Austrália e Timor: Margaret King Boyes
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 168

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Kuranda, Cairns. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

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Kuranda, Cairns
Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.

 


Kuranda, Cairns. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright
N° 168/8 (2017:4)


Aborigenes australianos e culturas musicais tradicionais de Timor-Leste
em pesquisas de Margaret Jessica Esmeé King Boyes (*1922)
consideradas nos estudos euro-brasileiros

Estudos em Kuranda, Cairns, pelos 40 anos de „Patterns of Aboriginal culture Then and Now

 

No ciclo de estudos euro-brasileiros que focalizaram em 2017 as ilhas de Sonda no Sudeste Asiático - grupo de ilhas entre o arquipélago malaio e a Austrália - veio mais uma vez à consciência o papel desempenhado por estudiosos australianos na pesquisa cultural dessa esfera do globo.

Recordar os elos dessa esfera insular com a Austrália adquire importância para os estudos de processos histórico-culturais relacionados com Portugal - e assim com o Brasil -, uma vez que os portugueses foram os primeiros europeus que ali atuaram no século XVI e marcaram os desenvolvimentos desencadeados.

Quando o observador externo volta por exemplo o seu interesse a Timor Leste, país de passado colonial português e que, após décadas de conflitos e destruições na segunda metade do século XX alcançou a sua independência, dificilmente pensa de início em procurar dados ou considerar situações e desenvolvimentos australianos.

Essa necessidade de consideração da Austrália em estudos de antigos territórios e colonias portuguesas na Ásia, compreensíveis pela relativa proximidade geográfica, resulta em parte do fato de que ali se estabeleceram emigrados de regiões de-colonizadas ou afetadas por conflitos e guerras no século XX.

Assim, ali constata-se a tematização da problemática de gerações mais jovens de timorenses que, formados em época da ocupação indonésica, não falam o português e sentem-se estranhos a desenvolvimentos posteriores à Independência, sentindo-os como indícios de uma re-lusitanização e, assim, de re-colonização cultural.

Talvez o principal motivo da importância que assume a Austrália para o estudo de regiões do Sudeste Asiático reside na obra de estudiosos australianos e na existência de centros de estudos em universidades que oferecem formação em nível internacional e que mantém contatos e intercâmbio com instituições especializadas na Europa e nos Estados Unidos.

Registra-se, assim, mais uma vez a necessidade de condução de estudos culturais em estreito relacionamento com aqueles da própria pesquisa (science studies), o que constitui escopo da A.B.E..

Lembrando de Margaret J.E. King-Boyes em Kuranda, Cairns

Transcorridos 40 anos de uma publicação que desempenhou papel relevante também nos estudos referentes aos indígenas no Brasil - os Patterns of Aboriginal culture: Then and Now (Sydney/New York: McGraw-Hill 1977), lembrou-se da sua autora, Margaret Jessica Esmeé King-Boyes em visita a um centro da cultura aborígene da Austrália: Kuranda, localidade próxima de Cairns, Queensland.

Kuranda, Cairns. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright
Trata-se de uma cidade que adquire particular interesse para estudos culturais aborígenes e coloniais nas suas relações com o meio ambiente. Habitada desde remoto passado por aborígenes Tjapukai, possui uma considerável comunidade nativa, tem a sua identidade e representação marcada pela cultura aborígene. Esta tornou-se um dos fatores de atração da localidade, procurada por grande número de visitantes de todo o mundo.

Kuranda surge assim como significativo contexto para estudos de processos culturais relacionados com culturas indígenas nas suas transformações, permanências e relações com a sociedade resultante de desenvolvimentos coloniais.

Tanto questões como a a comercialização de objetos aborígenes para fins turísticos como também a de impulsos que podem partir a cultura aborígene para a arte podem ser tratadas de modo particularmente favorável em Kuranda.

A atualidade de uma visão do mundo e formas de expressão aborígenes nas suas relações com a terra ou o meio ambiente pode ser constatada em grande mural no centro da localidade intitulado de „Bulmba Maminga: Love and care for the country“.


Esse processo não é unilateral, partido da sociedade neo-australiana, mas recíproco, o que pode ser constatado no centro comunitário aborígene de Kuranda. Nele podem ser observados desenvolvimentos atuais que revelam transformações com situações do passado de algumas décadas e que justificam também mudanças quanto a pesos nos estudos culturais, a questionamentos e aproximações.


Essas mudanças ocorridas desde meados do século XX na esfera do Pacífico Sul e do Sudeste Asiático podem ser constatadas na pesquisa e em publicações, também naquelas de King-Boyes.

É significativo que em tese apresentada em época relativamente recente à Flinders University of South Australia (The gates of memory 2011, Departamento de Espanhol e Português), essa pesquisadora, que há décadas se dedica sobretudo à pesquisa da cultura aborígene e à tradicional de Timor-Leste, trata de questões teóricas de grande atualidade e que se diferenciam daquelas consideradas em trabalhos mais antigos. King-Boyes considera, entre outros, problemas de percepção geográfica e de cross-cultural studies, de percepção visual, de relações entre cognição e cultura, de difusão e inovações, de descobertas na geografia e de inovações tecnológicas nos seus aspectos sociais.

O seu profundo conhecimento da cultura aborígene resultou do fato de ter vivido por mais de dez anos numa tribo de Kimberley, dela saindo apenas a pedido dos mais velhos: ela devia retirar-se para que pudesse registrar em livro o que conhecera. Em época de rápida perda da cultura tradicional, as gerações mais novas teriam então a possibilidade de compreender a cultura aborígene na sua complexidade. Essas experiências levaram-na a publicar, em 1977, os Patterns of Aboriginal Cultural: Then and Now (Sydney : McGraw-Hill)

Hoje, é considerada um dos grandes nomes femininos nas ciências da Austrália (McCarthy, Gavan; Morgan, Helen; Smith, Ailie; van den Bosch, Alan, „Where are the Women in Australian Science?“, Australian Science and Technology Heritage Centre, 2003)

Desenvolvimentos culturais e mudanças de aproximações científicas

Em meados da década de 1970, quando da cooperação brasileira com a realização do projeto dedicado às culturas musicais na América Latina no século XIX (Veja), o seu editor, o etnomusicólogo Robert Günther (1929-2015), professor da Universidade de Colonia, já havia editado o volume sobre as culturas musicais da Ásia, África e Oceania no século XIX. (Musikkulturen Asiens, Afrikas und Ozeaniens im 19. Jahrhundert, Regensburg: Gustav Bosse Verlag 1973).

Essa publicação serviu sob muitos aspectos como ponto de partida para as reflexões relativas à América Latina, sendo discutida quanto às aproximações e visões dos seus muitos autores. Um dos pontos mais discutidos disse respeito à insuficiente consideração dos territórios e colonias portuguesas na Ásia.

Como então criticado pela musicóloga portuguesa Maria Augusta Alves Barbosa (1913-2013) (Veja), essa era uma lacuna indesculpável, capaz de distorcer desenvolvimentos históricos. O programa euro-brasileiro, partindo de uma orientação a processos, via nessa insuficiente consideração um problema de concepção historiográfica nas suas relações com a Etnomusicologia, e, assim, uma questão de relações interdisciplinares.

Sem a consideração mais aprofundada de processos culturais desencadeados já no século XVI pelos portugueses, as transformações e as novas situações e desenvolvimentos do século XIX não podiam ser adequadamente tratadas.

Essa mesma problemática teórica continuou, porém, apesar de todos os protestos das partes portuguesa e brasileira, a vigorar na publicação dedicada à América Latina no século XIX.

Entre os contextos não ou insuficientemente considerados na obra sobre as culturas musicais da Ásia encontrava-se o concernente a Timor-Leste. Esta lacuna surgia como particularmente grave, uma vez que essa antiga colonia, encontrava-se no centro das atenções internacionais pelos desenvolvimentos políticos por que passava após a saída dos portugueses e a ocupação por parte da Indonésia.

Margaret King e a música do Timor na „História da Música em Imagens“

Um preenchimento dessa lacuna deu-se com a publicação do volume dedicado ao Sudeste da Ásia na série „História da Música em Imagens“ na então República Democrática Alemã, em 1979, sob a responsabilidade de Paul Collaer (1891-1989) (Veja). (Südostasien, Musikgeschichte in Bildern I - Musikethnologie/Lieferung 3, Leipzig: 1979, VEB Deutscher Verlag für Musik). Essa publicação incluiu fotografias concernentes a instrumentos musicais de Timor-Leste, comentadas por Margaret King.

Dedicando-se desde a década de 1940 a pesquisas de tradições orais da Austrália, a autora ofereceu nesse texto resultados das observações e dos estudos que desenvolveu em Timor-Leste a partir de 1960/61. Como especialista de assuntos culturais timorenses, Margaret King tornou-se internacionalmente conhecida através do seu livro Eden to Paradise- Paradise lost (London: Hodder and Stoughton, 1963; reed. Adelaide, 1994, Australasian Research Foundation for Pacific, Oriental and Western Studies e Blackwood Press).

Problemas etno-históricos e distinção de áreas músico-culturais

De início, a autora lembra uma dificuldade fundamental que se coloca na pesquisa cultural de Timor-Leste: a da composição de sua população, uma vez que numerosas ondas de diferentes grupos etnicos chegaram à ilha no decorrer dos séculos.

Perante essas dificuldades, e partindo de suas observações, Margaret King parte de uma distinção sumária entre habitantes das montanhas e habitantes do litoral. Os da montanha, em particular da parte ocidental da ilha, viam os da costa como malai, ou seja, estrangeiros. Essa distinção já fora feita por observadores do século XIX. (Veja)

As condições geográficas teriam favorecido o isolamento de grupos através dos séculos, de modo que os clans tinham conservado suas tradições mesmo após terem assimilado cerimônias de outros grupos ou dos portugueses que dominaram a ilha por quatro séculos.

Relativamente á música, Margaret King distinguia três camadas culturais: 1) formas e estilos que são especificos para um determinado clan, tanto religiosas quanto profanas; 2) música, cantos e danças que pertencem a um outro clan, não aparentado; 3) danças em que todos participavam e que eram de origem européia, com grupos musicais formados por um acordeão, uma guitarra, um tambor e na qual a estrutura das peças evidenciava recepções da música européia do início do século XVIII, sobretudo de formas e ritmos do minueto e da allemande. Sob o aspecto tonal, evidenciava-se a influência asiática.

Os moradores da montanha conheciam muitas melodias tocadas por homens com flautas de bambu antes do nascer do sol e no crepúsculo.

A autora constatava uma diferença entre os habitantes do litoral norte e do sul. Os moradores da costa sul à margem do mar de Timor temiam o mar, não se afastando da costa, enquanto que os do norte eram navegadores corajosos, que possuiam muitos cantos relacionados com a navegação.

Utilização ampla de bambús na construção de instrumentos

Do ponto de vista organológico, Margaret King salienta a predominância de bambús na construção de instrumentos. Esses, em geral, eram executados exclusivamente por homens. As flautas da região a leste dos rios Seical e Cuac eram em geral abertas no cimo e abaixo e de diferentes tamanhos, com 4 ou 5 orifícios. Chamam-se ruruveivei.

Exceção constituia uma flauta grande, usada em determinados ritos, de difícil execução. O instrumentista não a tocava com os lábios; segurava a parte superior com ambas as mãos, colocando os polegares no rosto e assoprando em direção do bocal.  Outro instrumento era o motomumec, tocado em certas solenidades na parte leste da Ilha. Tratava-se de um instrumento de palheta do tipo da clarineta.

Também menciona o corno de búfalo - hoholo - e a trompa marinha - samachiq -, empregados em festas rituais. O quecó ou coca era feito de duas peças de bambú, possuindo um bocal do tipo de clarineta, capaz de produzir um tom fundamental e dois parciais.

Do instrumentário infantil, a pesquisadora cita o farafara, um instrumento de sôpro com uma campânula de folhas de bambú. Com êle, as crianças exercitam rítmos que ouvem dos pais quando guardam os campos da destruição das plantas por ratos e porcos. Executam-nos, juntamente com um tambor de fenda.

Constatação de mimetismo e antropomorfismo em instrumentos

Entre outros instrumentos, Margaret King menciona o uso de uma pequena flauta para sinais. Imitava o pássaro Alaforfora por este cantar antes do início das chuvas do monsum e que se relacionavam com a plantação de arroz e com a fertilidade.

Uma especial atenção é dada ao uso de tambores, registrados em diferentes formas e tamanhos. Os vários tipos de tambor de um so couro titiru era tocado por homens, em particular em ritos de fertilidade e de crescimentos, sendo segurado pelo tocador com um cinto ou com uma tira sobre as costas. As mulheres também possuiam um tambor de um só couro, o tipalu. Outro tambor era o pepuro dos Atoni e dos Belus.

O maior e mais santo seria o puhu-puho, com forma de um peito humano, usado somente na cerimonia lulic. Era cortado do tronco de uma grande palmeira, sendo configurado com pernas e com grandes pés, por vezes com umbigo e penis. Ao lado do instrumento caem braços e, nas pernas, envolve-se o tokjé. O tambor feminino era menor é apenas ornamentado.

O puhupoho desempenhava segundo a autora um papel significativo na vida dos timoreses, „falando“ só em casos que diziam respeito a todo o clan ou como musica de acompanhamento a cantos funerários.

Adaptações de instrumentos: gongos com rodas dentadas

Comentando as imagens, Margaret King já considera o uso de materiais novos na construção de instrumentos e a assimilação de novos impulsos resultantes de contatos. Isso dizia respeito sobretudo aos gongos de bronze que eram importados e comercializados por chineses. Apos a ocupação japonesa, os timorenses  tinham descoberto que rodas dentadas de veiculos podiam ser usados como idiofones ou gongos, substituindo as anteriores importações. Desse uso, surgiu a tradição de configuração de gongos com uma moldura dentada.

Sentidos do uso de instrumento de cordas por xamanes e cocares

Um especial interesse nas discussões euro-brasileiras disse respeito à menção de Margaret King de que havia, entre os timorenses, um instrumento que parecia corresponder à antiga simbologia da cítara, também estudada no Brasil. Tratava-se da cítara cilindrica queuqueu-quepere. Ela era usada por xamanes quando, em estado de trance, tratvam de um paciente. O instrumento era pendurado no seu pescoco e percutido pelos seus assistentes.

A linguagem simbólica manifestava-se sobretudo em fotografias oferecidas por Margaret King de figuras de dançarinos com máscaras de cortiça e cocar de penas referentes à festa do arroz. Também na ilha Ataúro constatava-se o uso de cocares de penas em ritos de plantação e colheita de arroz.

Entrando necessariamente na esfera religiosa, a autora menciona um canto ritual que trata de uma grande rocha de Taroman.

No tratamento de ritos de passagem, Margaret King registra a prática de uivos em cantos de casamento de Fuiloro. Entre as mulheres de Maubara, constatou cantos femininos que eram ao mesmo tempo de ninar e de lamento.

É singular que Margaret King não tenha entrado em pormenores sobre a dança Likurai e que documenta modificações da forma mais expressiva. Essa dança, que fora no passado executada por homens ao retornar da guerra, caracterizava-se pelo fato de seus participantes trazerem as cabeças dos inimigos mortos, mostrando-as às mulheres; com a supressão dessa prática, a dança mantinha-se com outro sentido, o de cortejá-las. A autora também não considera com mais atenção uma dança em roda que sempre é mencionada como bastante difundida em Timor-Leste: a Tebedai.

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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.). „Aborigenes australianos e a pesquisa músico-cultural de Timor-Leste
em pesquisas de Margaret Jessica Esmeé King Boyes (*1922) consideradas nos estudos euro-brasileiros“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 168/8(2017:4).http://revista.brasil-europa.eu/168/Australia_e_Timor.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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