Católicos e protestantes nas ruínas
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 167

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Malaca. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

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Malaca. Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.

 


A.A.Bispo
N° 167/8 (2017:3)


Música em processos religioso-culturais de europeus em Malaca
à procura de novo
sound na percepção do passado malaio-português
nos estudos euro-brasileiros

Reflexões nas ruínas da igreja do outeiro de Malaca ano dos 500 anos da Reformação

 
Malaca. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Um músico que improvisava em instrumento por êle criado num canto da igreja em ruínas do outeiro de Malaca, ao lado de lápides funerárias de portugueses e de holandeses ali verticalmente dispostas, criou, com a atmosfera sonora singular e inesperada, um ambiente instigador de reflexões durante a visita às ruínas da igreja do outeiro de Malaca no âmbito do ciclo de estudos euro-brasileiros realizado no arquipélago malaio em março e abril de 2017.

A sonoridade e o rítmo que envolviam o espaço, que não correspondiam musicalmente nem às diferentes fases da história do edifício arruinado, nem a tradições malaias, chinesas ou de outras origens da cidade multicultural, faziam com que a antiga igreja vibrasse de forma inesperada como se fosse uma grande caixa de ressonância, ela própria um instrumento.

O observador assim envolvido, passava a percebê-la de forma surreal, intuindo sentidos outros do que aqueles transmitidos pela leitura das lápides, pela história e pela arqueologia. Essa experiência trouxe à consciência as múltiplas possibilidades de percepção do espaço e da história, do descobrimento de novos sentidos e dimensões, de vivência do passado ao som do presente.

Essas possibilidades surgem como particularmente significativas no caso das ruínas da igreja do outeiro de Malaca, marcada que é por uma relitos históricos que falam de quebras de continuidade, de interrupções e mudanças de desenvolvimentos, de sucessões de processos num todo que surge como complexo, incoerente, do qual hoje restam apenas ruínas.

Perceber esse desenvolvimento temporal que surge como confuso e desolador em modificado estado mental e emocional pode contribuir ao alcance de um grau mais elevado de visões e interpretações, acima daqueles que vêem nas ruínas falências de esforços passados e traços memoriais de tensões, violências e guerras.

Essa procura de novos caminhos perceptivos apresenta-se como atual sob diversos aspectos.

Não são apenas os portugueses que sentem-se desolados no confronto com ruínas enegrecidas de seu passado na então opulenta Malaca. Católicos sentem-se desolados ao lembrar-se que a igreja foi ocupada pelos holandeses, tornando-se templo protestante, e que o colégio São Paulo dos Jesuítas foi fechado. Protestantes sentem-se desolados ao lembrar que, sob os inglêses, a igreja foi secularizada e usada como depósito de pólvora. Cristãos em geral sentem-se desolados em encontrar ruínas de séculos de presença cristã no país do Islão vitorioso.

À procura de novas perspectivas - de um novo sound em narrativas

A procura de novos caminhos para a leitura dessa história de conflitos em novo estado mental e emocional mostra-se particularmente atual pela passagem dos 500 anos da Reformação. (Veja)

Em pronunciamentos de ambos os lados - do católico e do protestante - tem-se salientado a necessidade de novos olhares dos conflitantes desenvolvimentos que trouxeram uma cisão no Cristianismo e que poderiam ser abertos em novo estado de espírito, mais alto, menos marcado pela memória de violências do passado. (Veja

Esse anelo pronunciado sob o ponto de vista teológico e ecumênico, pode também valer para os estudos de processos culturais. Esses processos marcados pela Reformação tiveram dimensões globais, marcaram as relações do Ocidente e do Oriente a partir do século XVI e neles se inclui também o Brasil.

Nestes estudos referenciados segundo o Brasil, não se pode esquecer, no ano dos 500 anos da Reformação, também e sobretudo os processos reformatórios internos do próprio Catolicismo e que se fizeram sentir em Portugal e nas regiões extra-européias alcançadas pelos portugueses.

Neste sentido, as atenções não poderiam deixar de dirigir-se à principal instituição então surgida e que marcou fundamentalmente os processos religioso-culturais em relações entre o Ocidente e outras partes do mundo: a Societas Jesu.

Lápides de católicos e protestantes lado a lado na igreja do outeiro

Nas ruínas da igreja do outeiro encontram-se lápides de antigas sepulturas descobertas em escavações da sociedade histórica de Malaca em 1930 e dispostas pelos muros das ruínas.

Nomes de portugueses surgem ao lado dos de holandeses, católicos junto a protestantes, relativando em ironia da história os conflitos que marcaram a época de suas vidas.

Nelas le-se o nome de um dos mordomos da igreja e de sua esposa, falecido em 1568, assim como de vultos de liderança da antiga fortaleza: Antonio Pinto da Fonseca, Provedor Geral as fortalezas a India e comendador da Ordem de Santiago, falecido em 1635, e, sobretudo, a de D. Miguel de Castro, capitão da fortaleza, filho do vice-rei D. João de Castro (1500-1548). O nome desse administrador e erudito cartógrafo desperta a atenção dos estudos referenciados segundo o Brasil, uma vez que foi sucessor de Martim Afonso de Souza (ca. 1490-1564).

Simposio ISMPS Patio do Colegio. Sao Paulo 2004
Presente encontra-se sobretudo a memória do passado jesuítico da igreja, podendo-se ler o nome do segundo bispo do Japão, D. Pedro Martins SJ (1592-1598).

No centro do antigo coro encontra-se um mausoléu de metal com as insígnias da Societas Jesu e que traz à lembrança não só os muitos missionários que ali viveram como também e sobretudo S. Francisco Xavier, que atuou em Malaca e cujos restos mortais foram para ali transportados após a sua morte na China. Permaneceram em Malaca por meses antes de serem trasladados a Goa.

Pessoas das mais diferentes religiões consideram esse túmulo como local numinoso e, supersticiosamente, nele jogam moedas, na expectativa de bons augúrios e sorte.

É a memória de S. Francisco Xavier (1506-1552) que procura dominar o complexo de referências históricas da igreja arruinada. A ela contribui a estátua do missionário à frente da igeja, levantada em 1952 por ocasião das comemoração dos 400 anos de sua passagem por Malaca. Essa representação surge como singular em país islâmico, no qual poucos monumentos do gênero se encontram em locais públicos.

Renovação de perspectivas nos estudos relativos aos Jesuítas

A importância da influência dos Jesuítas na formação cultural do Brasil, na cristianização de indígenas e na vida das populações, sobretudo através de suas atividades de ensino e e seus colégios, sempre foi reconhecida e mesmo celebrada na historiografia.

Nos estudos culturais, mesmo naqueles de natureza antes empírica voltados a expressões festivas tradicionais, muitos autores salientaram o significado de danças, da música e do teatro nas atividades catequéticas dos Jesuítas e que explicariam em parte expressões que até hoje são cultivadas no Brasil. Já no século XIX, no despontar dos estudos etnográficos e de tradições religiosas, o papel dos Jesuítas no emprêgo de elementos culturais de indígenas nas suas práticas catequéticas foi reconhecido e salientado.

Essa atenção à ação dos missionários da Companhia de Jesus, muito maior do que aquela emprestada à de outras ordens, explica-se pela maior abundância de fontes resultantes da prática da correspondência derivada da própria estrutura da Companhia.

Essa documentação, publicada e comentada por historiadores, sobretudo por eruditos vinculados à Societas Jesu, constitui um valioso conjunto de textos repletos de informações e pertinentes comentários, de fundamental importância sob diversos aspectos.

Esses documentos, porém, necessitam ser lidos na consciência de terem sido escritos não só da perspectiva européia, mas sim e sobretudo, na sua maioria, por religiosos da própria Companhia. Transmitem uma determinada perspectiva de fatos e decorrências e são impregnados de valores que refletem orientações, correntes e tendências do pensamento religioso da época em que a sociedade jesuana foi fundada e em se inscreveu.

Essa constatação levou a reflexões e debates na segunda metade da década de 1960, quando concomitantemente procurava-se uma renovação teórica de áreas culturais, - em particular no âmbito da Associação Brasileira de Folclore -, e quando muitos pesquisadores se dedicavam à consecução de renovações no culto e na prática pastoral desencadeadas pelo Concílio Vaticano II.

O reconhecimento da necessidade de um direcionamento da atenção a processos em ambos os casos teve também consequências para a consideração do papel exercido pelos Jesuítas na formação cultural do Brasil - a dinâmica dos desenvolvimentos passou a ser prioritariamente focalizada.

Desenvolvimento do debate nos estudos euro-brasileiros

Com a criação do departamento de Etnomusicologia do instituto de estudos da organização pontifícia de música sacra, em 1977, e ficando o mesmo sob a orientação do editor, o debate que já se desenvolvia no Brasil relativamente à ação dos Jesuítas em processos culturais passou a constituir importante foco das atenções.

As preocupações e os anelos da época pós-conciliar relativos ao emprêgo de elementos de expressões do folclore e da cultura popular em geral - sobretudo musicais - no culto e práticas religiosas - um processo em geral designado como de „inculturação“, lembrava a muitos o método empregado pelos Jesuítas no século XVI. Estes surgiam como extraordinariamente modernos, como exemplos de procedimentos inculturativos da atualidade e que eram marcados, sob o aspecto musical, pelo intento de emprêgo de elementos musicais e instrumentos da cultura popular a serviço da participação ativa do povo em atos de culto. Tratar-se-ia, nesse caso, apenas de constatar se esses elementos e instrumentos eram ou não „aptos“.

Essa projeção de concepções e anelos „inculturativos“ do presente na consideração do passado foi reconhecida, porém, como insustentável do ponto de vista científico. Ela idealizava e distorcia o passado, impedindo a análise mais diferenciada de processos.

Sobretudo etnomusicólogos alemães - por deficiência resultante da própria problemática metodológica da área e da falta de conhecimentos da história cultural missionária - partiam de concepções que contrariavam o fato de ter sido a Companhia de Jesus e as ordens religiosas em geral resultados de processos religioso-culturais de sua época e que, apesar de toda a continuidade, passaram por transformações no decorrer das suas atividades em diferentes contextos.

Impunha-se, assim, considerar a documentação no contexto de sua época e as informações nela transmitidas nas suas inserções em processos epocais e que tinham dimensões globais.

Reconheceu-se que métodos e práticas dos Jesuítas nasceram do contato e da vivência da realidade ganhas no mundo extra-europeu e, neste sentido, o Brasil desempenhou importante papel. Com as viagens e interações de regiões do Ocidente e do Oriente, experiências obtidas numa parte do mundo influenciaram ações em outras em complexos processos recíprocos que exigem análise diferenciada no seu desenvolvimento temporal.

Essa tarefa de levantamento, estudo e análise de fontes nas suas inserções em processos em relações globais marcou o desenvolvimento dos estudos das décadas em que se seguiram.

A problemática e os conhecimentos obtidos foram discutidos em publicações e encontros internacionais. Já o Simpósio Internacional „Música Sacra e Cultura Brasileira“ levado a efeito em São Paulo, em 1981, foi aberto simbolicamente com uma visita ao Pátio do Colégio, local da antiga missão da Companhia, o que repetiu-se em ocasiões posteriores, por último na sessão realizada no Museu Anchieta ali instalado por ocasião dos 450 anos da fundação de São Paulo, em 2004.

Jesuítas e jurisdições:  Padroado Português e Propaganda Fide

No decorrer dos estudos desenvolvidos nas décadas de 1970 e 1980, revelou-se que a consideração da Companhia de Jesus e dos processos culturais desencadeados pelos missionários não podia efetuar-se sem levar-se em conta questões jurisdicionais do Padroado Português do Oriente nas suas relações com um desenvolvimento de ações apostólicas centralizadas em Roma e que levaria por fim à fundação da Propaganda Fide, em 1622. Esses desenvolvimentos tiveram consequências para toda a história religioso-cultural de contextos sob a jurisdição do Padroado.

Todo o século XVI foi marcado por processos internos - não sem tensões e conflitos - decorrentes do anelo de ação e controle missionário centralizado em Roma na esfera jurisdicional portuguesa e das quais a sua mais militante instituição foi a Companhia então recentemente fundada.

O estudo dessa instituição no seu desenvolvimento, e também na participação nele de portugueses, levanta questões de correntes de reforma interna e fortalecimento de Roma no próprio Portugal, o que leva à exigência de estudos mais diferenciados de processos religioso-culturais internos portugueses já em época anterior a D. João III (1502-1557), e que se revela como sendo de relevância também para a consideração da história universitária portuguesa.

Esses estudos, sob a perspectiva mais ampla de suas inserções européias, foram desenvolvidos em instituições romanas e debatidos em cursos e simpósios realizados no Istituto Pontificio di Musica Sacra na década de 1980. Esses estudos não poderiam ter sido realizados sem o apoio de S. E. J. Cardeal Ratzinger, então Prefeito da Congregação que herdou a antiga Propaganda Fide.

Consequentemente, foi no âmbito da Pontificia Università Gregoriana que, em 1991, teve lugar a sessão na qual form apresentados e discutidos os resultados dos trabalhos e que foram os primeiros que procuraram trazer à consciência os valores do Padroado sob o aspecto cultural no âmbito de instituições que em parte remontavam ao Colégio Romano dos Jesuítas do século XVI.

Procurou-se, nessa sessão, contribuir à superação de visões que, dominando a literatura, faziam surgir a ação do Padroado apenas sob luz negativa de problemáticos elos entre o poder político e o religioso. Para isso, tornava-se necessário mudanças de percepção da história e de seus documentos, um aguçamento da sensibilidade para outras situações mentais e psíquicas.

Dimensões culturais da dispensa do canto das horas da Companhia

O papel condutor da música nesses estudos de processos culturais explicou-se pelo fato de que, através dela, podia-se tratar de diferenças fundamentais de concepções referentes às relações culto/cultura, de orientações antes voltadas à sacralidade da música nos seus estreitos elos com a liturgia ou antes voltadas à música como meio de atração e a serviço de vida comunitária, ou seja, de questões  então de significativa relevância atual.

Essa diferença evidencia-se sobretudo no fato de ter a Companhia alcançado a licença quanto ao serviço do coro nas horas litúrgicas, indispensável até então à vida religiosa de ordens. Com essa dispensa, ganhava-se tempo para a militância, catequética, de ensino e caritativa, o que explica o cuidado pela sua manutenção e observação nos documentos do século XVI.

Essa característica, porém, revela um deslocamento de pesos e de significados, assim como fundamentais diferenças quanto a a concepções de canto ou música sacra como parte integrante do ato litúrgico.

As  atenção por parte de autoridades portuguesas ao culto nas igrejas de fortalezas e nas regiões sob a sua jurisdição que se constata dos documentos levou a esforços de fomento do canto litúrgico em missas solenes e na prática das horas através do envio de antifonários e outros livros, com notações ou não. Compreensivelmente, menos frequentes são menções similares na correspondência jesuítica.

Correntes de reforma interna em Portugal antes do Concílio de Trento

A atenção dada por Portugal ao cantochão no culto em tão longínquas regiões já nas primeiras décadas do século XVI adquire especial relevância musicológica, pois contradiz em grande parte visões músico-historiográficas do século XVI. Estas partem sobretudo da revalorização do canto litúrgico no Concílio de Trento (1545-1563), esquecendo ter sido este apenas o ápice de um desenvolvimento de décadas.

Ao mesmo tempo, essa atenção por parte de autoridades portuguesas contradiz suposições de que, ao contrário da interiorização que teria sido fomentada pelos Jesuítas, a prática nas igrejas seria exteriorizada, voltada à pompa externa.

A análise deve aqui partir de uma diferença quanto a concepções, entre elas a dos efeitos no homem irradiados do próprio culto solene, ao qual o homem deve colocar a serviço o mais valioso que possui, uma orientação à magnificência ou magestade divina que não exclui, ao contrário até mesmo pressupõe a modéstia ou humildade.

Diferente é uma atitude propagandística, voltada à atração e à conquista espiritual. Assim vendo, o procedimento jesuítico passa a ser considerado sob outra perspectiva, invertendo-se interpretações quanto a interiorizações e exteriorizações, assim como quanto à música e outras expressões artísticas na prática missionária jesuítica, sempre extraordinariamente valorizadas na literatura.

Essa diferença, independentemente de sua consideração teológica, revela-se como de especial significado na percepção de diferentes concepções culturais e em análises de processos desencadeados pelos portugueses.

Francisco Xavier (1506-1552) como enviado de Roma na esfera do Padroado

Na consideração a ação dos Jesuítas no âmbito do Padroado Português do Oriente desenvolvida no âmbito dos estudos euro-brasileiros, não poderia deixar de ser estudada sobretudo o vulto de S. Francisco Xavier ((1506-1552), o „apóstolo do Oriente“.

Como tratado em 1987 em visita à igreja Il Gesù de Roma, onde se conserva uma relíquia do missionário, para ali trazida em 1614/5, a ação de S. Francisco Xavier no Oriente deve ser considerada no campo de tensões jurisdicionais e religioso-culturais entre o Padroado e Roma.

Problemas surgidos em Goa com o aprisionamento de emissários romanos constituiram um dos fatores que levaram a ameaças de abertura do Oriente à missão de outros países, o que teria tido por consequência a intensificação missionária por parte de D. João III (1502-1557) e, neste contexto, a procura de missionários e o apoio à ação dos Jesuítas.

É significativo que Francisco Xavier, que partiu de Lisboa em 1541, chegando a Goa em 1542, viajou ao Oriente como Núncio Apostólico, em função e com bençãos pontifícias.

Foi sobretudo sob a perspectiva dessas interferências e interações político-eclesiásticas e de orientações que a vasta litertura referente a S. Francisco Xavier foi estudada e debatida no âmbito de cursos do Pontificio Istituto de Musica Sacra e da Universidade de Colonia.

Encontro na Diocese de Macau pela passagem de Macau à China

Um marco no desenvolvimento das reflexões deu-se em encontro realizado em 1996/1997 no Instituto Inter-Universitário da Diocese de Macau. Por ocasião da passagem do território à China, cumpria considerar e avaliar à luz do presente caminhos do passado nas relações do Extremo Oriente com o Ocidente. Considerando-se a história do Cristianismo na China, a atenção voltou-se necessariamente a S. Francisco Xavier, que faleceu na ilha Shangchuan Dao, nas circunvizinhanças de Cantão.

Nessa ocasião, salientou-se o papel de Malaca como dos mais importantes portos do século XVI do Oriente, centro de afluência de mercadores de diferentes povos, em particular também chineses, e no qual Francisco Xavier S.J. recebeu informações sobre a China e no qual decidiu-se viajar ao Japão. Foi também em Goa que o seu corpo foi conservado durante meses após a sua morte, antes de ser por fim levado a Goa.

Goa - Cochim e Malaca nos estudos de processos culturais

Sendo Goa ponto de partida e fim de suas atividades no Oriente, centro da esfera de atuação dos portugueses, onde as relíquias de S. Francisco Xavier conservadas e veneradas na igreja do Bom Jesus, foi essa antiga capital do Estado Português da Índia que foi objeto de ciclo de estudos promovidos pela A.B.E. ao lado daqueles em Cochim, em 2011. (Veja)

O documento jesuítico de maior interesse para os estudos euro-brasileiros que menciona Malaca entre aquelas fortalezas que teriam necessidade de pregadores e sacerdotes de condução rígida de vida é de Pedro/Pero Fernandes Sardinha (ca. 1496- c.1556), aquele que seria o primeiro bispo de Salvador, que se escandalisaria com os procedimentos dos missionários no Brasil e que terminaria devorado pos indígenas. Como estudado em diferentes ocasiões, Pedro Fernandes Sardinha surge como homem de princípios, severo, atento às orientações primeiras da Companhia, voltadas à pregação ou por palavras, ou por comportamento. Não podia, assim, estar de acordo com procedimentos de missionários que encontraria no Brasil.

„Que em todas as fortalezas aja pregadores, principalmente nas que estão muito afastadas da Inia, como são Maluquo, Malaqua, Ceilão, Choromandel, Çofala, Moçambique e Ormuz, ou ao menos se provejão de vigarios sufficientes que, quando não tiverem abilidade pera ar doutrinas, dein bom exemplo, e preguem com a vida, e folguem de ensinar a doutrina christã. („Cristandade na india. Exposição a el-rei do Padre Mestre Pedro Fernandes Sardinha, s/d. Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente: Índia, coligida e anotada por António da Silva Rego  IV, Lisboa: Fundação Oriente/Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses 1991 IV, 558 ss.)

Entre os vários aspectos tratados em encontros, incluiram-se reflexões sobre os pressupostos da ida de S. Francisco Xavier a Malaca, para as quais menções na documentação histórica oferece importantes subsídios.

Entre elas, lembrou-se em particular da criação da Confraria da Conversão à Fé em Goa, em 15 de Julho de 1541. Nela, meninos provenientes de diferentes regiões do Oriente e da África oriental passaram a receber formação. O seu escopo era o de que, com o conhecimento de línguas e marcados biculturalmente, os assim formados, em parte provenientes de círculos de liderança nas suas terras, atuassem a seguir após o seu retorno de modo mais eficaz na cristianização de seus povos de origem. Ter-se-ia aqui uma estrategia de conversão do alto para baixo, dos líderes para a população liderada nas diferentes regiões e isso através de crianças. (Veja)

Malaca é explicitamente mencionada nos estatutos da confraria como cidade que teria necessidade de sacerdotes que deveriam ser preferencialmente naturais.

„Item. ... da muita necesydade que avya tambem em outras partes, scilicet Malluqo, Mallaqua, Cabo do Comorym omde se fazião e esperavão de fazer muitos cristãos e carecião de sacerdotes que os podesem doutrinar, e que comvinha serem dos seus mesmos naturaes, e asentarão que se ordenase nesta ylha hum apousento à maneira de collegio (...) (Estatutos da Confraria da Converção à Fé, Goa 15 de Julho de 1541, op.cit.  III, 1543-1547, Lisboa: Fundação Oriente/Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses 1991, 8).

Em carta de Francisco Xavier a Inácio de Loyola (1491-1553), escrita em Goa em 1542, e na qual trata das necessidades espirituais da Índia, o missionário atesta ter conhecimento de que em Malaca viviam muitos cristãos: „y de aquí (Maluco) a Malacha ay 500 legoas, onde ay muchos christianos.“(„Necessidades Espirituais da India“, Goa, 20 de Setembro de 1542, op.cit. II, 42 ss.,45)

A premência da ida a Malaca ganha pelas informações sobre o número de cristãos que ali viviam e as expectativas promissoras de conquista de novos revela-se em carta de Francisco Xavier a Francisco Mansilhas escrita em 1545:

„E tenho por novas certas que em as partes de Mallaca há muita dispozição para servir a Deos, e à mingoa de quem a isso trabalha, se deixão de fazer muitos christãos e de acrescentar-se a nossa santa fé. Não sei o que será disto de Jafanapatão, por isso não me determino se hirei a Mallaca ou ficarei...“ („Francisco Xavier ao Padre Francisco Mansilhas“, Negaptão 7 de Abril de 1545, op.cit.161)

A ida do missionário a Malaca procedeu-se por meios inesperados, com a ajuda de um comerciante, como êle próprio relata em instruções enviadas de Malaca:

„Estando en Santo Thomae aguardando por tiempo para ir a Malaca, allé un mercader, que tenía un navío con sus mercaderías (...) („Instruções de Xavier aos Catequistas“, Malaca, 10 de novembro de 1545, 56, op.cit. 237 ss.)

Atividades de pregação em meio português de Malaca

Escrevendo de Goa, de 2 de Abril de 1548 a Diogo Pereira, anunciando o seu plano de realizar uma viagem ao Japão, informa que mandava a Malaca dois companheiros seus - Pe. Francisco Peres e Ir. Roque de Oliveira - para pregar aos portugueses com suas mulheres e escravos, a ensinar e doutrinar cada dia como lá fizera até então. O irmão, não sacerdote, ia para ensinar a ler e escrever os filhos dos portuguezes, também em gramática, e ensina-los a rezar as horas de N. Senhor, os sete psalmos, as oras de finados pelas almas de seus pais. Em Malaca muito se aprendia através de leituras de causas judiciais, e os filhos dos portugueses, lendo tais feitos, tornavam-se „mallaquazes“.

Em carta dirigida ao Padre Simão Rodrigues, em 1548, Xavier pedia o envio de pregadores, jesuítas ou franciscanos, que não deveriam ter outra ocupação maior do que pregar nos domingos e festas primeiramente aos portugueses, e depois do almoço, aos escravos e escravas, cristãos forros da terra, e um dia por semana às mulheres e filhas de portugueses. („Carta de Xavier ao Padre Simão Rodrigues, 7, op. cit. IV, 28 ss.)

Essa pregação, que era sobretudo para portugueses, dava-se em sociedade marcada pela riqueza, sendo Malaca considerada como uma das mais ricas da Índia.

„E dali partimos e viemos ter a Malaqua, outra fortaleza d‘El Rey, as mais riquas que há na India...“ (“Carta do Padre Cosme de Torres para S. Inácio de Loyola“. Goa, 25 de janeiro de 1549, op.cot. IV, 260-263)

Em carta do Pe. António Gomes, reitor do colégio de Goa a Ignacio de Loyola, de 1549, salientava-se que os Jesuítas atuavam em Malaca na comunidade de portugueses, não havendo „gentilidade“ nas redondezas.

„Em Malaqua estam tres Yrmãos, hum delles prega e faz muito fructo nos portugeses, porque hé cidade grande e de muito trato; hé muy devota da Companhia polo muito fructo que se tem aly feito. Hé terra boa e farta, nam entendem os Yrmãos senam com christãos, porque nam há gentilidade ay perto.“ („Carta do Padre António Gomes, Reitor do Colégio de Goa a S. Inácio de Loyola, Goa, 25 de Outubro de 1549“. op.cit. IV, 336 ss., 337).

Com os judeus de Malaca, Francisco Xavier manteve disputas, como documenta carta do Pe. Gaspar Barzeo a seus confrades na Índia e na Europa, escrita em Ormuz, em dezembro de 1549.

„O Rabbi Salomom, que hé o mais docto delles, lee em outra synagoga. Este teve yá com mestre Francisco algumas disputas em Malaca, do qual fui tam perseguio que me não deixavão elle e outros judeos, movendo-me muitas questões sem me responderem, ...“ („Carta do Padre Gaspar Barzeo aos seus confrades na India e na Europa, Ormuz, 1 de Dezembro de 1549“, ibidem 373ss.405)

Mudanças culturais na própria sociedade portuguesa de Malaca

Ao chegar a Malaca, Francisco Xavier encontrou uma cidade portuária na qual se emprestava particular cuidado à solenidade do culto.

Significativo documento que indica essa atenção à forma do culto e compreensivelmente ao canto litúrgico é uma carta do vigário de Malaca, Pe. Afonso Martins, ao rei de Portugal, de 1532.

Esse sacerdote já tinha escrito ao rei a respeito de assuntos do „espiritual e do temporal“ das igrejas da Índia em 1530 e, em 1531, sobre as necessidades de Malaca. A igreja principal da cidade tinha necessidade de paramentos adequados e objetos adequados ao culto solene, assim como de livros de orações e de canto, inclusive para a prática do canto em coro.

„...Essa igreja tem neceçidade e huum pomtificall, a saber, huma vestimenta riqua com suas allmaticas e capa e hum calez riquo e misaes mistiqos e sallteiros pequenos e brebiairos pera ho coro, e huum bribiairo de marca maior de camara, pera a estamte do coro, e huum salterio de marqua maior de letra grosa e huma galhetas de prata gramdes, todas douradas pera o pomtificall e outras vestimemtas de damasqos finos, brancas e vermelhas, e huma vestimemta preta de sytim com suas allmaticas e capa pera os oficios da Somana Samta da Paixam, tudo preto, e allguns livros de canto cham apontados, a saber hum oficiall que tenha domingall e santall, todo aponto, e o...  E as cousas que vierem pera Malaqua sejam emtregues ao feitor ou a oficiais que vierem pera esta cidade, com mandado expreso que as nom tomem na Imdia, porque as tomam cada vez e nom vem nunqua qua tornada.“ („Carta do Padre Afonso Martins, Vigário de Malaca, a El -Rei, Malaca 27 de Novembro de 1532“, op.cit. II, 218 ss., 220)

Em cartas a seus confrades na Europa, de 10 de novembro de 1545, e posteriormente em carta escrita em Amboino em 10 de maio de 1546, Francisco Xaver oferece uma visão geral da situação por êle encontrada e de suas atividades em Malaca. O missionário salienta ter encontrado uma cidade de grande comércio marítimo. Havia conflitos entre soldados e inimizades na população local, que deviam ser apaziguados.

Passando a pregar na sé, impressionou pelas suas qualidades retóricas e da força de suas convicções os cristãos que ali viviam e que erm na sua maioria portugueses. Que, com as exortações do missionário os portugueses que ali viviam passassem a ter pêsos de consciência e consciência de pecados, isso explica a quantidade de confissões que Francisco Xavier passou a ouvir e que, nas suas palavras, muito o importunava e do qual não chegava a dar conta.

Tudo indica, assim, que uma verdadeira onda de remorsos quanto a atos e modos de vida tomou conta de Malaca. Dormindo no hospital, o missionário despendia grande parte de tempo a ouvir confissões de doentes e dar-lhes comunhão, celebrando ali a missa aos domingos.

As atividades de ensino do Jesuíta devem ser compreendidas nesse contexto e não em projeções de concepções educativas do presente. Tratava-se não só do ensino da doutrina cristã de crianças e jovens, mas sim no de „christianos nuevamente convertidos a la fee“.

Estrategia e procedimentos missionários

Como na Índia e como nas ações dos Jesuitas no Brasil, o missionário viu no ensino religioso das crianças o caminho mais eficiente para a propagação religiosa e mogerizadora, seja na sua atuação nas famílias, seja na determinação de novas gerações com modos de vida mais compatíveis com as concepções jesuíticas.

A atividade educativa de Francisco Xavier em Malaca era basicamente a do ensino de orações às crianças, no qual dispendia mais de uma hora por dia. Como na Índia, o seu método baseava-se sobretudo na memorização através de repetições.

As crianças macaçares, porém, não entendiam nem o português das explicações nem o latim das orações. Francisco Xavier viu-se assim obrigado a tentar traduzir as orações em latim em língua que pudesse ser entendida, o que era muito difícil e trabalhoso.

„Después que llegué en Malaca, que es una ciubad de grand trato de mar, no faltan occupationes pías: todos los domingos preico en la See, y no estoi tan contento de mis praedicationes, quanto están los que tienen pacientia de me oír. Todos los días enseño a los niños las orationes una hora o más. Poso en el hospital, confiesso los pobres enfermos, díggolos missa y los comulgo. Soi tan importunado en confssiones, que no es possible poder cumplir con todos. La maior occupación que tengo es de sacar las orationes de latín en lenguage que en los Macaçares se pueda entender. Es cosa mui trabajosa no saber la lengua.“ („Xavier aos seus confrades da Europa“ Malaca, 10 de novembro de 1545, op.cit. 234 ss.)

O método repetitivo de orações e exortações no inculco de concepções e normas e na criação de uma atmosfera marcada por religiosidade também era utilizado em práticas noturnas. Como na Índia, o missionário percorria a cidade de noite com uma sineta,com encomendações pelas almas que se encontravam no purgatório.

„En este tiempo no me faltaron occupaciones spirituales, así en preicar los domingos y fiestas, como en confesar muchas personans, así los enfermos del hospital donde posava, como otros sanos. En todo este tiempo enseñé a los muchachos y christianos nuevemente convertidos a la fee la doctrina christiana. Con la ayua de Dios N.S. hize muchas pazes entre los soldados y moradores de la ciudad, y las noches iva por la ciudad con una campana pequeña encomendando las ánimas del purgatorio, llevando comigo muchos niños de los que enseñava la doctrina christiana.“ (Xavier aos seus confrades da Europa, Amboino,10 de Maio de 1546, op.cit., III, 339 ss.,340)

Em documento com notícias da Índia escrito em Goa, provavelmente no início de 1548, registra-se que Francisco Xavier, que partira para Maluco, disse que não teve muito sucesso na melhoria os costumes. Na fortaleza, muito rica, moravam muitos portugueses casados que possuiam três ou quatro mulheres, e „muitos mea duzia“. Falava-se que o missionário se despiu e enterrou as suas roupas, vestindo-se com peles, o que não devia ser verídico. (Notícias da Índia, op. cit. IV, 35 ss., 37)

O papel de Malaca no caminho à China e ao Japão

Se a ação de Francisco Xavier em Malaca desenvolveu-se sobretudo no meio português, foi ali que encontrou, em 1547, japoneses que, pelas suas informações e pelo seu comportamento e atitudes deram-lhe a convicção da necessidade de ir e levar a doutrina cristã ao Japão.

Por la mucha información que tengo de una isla de Japón, que está allende de China 200 lleguas o más, por ser gente de mucha arte y manera, y curiosa de saber, assí de las cosas de Dios como e otras cosas de sciencia, según me dan información los portugueses que daquellas partes vinieron, y también por unos hombres japoneses, que el año passado vinieron de Malaca comigo, que se hizieron christianos en el collegio de Sancta Fe de Goa, me dieron información daquella ysla, como veréys por un quaderno que allá hos embóp, que fué sacado por la información que nos dió (Paulo) Sancta Fe, y éste es el que se hizo christiano; de antes se llamava Angero de Japón...,(„ Carta de S.Francisco Xavier ao Padre Simão Rorigues. Cochim, 20 de Janeiro de 1549“.

Intervenção junto ao rei para coagir governadores na melhoria de costumes

Poucas cartas lançam uma luz tão negativa sobre Francisco Xavier e seus métodos como aquela escrita em Cochim a 22 de janeiro de 1548, logo após retornar de Malaca. Nela, apoiado pela simpatia que sabia dedicar o rei à Companhia, salienta o papel decisivo que poderiam desempenhar os governadores na propagação religiosa e na melhoria dos costumes, uma tarefa que seria uma exigência para o descargo de consciência do próprio soberano (!), devendo para tal obrigá-los sob as mais severas penas. („Carta de Xavier a D. João III, 5, Cochim, 20 de janeiro de 1548“, op.cit. IV, 16 ss.)

Essa carta relativa a crítica que sempre se levantou ao Padroado, demonstrando que também os Jesuítas utilizaram-se de suas estruturas para a concretização de seus objetivos em questionável referência a problemas de consciência do rei caso não agisse com grande rigor junto a seus administradores.

(Veja em continuidade)


De ciclo de estudos da A.B.E. sob
a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.“ Música em processos religioso-culturais de europeus em Malaca à procura de novo sound na percepção do passado malaio-português nos estudos euro-brasileiros
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 167/8(2017:3). http://revista.brasil-europa.eu/167/Sonoridades_de_Malaca.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

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Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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