Brasil.Missões Católicas Portuguesas em processos identitários na imigração
e o assentamento de malaio-portugueses no Chão di Padre
“. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 167/11(2017:3).http://revista.brasil-europa.eu/167/Portuguese_Settlement.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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