Australis/Orientalis, Wallacea e Amazônia
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 168

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Queensland. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

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Titulo e coluna: Brisbane. Texto: Cairns.
Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.

 


Queensland. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright
N° 168/2 (2017:4)

Morality at Delli is at as low an ebb as in the far interior of Brazil (A.R.Wallace)

O complexo Australis/Orientalis, a Wallacea
e a Amazônia em estudos de relações Cultura/Natureza
Alfred Russell Wallace (1823-1913)
no Brasil e no Timor-Leste

Estudos euro-brasileiros em Queensland, Austrália


 
Queensland. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

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Queensland, na Austrália é uma das regiões do mundo que mais merecem atenção nos estudos de ecosistemas e de relações de processos culturais com o meio ambiente. 

Com os seus vários parques e áreas naturais protegidas, com as suas instituições culturais e ambientais, assim como pelos estudos desenvolvidos na sua universidade, Queensland foi alvo, em 2017, de visita da A.B.E. no âmbito do seu programa Cultura/Natureza. (Veja)

Com mais de 160 parques nacionais, Queensland destaca-se em plano internacional pela importância que confere à conservação de seu patrimônio natural e que é reconhecido como de significado para a Humanidade.

Queensland inclui, no seu interior, a maior área protegida da Austrália de floresta úmida subtropical, e, na sua parte norte, vastas áreas de florestas úmidas.

O Gondwana Rainforest of Australia, a maior floresta subtropical do mundo, possibilita - como o nome do antigo continente Gondwana indica - pontes com remotas situações geológicas e biológicas do globo.

O Wet Tropics of Queensland, uma área de grandes dimensões, tem o seu significado reconhecido pela UNESCO também pelo fato de oferecer possibilidades para estudos da Evolução.

Essas e outras áreas protegidas de Queensland abrem assim perspectivas para estudos que relacionam meio ambiente, história natural, da ciência e história cultural, assim como com situações e desenvolvimentos presentes.


Biogeografia e Estudos Culturais: Australis e Orientalis

A consideração do mundo natural de Queensland desperta a atenção à questão da região mais ampla designada por Australis na Biogeografia.

Esta abrange não só a Austrália, mas também a Tasmânia e Nova Guinea, a Nova Zelândia e ilhas adjacentes, assim como a Polinésia. O limite mais a norte dessa região biogeográfica é traçado pela Linha Wallace. Essa linha estabelece a divisão Australis/Orientais, a separação das regiões indomalaia e australásica. Ela determina a área da Wallacea, a área de transição entre a fauna asiática e a australiana.

Essa divisão auxilia a compreender a diversidade de paisagens que o observador encontra nessa esfera do globo e, assim, as condições naturais que co-determinam a vida e processos culturais. Reciprocamente, auxilia a compreender a ação do homem na transformação - em geral degradação - do patrimônio natural. Nos estudos levados a efeito em 2017, o foco residiu nas ilhas de Sonda, que se inscrevem tanto na zona biogeográfica Orientalis como na Australis, assim como na área intermediária entre as duas zonas.

A Orientalis é uma das regiões de fauna maiores do mundo, abrangendo uma área que vai do sul do Himalaia ao sudeste asiático . Uma outra linha (Lydekk) dá a mais longa expansão da fauna asiatica em direção à Australásia.

A Orientalis apresenta diferentes zonas de vegetação, incluindo bosques sêcos, savanas e cerrados da India e florestas tropicais de montanhas e de várzeas, como no sudeste asiático. As zonas inundáveis do norte da India apresentam áreas úmidas de grama e florestas. No Sri Lanka e Java, encontram-se tanto florestas como savanas. Assim como as Filipinas, as ilhas da Grande Sonda há florestas úmidas; Sulawesi e as Molucas possuem florestas tropicais.

Na maior parte das muitas ilhas da Pequena Sonda, encontram-se formações florestais apenas nas elevações mais altas, com áreas significantes cobertas com savana, incluindo bosques de eucaliptos. Em algumas áreas baixas, como a oeste de Sulawesi, há solo infértil, pobres de nutrientes e com vegetação rasteira.

A área de transição designada por Wallacea, entre a Linha Wallace e a Linha Lydekk, perfaz ca. de 347.000 km2. Sob o aspecto da fauna, a Wallacea representa uma região insular intermediária indoaustraliana. O seu traçado varia em parte segundo os autores: ou tem um limite a leste das Filipinas - a Linha Wallace - ou a oeste, a Linha Huxley.

A Wallacea inclui ilhas que se situam entre Sonda - com o arquipélago malaio, Java, Bali, Borneo, Sumatra - e a Oceania com Austrália e Nova Guinea. Entre as ilhas da Wallacea contam-se a grande ilha de Sulawsi e as Molucas, Lombok, Sumbawa, Flores, Sumba, Halmahera, Seram, Buro e muitas outras menores, salientando-se, pelo seu interesse para os estudos luso-euro-brasileiros, o fato de nela inscrever-se Timor-Leste.

Dentro da área da Wallacea corre a Linha Weber, que demarca as áreas de predominância australiana ou asiática, indicando ao mesmo tempo uma esfera de interações em relativo equilíbrio entre as duas. Ela indica o alcance da fauna australiana no arquipélago malaio. Nas ilhas de Sonda, a linha Weber passa a sul entre Bali e Lombok, e, ao norte, entre Borneo e Sulawesi.

Atualidade da consideração da Wallacea em relações com a Amazônia

A atualidade de considerar-se a Wallacea nas suas relações com o Brasil decorre do fato dela constituir um dos hotspots, regiões-chaves da terra relativamente à Biodiversidade e nas quais a vida animal e vegetal encontra-se ameaçada.

A consideração da linha Wallace e da Wallacea surge como relevante nos estudos que dirigem a atenção a regiões do sudeste asiático marcadas pelos portugueses no passado colonial e, com isso, de significado também para estudos de processos nos quais o Brasil se inscreve.

O contraste entre a natureza luxuriante de regiões como a de Malaca e aquela menos opulenta de Timor-Leste não pode deixar de ser  considerado tanto para a compreensão de fontes históricas e na análise de processos no passado e no presente, trazendo à tona também questões teóricas e de interpretação.

Na literatura encontram-se referências discretas relativamente à natureza de Timor-Leste, apesar das belezas naturais de suas praias, salientando-se traços de empobrecimento da cobertura vegetal dessa antiga ilha do sândalo pela ação do homem. Essas menções revelam também desapontamentos de viajantes relativamente a falsas expectativas e imagens.

O contraste entre regiões marcadas por vegetação luxuriante como Malaca e Timor-Leste traz à mente a necessidade de uma maior diferenciação de imagens derivadas da idéia tropicalista do „mundo que o português criou“ (Gilberto Freyre, 1900-1987).

Alfred Russell Wallace - Brasi e Arquipélago Malaio

A linha Wallace e a Wallaceia trazem o nome de um dos maiores vultos da História das Ciências do século XIX: o naturalista inglês Alfred Russell Wallace. Não há vulto da história das ciências que mais una o Brasil ao Arquipélago Malaio - e nele com Timor-Leste - do que Wallace.

Wallace foi objeto de estudos euro-brasileiros em diversas ocasiões nas últimas décadas. (Veja) Em particular o seu significado para a teoria da Evolução, assim como as diferenças de suas concepções relativamente àquelas de Charles Darwin (1809-1882) foram consideradas e discutidas. Em ambos - Darwin e Wallace - desempenhou o Brasil um papel relevante. Se no caso de Darwin estuda-se sobretudo contextos que relacionam o Brasil e a Austrália, no caso de Wallace são aqueles com o arquipélago malaio que mais merecem ser considerados. (Veja) Foi nas Molucas que Wallace chegou, em 1858, a noções que correspondiam àquelas de Darwin.

Após ter alcançado renome internacional com os relatos de suas viagens na Amazônia (A Narrative of Travels on the Amazon and Rio Negro, 1853), à qual veio com Henry W. Bates (1825-1892), em 1848, Wallace dirigiu-se ao arquipélago malaio, publicando em 1869 livro a respeito, fundamental para o conhecimento da região e para o desenvolvimento da ciência.


Significativamente, Wallace, no frontispício da publicação, é apresentado como autor de livros sobre o Brasil. (The Malay Archipelago: the Land of the Orang-Utan, and the Bird of Paradise, New York: Harper & Borther 1869)


Wallace no Timor português - coletas e observações da vida e mentalidade

Assim como no seu relato de viagens no Brasil, os registros de Wallace não são apenas de importância para estudos científico-naturais, botânicos e biológicos, mas sim também para aqueles históricos-culturais que tratam de localidades e da vida quotidiana no século XIX.


Neste sentido, as suas observações no Timor português adquirem interesse como registro da situação da colônia, da população e de sua cultura de meados daquele século.


As impressões fixadas por Wallace oferecem um quadro negativo do estado de Timor português, em particular também de sua capital, Dili.


Vindo da esfera sob a administração holandesa, o naturalista estabeleceu comparações que apresentam o território português em luz desfavorável. O seu texto deixa transparecer o seu desapontamento, tanto relativamente às coletas científico-naturais como à qualidade de vida dos timorenses e à situação e desenvolvimento regional.


Como também anteriormente no Brasil, foram europeus, em particular inglêses residentes no país que o receberam e abriram-lhe caminhos para as suas pesquisas. Chegando em Dili no dia 12 e janeiro de 1861, foi recebido por um capitão inglês que ali atuava como negociante e plantador de café. Este o apresentou a um engenheiro de minas que tinha a incumbência de encontrar cobre e outras riquezas minerais.


Com isso, Wallace tomou contato com um empreendimento e com projetos que causaram frustrações e desapontamentos.  Apesar das expectativas portuguesas e das grandes somas empregadas, em parte arcadas por portugueses de Singapura, nada foi encontrado que valesse uma comercialização. Esse não-descobrimento de cobre ou outros metais rendosos pelo especialista foi visto como inverossímel pelos portugueses que partiam da convicção das potencialidades econômicas da ilha.


Wallace confrontou-se em Timor com uma situação que já conhecia do Brasil: projetos grandiosos, mirabolantes, fantasiosos, expectativas por demais otimistas sem fundamentação na realidade.


Dili na descrição de Wallace - diferença relativamente a colonias holandesas


A descrição que Wallace oferece de Dili é a de uma localidade das mais miseráveis que tinha conhecido, pior do que a mais paupérrima das cidades das Índias holandesas.


As suas observações surgem hoje como de interesse não só para uma história da de cidades do mundo marcado pelos portugueses, mas sim também para considerações de conceitos de cultura e civilização do próprio Wallace.


Como inglês, marcado por concepções e modos de vida britânicos, não deixou de manifestar - como já o tinha feito no Brasil - o desagrado que teve em Dili ao encontrar uma localidade e uma sociedade que para êle revelavam falta de sensibilidade estética, de ordem e de civilização.


Como registrou, as casas da capital do Timor português eram das mais rudimentares, de barro e de cobertura vegetal, o próprio forte era apenas um cerco também com paredes de barro, assim como a alfândega e a igreja, tudo demonstrando falta de ordem, cuidado ou intenções decorativas. O aspecto geral da localidade era o de uma pobre aldeia nativa, sem qualquer sinal de cultivo ou de civilização.

„Delly is a most miserable place, compared with even the poorest of the Dutch towns. The houses are all of mud and thach, the fort is only a mud inclosure, and the custom-house and church are built of the same mean materials, with no attempt at decoration or even neatness. The whole aspect of the place is that of a poor native town, and there is no sign of cultivation or civilization round about it.“ (op.cit. 197)

Contrastes: pobreza material e vaidade de homens pernósticos

Essa constatação de Wallace de ausência de cultura européia em Timor português é relativada apenas pelo fato de registrar uma atenção especial dada a uniformes por oficiais que ali atuavam. Mesmo aqui, porém, as suas palavras manifestam um desaprovamento: o brilho espalhafatoso dos uniformes não correspondiam ao tamanho e à aparência da cidade.

Com essa observação, Wallace sugere - como naquelas que havia feito semelhantemente no Brasil - antes fraquezas humanas, tais como vaidade, vontade de aparecer ou de representação teatral de autoridade e importância, fornecendo uma imagem pouco lisongeira dos representantes da administração portuguesa.

„Yet there is one thing in which European costume, and officers in gorgeous uniforms, abound in a degree quite disproportionate to the size or appearance of the place.“ (loc.cit.)

Constatação de paisagem similar à da Austrália em Timor-Leste

Afastando-se da localidade a Balibar, uma região mais montanhosa e com maior vegetação para fins de coletas, Wallace observa que a região, com os seus eucalíptos, parecia mais ser do interior da Austrália do que pertencente ao arquipélago malaios.

Apesar desse contraste com o mundo vegetal e animal , expressa a sua admiração pelo fato dos moradores de mais posses de Dili não valorizassem mais as redondezas, mais salubres do que as regiões baixas, estas sujeitas à febre amarela. Repetiu, aqui, as observações que tinha feito na Amazônia, quando lamentou que os brasileiros não saberiam usufruir e valorizar o meio ambiente privilegiao em que viviam.

Do ponto de vista etnológico, Wallace constata uma diferença entre os habitantes de montanhas e aqueles da costa, uma distinção que ainda no século XX tem marcado os estudos culturais relativos a Timor. (Veja) Os montanheses mostravam um tipo humano Papua, diferenciando-se de outras raças de origem malaia (op.cit. 203); os litorâneos apresentavam uma mistura étnica de malaios, indianos e portugueses. Tratava-se de uma sociedade onde também os mestiços representavam a principal parcela cristã da população. Nessa diversidade populacional, Wallace constatou o significado de uma expressão cultural que lhe lembrou a Polinésia: o pomali, correspondente ao taboo polinésio e observado com a mesma severidade como este. (Veja)

Paralelos nas observações de Wallace na Amazônia e em Timor

Que o negativo quadro que Wallace oferece de Dili pode ser entendido à luz dos pressupostos culturais do próprio observador isso indica a similaridade de suas impressões no Timor com aquela que tinha obtido ao chegar em Belém.

„A impressão geral que a cidade esperta em alguém recém-chegado da Europa não é lá das mais favoráveis. Denota-se uma tal ausência de asseio e ordem, iuma tal aparência de relaxamento e decadência, tais evidências de apatia e indolência, que chegam a produzir um impacto verdadeiramente chocante.“ (Viagens pelos rios Amazonas e Negro, trad. E. Amado, Belo Horizonte/S.Paulo: Itatiaia/Universidade de S.Paulo, 1979, 20)

Também na Barra do Rio Negro - Manaus - Wallace tinha feito uma observação semelhante àquele que fêz no Timor português relativamente à vaidade ridícula de pernósticos representantes de classes dirigentes.

„A cidade etava agora repleta de almofadinhas e janotas, que eram pagos com dinheiro do povo por trabalhos e serviços que não sabiam realizar. Muitos deles eram mesmo incapazes de escrever uma dúzia de palavras, para preencher um formulário impresso, sem cometer erros ou fazer borrões na folha. Para realizarem tal façanha, gastavam pelo menos duas ou três horas... Suas aspirações pareciam não ir muito além da ostentação de botionas envernizadas e relógios com correntes de ouro.“ (Viagem pelos rios Amazonas e Negro, op.cit. 232)

Observações negativas de cunho moral em Timor e no Rio Negro

As observações de Wallace relativas a Timor culminam com a menção do baixo nível moral da população, que, segundo êle, estaria em nível tão baixo como no mais afastado interior do Brasil. Todos lutavam continuamente entre si, ludibriando-se e aproveitavam todas as oportunidades para fazer escravos.

„Morality at Delli is at as low ebb as in the far interior of Brazil“(The Malay Archipelago..., op.cit. 206)

No seu relato de viagem pelo Amazonas e Rio Negro, Wallace tinha criticado sobretudo a inveracidade dos brasileiros.

„Ele pediu-me que levasse umas cartas para São Gabriel, mas com a seguinte condição: ao entregá-las aos remetentes, eu deveria dizer que não estivera com ele pessoalmente (...). Entretanto, em virtude de nossa grande intimidade, não fiz rodeios e disse-lhe que infelizmente não me seria possível prestar-lhe tal favor. Eu não tinha o costume de mentir, se tentasse fazê-lo, seria logo desmascarado. Ele então quis instruir-me a respeito, dizendo que eu deveria tentar mentir, que logo aprenderia. Dentro de pouco tempo - ele incentivava - eu já estaria tão bom nisso quanto os melhores mentirosos que ele conhecia. Fui-lhe franco e direto então, dizendo-lhe que em meu país um mentiroso era colocado na mesma categoria de um vil ladrão. Aquelas palavras pareceram deixá-lo estarrecido. (...)Vi com isso que as pessoas daqui são perfeitamente conscientes da imoralidade que essa prática representa, mas que o constante hábito e o generalizado costume de mentir, e sobretudo a falsa polidez que faz com que ninguém saiba dizer não a um favor solicitado, tornaram a mentira quase que um mal necessário. (...)“ (op.cit. 208)

Para além da inveracidade, Wallace constatara no Brasil uma tendência a trapaças em negócios e transações, o que explica como consequência da tendência comercial dos portugueses e uma falsidade e hipocrisia no trato social que seria decorrente de hábitos portugueses de polidez e refinamento.

„No que concerne aos negócios, lisura e franqueza são coisas muito raramente vistas por aqui. Costuma-se mentir mesmo quando isso não traga qualquer proveito, ou quando se saiba que o interlocutor está inteiramente ciente da falsidade daquelas palavras. Ocorre, porém, que os hábitos portugueses de polidez e refinamento não permitem que uma pessoa demonstre nem mesmo com o olhar qualquer dúvida sobre a veraciade das palavras de um amigo... Muitas vezes fiquei observado divertidamente duas pessoas dialogando e esforçando-se para passar a perna uma na outra, cada uma fingindo acreditar piamente nas descaradas mentiras que a outra lhe pregava, e ambas com as caras mais inocentes...“ (op.cit. 234-235)

Razões das deficiências de caráter e da cultura no Brasil e em Timor

No que concerne ao desleixo, ao relaxamento, à falta de asseio, de esmero, de bom gosto, de indolência e apatia que Wallace observou no Brasil, a sua explicação residia segundo êle nas condições naturais. Assim, seriam compreensíveis. As características que determinavam negativamente as primeiras impressões de europeus que chegavam em cidades brasileiras seriam decorrentes do clima. Assim explicava-se que nascessem plantas e até mesmo árvores nas fachadas de casas e que o mato invadisse quintais e jardins. Mesmo a falta de decoração interna das casas, os amplos e altos cômodos, não aconchegantes e de escasso mobiliário seriam adequados ao clima. Espaços repletos de móveis, tapetes e quartos, confortáveis na Europa, seriam insuportáveis sob as condições tropicais em cidades como Belém. (op.cit.20)

No decorrer de sua viagem, porém, Wallace sentiu-se obrigado de fazer observações mais detalhadas acerca do caráter e dos costumes brasileiros, mais especialmente daqueles do Pará. Procurando analisar as razões pelas quais os habitantes do Brasil não tiravam proveito das possibilidades oferecidas pela terra, Wallace não colocou a culpa nas condições naturais, mas sim viu as causas dessa deficiência na mentalidade portuguesa. As suas explicações representam ao mesmo tempo uma análise da decadência de Portugal, país que tinha sido líder na economia mundial de séculos passados.

O Brasil seria uma terra maravilhosa, capaz de proporcionar grandes rendimentos aos trabalhos agrícolas, eram porém, pouco cultivada. O solo poderia produzir uma incrível variedade de produções. Nenhuma outra terra possuia tão grandes facilidades de comunicação interna, mas era difícil e desagradável viajar por ela. Nenhum apresentaria todos os requisitos para um intenso e diversificado comércio com todo o mundo; este, todavia, era limitado e insignificante.

Isso surpreenderia, sobretudo pelo fato de que os moradores eram portugueses e seus descendentes. Eram, assim, filhos da nação que há séculos atrás iniciara e lideraraos grandes descobrimentos e mais arrojados empreendimentos comerciais.

Essa característica portuguesa ainda não tinha desaparecido no Brasil. Os portugueses e seus descendentes mostravam ainda a mesma perseverança e estóica resistência a provações, assim como o mesmo espírito aventureiro.

O problema, porém, é que possuiam uma aversão inata a todo tipo de trabalho mecânico e agrícola, o que explicaria o fato de terem sido reduzidos a uma posição secundária no panorama mundial.

Quando suas colonias floresciam, boa parte da população ocupou-se com o comércio, participando da distribuição de riquezas. Quando, porém, essa corrente comercial deslocou-se para outros rumos em virtude da pertinaz energia dos povos saxônicos, a população portuguesa emigrou em grande número para o Brasil, na esperança e aí fazer fortuna segundo as suas propensões naturais.

Assim,o Pará achava-se superlotado de comerciantes, que eram, na verdade, pequenos mercadores, antes mascates. A aversão à agricultura, ou antes, a paixão pelo comércio não permitia aos portugueses estabelecer-se, nem incitava-os a produzir bens primários . Como também os indíos apenas produziam para as suas necessidades básicas, daí resultaria a deficiência geral em bens. (op.cit. 232/233)

Wallace concluiu, assim, que os problemas que observou no Brasil eram decorrentes não tanto das condições naturais - que seriam excelentes -, mas sim da tendência portuguesa ao comércio em detrimento à cultura da terra. Teria havido assim uma desfavorável sinergia entre a excessiva natureza comercial intermediadora de portugueses e a economia de subsistência de indígenas de todas as regiões em detrimento do cultivo da terra, ou seja, da cultura em geral.

Essas conclusões de Wallace tomadas no Brasil ressoaram nas suas observações no Timor português.

O contraste que observou entre a colonia holandesa das Índias Orientais e o território português revela que o naturalista inglês viu diferenças entre dois povos dedicados ao comércio. O estado paupérrimo e não-cultivado de Timor contrastando com aquele florescente de colonias dos Países Baixos indicava que estes não desleixavam atividades produtivas, não apenas negociando, mas criando bens para serem negociados. O principal empreendimento no Timor português à sua época, o da procura de cobre e outros minérios, era de cunho de exploração de recusos da terra e fantasioso, voltados ao enriquecimento rápido, sem fundamentos na realidade. Os dirigentes não queriam ser desiludidos, preferindo não ouvir as explicações competentes de especialistas.

Concepções culturais de Wallace e o paisagismo inglês

Os relatos de Wallace, tanto aqueles relativos ao Brasil como ao arquipélago malaio, revelam o seu próprio condicionamento cultural, em particular o interesse inglês pela botânica, pela jardinagem, por parques, pela configuração paisagística da terra em geral. Êle tinha ganho fascínio pelas regiões tropicais através de narrativas de viajantes e em visita aos jardins botânicos ingleses, como revela citando as estufas de Kew e de Chatsworth.

O próprio Wallace critica aqueles viajantes que, descrevendo apenas o belo, o pitoresco e o magnífico dos trópicos, criariam nos europeus imagens que não correspondiam à realidade. Também êle teve, ao chegar em Belém, decepção por não encontrar o esplendor que esperava. Mesmo em plena floresta, a sua admiração ficara aquém daquela que esperava. (op.cit. 20)

„As esplêndidas orquídeas, tão apreciadas na Europa, seriam abundantes nas luxuriantes florestas tropicas - é o que pensávamos. Contudo, aqui só vimos algumas poucas espécies, cujas flores, baças, tinham coloração amarelada ou pardacenta“. (op.cit. 21)

No Rio Negro, teve a vontade de reunir um grupo de amigos entusiasmados e diligentes para, juntos, mostrar à gente do país como era possível criar ali um verdadeiro paraíso terrestre a curto prazo. Por isso, pensava nas possibilidades de uma colonização, afirmando, sem hesitações, que algumas famílias, com homens trabalhadores e dedicados, poderiam alcançar grande sucesso em pouco tempo.

„E então, depois de providenciar a satisfação as necessidades do corpo, que belíssimos jardins e que umbrosas alamedas não se podem fazer! Como será fácil construir um viveiro de orquídeas à sombra das gigantescas árvores da floresta, colhendo os mais belos exemplares da planta ali mesmo nos arredores da casa! Os caminhos da propriedade poderão ser embelezados, transformando-se em aprazíveis avenidas orladas de palmeiras. O mesmo pode ser feito nos muros e nas paredes da casa, revestindo-os com as abundantes parasitas e trepadeiras da floresta, com as quais também se poderão formar lindos e agradáveis caramanchões!

De fato, desconhece-se em toda a Amazônia tudo quanto se refira à jardinagem ou ao paisagismo. Não há por aqui aléias, alamedas ou jardins. Posso imaginar, contudo, o que se poderia conseguir neste particular às custas das belíssimas variedades de plantas (...).

Inglaterra!
Pertence a ti meu coração,
Terra natal que tanto adoro!“

(op.cit. 209/210)



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.) „ O complexo Australis/Orientalis, a Wallaceae a Amazônia em estudos de relações Cultura/Natureza: Alfred Russell Wallace (1823-1913) no Brasil e no Timor-Leste“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 168/2 (2017:4).http://revista.brasil-europa.eu/168/Australis_Orientalis.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

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