Bali na Etnomusicologia no Brasil e a Suíça
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 168

Correspondência Euro-Brasileira

 

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Bali. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

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Bali. Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.

 


N° 168/5 (2017:4)



Bali na Etnomusicologia no Brasil e a Suíça
sob o signo da interdisciplinaridade e da ultrapassagem de fronteiras
De Ernst Schlager (1900-1964) ao Museu das Culturas e à „Música do Mundo“ na Basiléia


 
Na visita a Bali no âmbito dos estudos euro-brasileiros do corrente ano, lembrou-se do papel significativo que a música balinesa desempenhou no Brasil à época da institucionalização da Etnomusicologia em cursos superiores em São Paulo nos anos de 1960 e 1970, assim como no desenvolvimento posterior dos estudos culturais referenciados pelo Brasil na Europa.

Essa atenção a Bali apesar da distância geográfica e de elos histórico-culturais que separam essa ilha do Brasil pode parecer estranha e incompreensível à primeira vista.

Significado die Bali para a Musicologia Comparada e a Etnomusicologia

Essa atenção se explica em primeiro lugar pela importância fundamental da cultura musical dessa esfera insular do globo - em particular de Java - na Musicologia Comparada/Etnomusicologia, que tornava imprescindível a sua consideração à época da introdução da área em cursos superiores de música e de Licenciatura.

Questões teóricas, conceituais, métodos e problemas interpretativos da Etnomusicologia são estreitamente relacionados com a atividade científica de pesquisadores de renome internacional que se dedicaram a essa esfera do globo, entre os quais sobretudo o etnomusicólogo neerlandês Jaap Kunst (1891-1960).

Conhecimentos relativos a esse universo musical tinham sido até então obtidos no Brsil sobretudo através de textos em francês, como demonstra o extenso artigo „Índias Neerlandesas Musicais“ no léxico de Fr. Pedro Sinzig O.F.M. (1876-1952), publicado pela primeira vez em 1945 e baseado sobretudo em entrada na Enciclopédia Lavignac. O texto de P. Sinzig precede imediatamente àquele dedicado aos índios brasileiros (Pelo Mundo do Som: Dicionário Musical,2a. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Kosmos, 1959, 307-310).

Centros de estudos especializados na Europa - Suíça/Brasil

Em segundo lugar, o papel particularmente relevante desempenhado pela música de Bali no Brasil explica-se por relações com a pesquisa respectiva na Suíça, em particular com a de Basel/Basiléia.

Desde a segunda metade da década de 1960 definiram-se assim dois países europeus como principais centros referenciais nos estudos culturais brasileiros relacionados com a Indonésia e que se mantiveram nas décadas seguintes: os Países Baixos como antigo poder colonial, sede de importantes instituições, em particular do „Centro de Estudos Jaap Kunst“ e a Suíça através sobretudo das atividades do Museu de Etnologia da Basiléia.

Essas referenciações européias contribuiram a que mais uma vez se constatasse o interrelacionamento entre os estudos culturais e aqueles da própria pesquisa, o que marcou até o presente a orientação dos estudos culturais conduzidos no âmbito da A.B.E..

A pesquisa suíça despertou na época particular atenção, uma vez que sem relações histórico-coloniais que a explicassem como no caso dos Países Baixos, trazia à discussão dimensões interdisciplinares dos estudos, tanto relativamente à música com as outras artes, como entre a pesquisa etnológica e a científico-natural.

Momento decisivo no reconhecimento desse significado deu-se no contexto de diálogos com o compositor e intelectual suiço Ernst Widmer (1927-1990) em Curitiba, em 1967.

Essa troca-de-idéias com esse compositor e intelectual suiço radicado na Bahia decorreu sob o signo dos preparativos para a institucionalização como sociedade de movimento de renovação dos estudos culturais a partir de uma orientação da atenção a processos e que levaria, no ano seguinte, à fundação da sociedade Nova Difusão.

Singular relações interdisciplinares: Química e Estudos Culturais

O termo difusão relacionado com a cultura representava uma preocupação tanto para Ernst Widmer como para o movimento renovador iniciado em São Paulo.

Diferenciando-se das posições de Widmer, este movimento compreendia o termo em analogia ao fênomeno químico da osmose, o que tornou-se foco principal das reflexões. No seu emprêgo em sentido extenso nos estudos culturais, e diferenciando-se daquele do Difusionismo, reconhecia-se a sua utilidade por sugerir transpassagens e processualidades.

Nesses diálogos, lembrou-se que dois dos principais representantes dos estudos etnomusicológicos da Suíça tinham sido químicos e trabalhado em empresas químicas também presentes no Brasil: Felix Speiser (1880-1949) (Veja) e Ernst Schlager da companhia farmacêutica CIBA-Geigy, importante colaborador do Museu da Basileia.

Arte da Ásia e do Pacífico e Modernismo - de Paul Gauguin (1848-1903) a Bali

O motivo que levara Ernst Schlager a interessar-se pela música de Bali trazia ainda à mente outros aspectos interdisciplinares, a da música com outras expressões artísticas e com razões pessoais e de sintonia emocional e afetiva com pessoas da cultura estudada.

A sua primeira ida a Bali fora impulsionada por Theo Meier (1908-1982), um artista suíço formado na Alemanha que ali viveu de 1934 a 1955. Tendo mantido relações com artistas balineses e europeus, o interesse de Theo Meier não se restringia à tradição, mas, correspondendo a anelos em muitos outros países do globo - inclusive no Brasil - dirigia-se a um Modernismo balinês.

Interrelacionando a mística da cultura balinesa com a estética, deixando perceber impulsos do pensamento de artistas europeus entusiasmados pelo mundo da Ásia e do Pacífico - como Paul Gauguin - dedicou-se a cenas do quotidiano.

Muitas obras de artistas locais foram coletadas com o auxílio de Schlager e trazidas para o Museu Etnográfico da Basiléia. A pesquisa musical de Bali insere-se assim em linha progressista do pensamento e foi nessa linha que deu-se também a sua recepção na introdução da área da Etnomusicologia no Brasil.

Texto básico: „Música de Bali“ de E. Schlager em português

Ernst Schlager foi mais conhecido no Brasil através de texto publicado em português da Enciclopédia Pleiade („Musica de Bali“, A Música das origens à actualidade, dir. Rolland-Manuel, ed. port. Fernando Lopes Graça 1, Barcelos: Arcádia 1965). A partir desse texto, a música de Bali passou a constituir importante foco de atenção no início dos trabalhos do Centro de Pesquisas em Musicologia, fundado em São Paulo no contexto dessa sociedade voltada a processos culturais em 1968.

Se os impulsos de Alain Danièlou (1907-1994)  (Veja) foram de fundamental significado nos estudos voltados à Índia, os de Ernst Schlager traziam novos aportes e aproximações focalizando a música de Bali.

Sendo acessível devido à tradução em português, o texto publicado na Enciclopédia Pleiade tornou-se básico no curso de Etnomusicologia na Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo em 1972.

Esse texto de E. Schlager não foi considerado apenas como fonte de informações e introducão à a música de Bali, mas sim também como fonte de impulsos para reflexões de interesse para o Brasil a partir de comentários e interpretações do autor com base na sua grande experiência local.

Questões gerais como impulsionadoras de reflexões no Brasil

Impressão causou já de início a sua colocação segundo a qual a cultura musical de Bali seria tão rica que os balineses não teriam preocupações em conservá-la. O seu desenvolvimento dera-se tão gradualmente que os mais jovens nem percebiam as transformações. Apenas os mais velhos contavam que, no passado, se tocava diferentemente. Não havia teoria musical escrita e seria difícil obter informações teóricas de músicos, pois o balinês não aprendia música teoricamente, mas a partir da prática, participando nos ensaios com os adultos. Assim se explicaria que nem se dava conta que havia um sistema teórico como base da prática.

Essa constatação foi aplicada no seu sentido mais amplo ao Brasil, país também possuidor de cultura musical ampla e diversificada, assim como expressões culturais estreitamente relacionadas com a música, mas que nem sempre parecia ser praticada conscientemente pelos seus protagonistas, que não supunham haver um sistema cultural por detrás das muitas expressões culturais cultivadas tradicionalmente.

A consideração do edifício de concepções religiosas como pressuposto

Outra constatação de E. Schlager foi a de que, em Bali, a única força conservadora seria a religião, e seria graças a ela que existia uma música ritual de origem antiga juntamente com a música clássica e moderna.

Essa observação também foi comentada da perspectiva brasileira: as expressões tradicionais nas quais a música fazia parte integrante era vinculada a festividades religiosas, ainda que lúdicas, sendo traspassadas de concepções relacionadas com o ciclo do ano religioso sem que, em geral, se tivesse consciência dos sentidos inerentes a ciclo do ano eclesiástico nas suas relações com o ano natural, em particular também por que no Brasil havia uma discordância entre ambos devido á transplantação do ano europeu a outras condições naturais do hemisfério sul.

Bali e sistemas escalares na Composição e Estruturação no Brasil

Particular atenção mereceram as considerações de Schlager a respeito da música heptatônica ritual balinesa numa época em que, no Brasil, o estudo de formações escalares e modos desempenhava fundamental papel em cursos de Composição e Estruturação Musical.

Após informar que os balineses não falavam de sons graves ou agudos, mas de grandes ou pequenos, e que não haveria escala balinesa padrão, Schlager salienta a estreita relação entre a construção escalar e as letras do texto.

Ainda que a mesma música ouvida em várias aldeias poderia parecer ser executada em diferentes moos, a execução era a mesma. A aptidão do tocar era mais importante do que a realização sonora.

Solmização balinesa e impulsos ao estudo da Prosódia Musical no Brasil

A solmização balinesa - ding dong dang deng dung dang dong - pareciam inexplicáveis, puderam porém ser elucidadas reconhecendo-se que a vogal da sílaba dos textos davam o som correspondente da melodia.

O autor lembra que recurso similar foi utilizado na Idade Media, citando a composição de Josquin Hercules dux Ferrariae, da qual resultam as notas ré, do ré do ré lá mi ré. Assim, concluir-se-ia que o sistema balinês era de origem vocal e as denominações dos sons refletiriam onomatopéias.

Apesar das diferenças e variantes, podia-se concluir que a concordância entre o texto e a música era obrigatória na última sílaba de cada linha. A existência de uma escala heptatônica não significava que a música balinesa também o fosse. Assim, a concepção musical balinesa seria - como a javanesa - pentatônica.

Nas aulas, discutiu-se se também podia haver exemplos semelhantes na prática de solfejo no Brasil e na composição de melodias a partir de vogais de textos postos em música. Alguns exemplos foram discutidos e criaram-se melodias sobre textos escolhidos como possibilidade de sua aplicação no ensino musical por parte de professoras de escolas primárias e secundárias que frequentavam cursos de Licenciatura em Educação Musical.

A Basiléia na Etnomusicologia dos anos 70 e 80: Hans Oesch (1926-1992)

Em tempos mais recentes, muita atenção tem sido despertada relativamente a um manuscrito de Schlager a ser editada pelo etnomusicólogo Hans Oesch. Foi inspirado por Alfred Bühler (1900-1981), o primeiro professor de Etnologia da Universidade da Basiléia.

Hans Oesch viajou a Bali em 1968, trabalhando com Theo Meier e dando início a um projeto em Bali e Lombok entre 1972 e 1974 financiado pelo fundo nacional suiço de fomento da pesquisa científica e que contou com a participação do etnomusicólogo Urs Ramseyer do Museu de Etnografia e o musicólogo Tilman Seebass do Instituto de Musicologia, além de outros pesquisadores.

Hans Oesch conseguiu além do mais subsídios para a realização de um projeto de viagem a Bali para coletar mais material, tendo como principal objeto de estudos a música heptatônica no seu contexto cultural.

No Instituto de Musicologia, Oesch deu início a uma série de nome Forum Ethnomusicologium I: Basler Studien zur Ethnomusikologie.

Em 1976, H. Oesch publicou texto sobre a música ritual heptatônica em Bali de Ernst Schlager. (Rituelle Siebenton-Musik auf Bali / Ernst Schlager ; hrsg. von H. Oesch ; mit einem Vorwort und einem Beitrag von Alfred Bühler über "Kultur, Weltbild und Kunst der Balier", 197, Berna: Francke Verlag. [Forum Ethnomusicologicum, Series I: Basler Studien zur Ethnomusikologie, 1].

A época sob a direção de Hans Oesch foi o ponto alto do interesse etnomusicológico na Basiléia.

Em 1983, o Museum für Völkerkunde publicou Bali: Insel der Götter. Mit einem Beitrag von Ernst Schlager (1900-1964) como catálogo de exposição onde são tratados mais de 100 objetos. Essa exposição foi visitada no âmbito dos trabalhos da seção de Etnomusicologia, sob direção brasileira, do Institut für hymnologische und musikethnologische Studien de Colonia/Maria Laach, instituição que contava com a participação de musicólogo suíço.

Museu das Culturas e Música do Mundo na Basiléia

No desenvolvimento das reflexões teóricas relativas ao estudo de processos culturais no âmbito do programa euro-brasileiro, a atenção foi dirigida nas últimas décadas sobretudo ao etnólogo e pianista de Jazz Urs Ramseyer, cujo nome se vincula ao Museu das Culturas da Basiléia (Museum der Kulturen), assim como ao Festival „Musik der Welt in Basel“.

Como conservador de museu, critica uma política que se volta exclusivamente à rentabilidade no tratamento da cultura, o que fomenta tendências superficiais. Desde o início do seu trabalho no Museum für Völkerkunde da Basiléia, Ramseyer foi marcado pela convicção do significado da música para a percepção da „alma“ de outros povos e assim para a compreensão de culturas extra-européias.

Neste sentido, na primeira metade da década de 1970 iniciou-se a série „Música no Museu“. Também o ímpeto de ultrapassagem de fronteiras foi que o levou a “Cultura e Arte Popular em Bali“ (Kultur und Volkskunst in Bali, Zurique: Atlantis Verlag, 1977)

Em 1985, as suas atividades a favor da identidade cultural de Bali foi reconhecida através de um prêmio cultural de Bali e pela UNESCO. Essas atividades foram reconhecidas no seu significado recíproco, pois Bali leva à Basileia conhecimentos de uma outra cultura e sua sabedoria, contribuindo a uma auto-reflexão.

Em 2002, publicou o livro „Arte e Cultura em Bali como um trabalho científico sobre os fundamentos tradicionais da arte e da cultura balinesa“ (Urs Ramseyer, Kunst und Kultur in Bali: Eine wissenschaftliche Arbeit über die traditionellen Grundlagen der balinesischen Kunst und Kultur. Basileia: Schwabe 2002).

O anelo de ultrapassagem de fronteiras no Brasil e na Suíça

Como no desenvolvimento paralelo no Brasil, o da Basiléia foi marcado pela idéia de ultrapassagem de fronteiras, geográficas, culturais ou intelectuais. Ao mesmo tempo, assim como no desenvolvimento paralelo no Brasil, essa ultrapassagem disse respeito também ao modo de apresentação da música, superando-se fronteiras entre espaços e instituições.

Nessa abertura de instituições inscreveu-se o Museum der Kulturen, que procura, nas suas atividades, interações com pessoas fora do recinto do museu. Esses intuitos incluem interações entre a tradição e a criação artística contemporânea. A visão daqueles que se dedicam á Etnologia modifica-se com o convívio com artistas inovativos. A focalização deixa de dirigir-se apenas ao estático, ao supostamente imutável, para abrir-se às transformações, ao diálogo entre as tradições e as expressões contemporâneas.

Esse intento, porém, não é novo, pois já marcou o trabalho e a vida de um Theo Meier nas décadas de 30 e de 40 e, através de Schlager, da história dos estudos voltados a Bali.

Esse intuito também não é apenas próprio da Basiléia, pois também fez-se sentir no Brasil, onde o estudo do folclore e da etnografia desde a segunda metade dos anos de 1960 foi refletido e conduzido em estreito relacionamento com a música contemporânea, como praticado no Centro de Pesquisas em Musicologia fundado em 1968.



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.) „Bali na Etnomusicologia no Brasil e a Suíça sob o signo da interdisciplinaridade e da ultrapassagem de fronteiras. De Ernst Schlager (1900-1964) ao Museu das Culturas e à „Música do Mundo“ na Basiléi“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 168/5 (2017:4).http://revista.brasil-europa.eu/168/Bali_na_Etnomusicologia.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

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