Dominicanos em Solor e Timor
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 168

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Lisboa. Foto A.A.Bispo 2014. Copyright

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S.Domingos, Lisboa. Fotos  A.A.Bispo 2014©Arquivo A.B.E.

 


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N° 168/11 (2017:4)


Os Dominicanos de Goa nos primeiros séculos do Cristianismo de Solor e Timor
A tradição do combate a heresias e do espírito inquisitório dos „cães do Senhor“
na luta contra muçulmanos e holandeses
Da prática dominicana do Rosário ao significado de Fátima no Timor-Leste do presente

Pelos 40 anos de encontros com estudiosos do Institut für Gesellschaftswisenschaften Walberberg

- sob o impacto das dimensões internacionais os 100 anos da aparição de Fátima -

 

Os estudos dedicados ao arquipélago malaio e o Brasil realizados no corrente ano em vários países daquela grande esfera insular do globo não puderam deixar de constatar o papel desempenhado pelas ordens religiosas em processos culturais no passado dessa região nas suas relações com a Europa.

Significado da consideração de ordens religiosas nos estudos culturais

As ordens religiosas que tão intensamente atuaram nas mais diferentes regiões do mundo alcançadas, administradas ou influenciadas pelos portugueses desde os séculos dos Descobrimentos desencadearam ou marcaram processos culturais.

As diferenças entre si quanto a história, tradições, expressões de culto e de práticas festivas, escopo e procedimentos, ou seja, as culturas específicas das diferentes ordens determinaram uma diversidade nas comunidades formadas que não podem deixar de serem consideradas em análises culturais mais acuradas.

Dentro de uma mesma sociedade cristã, as várias ordens estabeleceram diferenças numa unidade, esferas culturais próprias, seja franciscana, dominicana, jesuíta ou outras.

Nesse sentido, termos como „religião“ ou „cristandade“ foram também utilizadosna literatura mais antiga para a designação das ordens nas suas características particulares, para o qual utilizam-se hoje antes termos como espiritualidade ou carisma. Encontram-se, assim, expressões como „religião franciscana“ ou „religião dominicana“.

Poder-se-ia falar, assim, no estudo de processos culturais nas diferentes regiões do mundo desencadeados pela ação de ordens missionárias de „cristandades“ com características diferenciadas.

Arrefecida por diferentes razões no decorrer da história, a ação de ordens que mais atuaram em processos cristianizadores, permaneceu em muitos casos viva a marca de suas ações em concepções e expressões religiosas e festivas transmitidas pela tradição. Analisar as permanências e transformações ocorridas, assim como traços deixados sob o aspecto demopsicológico e de mentalidades constitui importante tarefa que se impõe a estudos de processos culturais em contextos mundiais.

Apesar das diferenças de contextos nas quais agiram, a atuação de ordens em diferentes partes do mundo, marcada pelos princípios comuns derivados de suas origens e características distintivas, levou a desenvolvimentos similares em regiões entre si distantes geograficamente e mesmo sem vínculos históricos mais estreitos. Franciscanos, Dominicanos, Jesuítas ou outros atuaram como tais nos vários continentes e sob muitos aspectos criaram esferas de vida, de compreensão do mundo e da existência, assim como expressões afins nos mais diferentes contextos.

Torna-se possível e necessário, assim, considerar esse fator de unidade para além de delimitações de contextos e de espaço geográfico. Este foi um dos complexos temáticos que marcou de início a realização da série de simpósios „Música Sacra e Cultura Brasileira“, aberta, em 1981, com o simpósio internacional dedicado significativamente ao complexo temático „unidade e diversidade“.

Diferenças derivadas do predomínio de determinadas ordens

Em Malaca, constata-se em particular a ação dos Jesuítas no primeiro século da presença portuguesa no arquipélago malaio, o que conferiu àquele centro portuário por sua vez grande significado na história dos contatos da Europa com a China e o Japão e na qual salienta-se o vulto de S. Francisco Xavier SJ (1506-1552). (Veja)

Essa relevância da Companhia de Jesus, sempre lembrada nas ruínas históricas que restam em Malaca, permitem o estabelecimento de pontes com o Brasil, país nos quais os Jesuítas desempenharam reconhecidamente um papel determinante sob muitos aspectos na sua formação cultural.

No caso das ilhas de Sonda - e assim de Solor e Timor-Leste -, torna-se necessário considerar em primeiro lugar o papel desempenhado pelos Dominicanos.

Essa consideração da Ordem dos Pregadores de S. Domingos (Ordo Praedicatorum) neste contexto geo-cultural, embora distante, pode contribuir aos estudos culturais da influência dominicana na história e em processos culturais no Brasil, uma problemática a qual não se tem dado ainda suficiente atenção.

Não se pode esquecer que a marca da „religião“ dominicana, ou seja, de uma cultura própria da ordem determinada pela época de sua fundação e seus objetivos, suas características de culto, vida religiosa, tradições e orientações doutrinárias também fêz-se vigente no Brasil por caminhos indiretos, sobretudo através de expressões de culto, concepções e formas de comportamento de portugueses e de grupos populacionais africanos que tinham sido influenciados por esses religiosos em missões internas ou externas de Portugal.

A consideração de um contexto cultural tão determinantemente marcado pelos Dominicanos - como é o caso de Timor-Leste - pode aguçar a sensibilidade do pesquisador para o reconhecimento e a análise dessa marca da ordem de S. Domingos em configurações culturais no Brasil.

A problemática dominicana nos estudos euro-brasileiros

Em visita ao antigo centro de estudos do Institut für hymnologische und musikethnologische Studien em Maria Laach/Colonia, Alemanha, que, com a sua seção de Etnomusicologia marcou estudos e os debates referentes ao Brasil durante 25 anos (1977-2002), lembrou-se, em 2017, da atenção dada desde o início de seus trabalhos ao papel desempenhado pelos Dominicanos na história das missões em dimensões mundiais e à sua atuação nos anos pós-conciliares.

No sentido de uma orientação dirigida a processos, defendida sob a perspectiva brasileira, sempre reconheceu-se que uma consideração atenta do papel desempenhado por ordens religiosas no passado missionário é indispensável para a análise de desenvolvimentos na história e no presente, assim como para o entendimento das diferentes configurações culturais de sociedades de identificação cristã do presente, sua demopsicologia e mesmo tendências político-culturais.

Esse interesse justificou-se por diferentes razões. Em instituto fundado por iniciativa de organização pontifícia, mantido tanto por instituição científica de relêvo alemã - a Academia de Ciências da Mogúncia - como por instâncias eclesiásticas, entre elas a Conferência dos Bispos da Alemanha, surgia como uma exigência focalizar com especial cuidado crítico a tradição de pensamento e a história das ações das ordens, e, entre elas, a dos Pregadores.

Embora situado nas proximidades de grande centro beneditino e na esfera do pensamento e da tradição de estudo e interiorização monástica da ordem de S. Bento, não se podia esquecer o papel - sob muitos aspectos contrastante - exercido pelos Dominicanos na história universitária medieval, da Teologia e da Filosofia e dos conhecimentos em geral.

Os estudos da Ordem dos Pregadores traziam à luz a problemática das relações entre o saber, a contemplação, a pregação, uma atitude de preocupação doutrinária dele decorrente, o pensamento inquisitório e a militância contra heresias.

A consideração das extensões da ação dominicana em regiões extra-européias surgia como exigência para o desenvolvimento de estudos de processos culturais nas suas dimensões mundiais, em particular sob a perspectiva de uma história global do saber institucionalizado, da disputa teológica e filosófica, assim como à luz de aspectos altamente questionáveis da história da Inquisição.

Análises de contextos e fundamentos  que levaram a situações de intolerância e mesmo a implantações de regimes de terror em nome da pureza doutrinária e atos de barbárie nos autos da fé mereciam e deviam ser conduzidas também a serviço de uma admoestação à modéstia intelectual, aos problemas derivados de uma excessiva certeza do saber e dos riscos da arrogância humana em nome de uma „filosofia perene“.

Dominicanos na história universitária e o instituto de Walberberg

A atenção à história dominicana na Europa e fora dela foi também uma decorrência do contexto institucional no qual esses trabalhos euro-brasileiros foram desenvolvidos na década de 1970.  Com sede em Colonia, encontrava-se em cidade que foi uma das mais antigas fundações da ordem no espaço alemão e na qual Albertus Magnus (1205-1280) dirigiu o Studium generale dos Dominicanos. Até hoje a Universidade de Colonia reporta-se a esse grande nome do Aristotelismo medieval, levantando-se o seu edifício principal em praça que traz o seu nome e o seu monumento.

Nas proximidades de Colonia encontrava-se também um dos principais centros de estudos dos próprios Dominicanos, o „Instituto de Ciências da Sociedade“ do convento de Walberberg (Institut für Gesellschaftswissenschaften Walberberg). Através do periódico Die Neue Ordnung e em encontros com estudiosos a êle vinculados, os estudos e os debates que se processavam dentro da própria intelectualidade dominicana foram acompanhados e interagiram nas reflexões voltaas a processos culturais.

A problemática das relações entre o pensamento na tradição social-cristã tomista e tendências do pensamento da Teologia da Libertação marcou as discussões, prementes sobretudo devido à orientação brasileira dos trabalhos.

Essa preocupação teórica levou à programação de uma sessão específica levada a efeito na Igreja de São Domingos em São Paulo no âmbito do Simpósio Internacional „Música Sacra e Cultura Brasileira“, em 1981. (Veja)

Entre as iniciativas que se seguiram relativamente a estudos dominicanos em processos culturais salientaram-se aqueles desenvolvidos no âmbito do projeto dedicado a culturas musicais indígenas, em particular no Brasil Central em 1992/3, no Museu da Inquisição em Cartagena (2008)  e, mais recentemente, no convento e igreja de São Domingos em Lisboa, em 2012. (Veja)

Situação crítica de Timor-Leste após 1975 nos estudos respectivos

O estudo do papel desempenhado pelos Dominicanos em processos culturais de regiões marcadas pela presença portuguesa na história surgia nas décadas de 1970 e 1980 como necessário e atual devido aos trágicos desenvolvimentos que ocorriam em Timor-Leste em fase de descolonização e da ocupação do território pela Indonésia.

Timor foi uma das regiões do globo que mais foram determinadas pelos dominicanos, que ali atuaram quase que como em exclusividade e mesmo em dominância. Considerar essa atuação com mais cuidado surgia como pressuposto para estudos de fundamentos de um país que se confrontava com graves problemas políticos relacionados com questões religiosas, eclesiásticas e de identidade cultural cristã.

Logo tomou-se consciência, porém, que o estudo do papel desempenhado pelos Dominicanos na formação cultural de Timor não podia delimitar-se a essa ilha, devendo abrangir não só a de Solor como também um contexto muito mais amplo e que compreendeu várias fundações na Índia, Malaca, Cambodja, Sião e outras regiões asiáticas e africanas.

Principal fonte histórica: uma relação dos feitos dos dominicanos

Uma das principais fontes históricas para esse estudo é uma pormenorizada relação dos feitos dominicanos escrita por ordem oficial de 1679 e na qual procurou-se fixar os princípios das „cristandades“ nas quais os Pregadores atuaram e que já em parte tinham acabado.

Trata-se da „Summaria relaçam do que obrarão os religiozos da ordem dos pregadores na conversão das almas e pregação do sancto evangelho em todo o estado da India e mais terras descubertas pellos portugueses na Azia, Ethiopia Oriental, e das missões em que autualmente se exercitão, com todos os conventos, cazas e número das relligiões que de prezente tem esta sua congregação da India Oriental“ (Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente, col. A. da Silva Rego, Índia 7. vol.VII, 1559, Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1952, Nr. 72, 367 ss.)

A existência desse valioso documento explica-se pela necessidade do registro da história da ação da Ordem dos Pregadores em época na qual já pertencia ao passado o período de sucessos da presença portuguesa no Sudeste Asiático: cidades e fortalezas tinham sido tomadas por potências estrangeiras, conventos e igrejas tinham sido destruídos e, com as casas da ordem, muita documentação tinha sido perdida.

Diferentemente também dos Jesuítas, os Dominicanos não cultivavam com tanta intensidade a prática da correspondência, o que explicava a falta de fontes e a necessidade de registro de acontecimentos a partir de notícias esparsas e da memória. Como o próprio autor da relação salienta, os Dominicanos tinham sido sempre mais „cuidadosos em obrar do que diligentes em escrever“.

Tratando da fundação das cristandades de Solor e Timor (pág. 424 ss.), o autor, após considerar a casa de Malaca, menciona dela terem vindo os fundadores da missão de Solor com a vinda de quatro religiosos de S. Domingos em 1561, início de uma ação que se irradiou a numerosas ilhas, pertencentes então à esfera de Malaca.

Naquele ano partira de Goa para Malaca D. Fr. Jorge de Santa Luzia como primeiro bispo, levando em sua companhia dois dominicanos: o Pe. Fr. Antonio da Cruz e Fr. Aleixo, leigo, que trouxera do convento de Aveiro. A êles ajuntaram-se dois outros acerdotes. Sob a direcão de Fr. Antonio da Cruz, quatro religiosos embarcaram para Solor seguindo ordem do vigário geral da congregação, Fr. Antonio Pegado.

Alcançaram grandes sucessos, logo batizando o régulo de Solor. A seu exemplo batizaram-se na ilha e na  ilha de Ende grande número de pessoas. O mesmo ocorreu em Timor, onde já havia traços do Cristianismo, que tinha sido levado pelo Fr. Antonio Taveiro, o primeiro dominicano que nela entrara ao redor de 1556 e que ali batizara mais de 5000 pessoas.

Em Timor, o processo cristianizador foi intensificado através de um outro missionário, um Fr. Christovão Rangel , que alcançou grande número de conversões. Depois de longo tempo sem missionários, esse religioso entrou na ilha, batizou o rei a terra e toda a gente de sua casa, abrindo caminhos para a conversão do povo a êle sujeito em época marcada por tensões com o Islão. Ferido por muçulmanos, recolheu-se ao convento de S. Domingos em Goa, onde faleceu.

Procedimento „de cima para baixo“: batismo de filho de régulo em Malaca

Com as notícias encorajadoras vindas de Solor e Timor, outros dominicanos se animaram a dar continuidade à cristianização. Muitos régulos locais foram batizados, entre eles o principe de um reino de Timor, que foi levado a Malaca por Fr. Belchior da Luz para ser batizado com grande solenidade pelo bispo D. Fr. João Gayo Ribeiro na presença do capitão e da nobreza de Malaca.

Voltando a Timor, foi bem recebido pelo seu pai e o padre passou a ser altamente prestigiado, o que levou a grande número de conversões até o ano de 1577. „...todos muito obediente e sogeitos aos religiozos de São Domingos, como ainda oje são, porque nunca conhecerão outros mestres nem pays espirituaes mais que a elles, nem os quizerão admitir, por haverem experimentado, que dos nossos religiozos tinhão não so o ensino mas tambem  hum escudo para sua defesa contra seus inimigos. (...)“ (op.cit. 426)

Essa notícia testemunha o mesmo tipo de procedimento empregado já na África e cuja consideração é de relevância não apenas para estudos mais específicos de métodos na história das missões como, de forma mais ampla, para análises de processos culturais. Os Dominicanos em Timor e em outras regiões utilizaram-se de estruturas sociais e de poder existentes, procurando conquistar potentados, personalidades acatadas nas respectivas sociedades, o seu círculo mais estreito de relações familiares e de dependentes. Batizados, tornavam-se exemplos e agentes de conversões para o seu povo, levando a batismos em massa.

Como já ocorrera e ocorria na África, a conquista de régulos e círculos de poder e influência também no Sudeste da África ocorreu em grande parte através da atração, do fascínio por formas e expressões do culto e do poder constituído. Assim como na África, o meio mais eficiente para impressionar de modo mais profundo os nativos consistia em trazê-lo para grandes centros com possibilidades de realização de solenidades de batismo de maior esplendor e brilho.

No caso do arquipélago malaio, o principal desses centros foi - até a sua queda - Malaca. Um dos principais problemas resultantes dessa estrategia foi o de que os batismos ou „conversões“ em massa, induzidos por imitação ou situações de poder, não significavam necessariamente uma transformação fundamental sob o aspecto cultural de concepções, visões da vida e expressões. Se implantava uma nova identificação - a do ser cristão - não correspondia mais profundamente a convicções, decisões e a um abandono de concepções, práticas e tradições.

O batismo de coletividades assim alcançado não deixava porém de ter consequências de grandes proporções. Sob a perspectiva teológica, tratava-se de um sacramento, de um sinal que criava realidades, e a qualidade de ser parte da cristandade trazia para essas sociedades obrigações de seguir normas e prescrições, religiosas e, em particular também de natureza moral. Abriam-se aqui, assim, possibilidades para a ação e aplicação de medidas do Direito eclesiástico e, assim, para o exercício de uma atividade na qual os Dominicanos há séculos se distinguiam: o de „domini canes“, o da guarda doutrinária, da acusação de riscos e de desvios religiosos e morais, sua inquisição e julgamento.

Repercussão dos sucessos e vinda de Dominicanos letrados

O grande número de batismos em Solo e Timor ressoou nos grandes centros dos portugueses no Oriente, despertando expectativas promissoras de Cristianização. Foi o bispo de Malaca D. João Gaio Ribeiro que mais se empenhou na vinda de missionários para Solor e Timor. Ao redor de 1585, escreveu a autoridades portuguesas informando a respeito da grande comunidade que os dominicanos haviam feito em Timor, Solor e Ende, pedindo o envio de mais religiosos.

Sendo as cartas lidas no convento e S. Domingos de Lisboa, cinco religiosos embarcaram para Malaca, entre eles o padre mestre Fr. Thomas de Brito, que então lia teologia no convento, o Fr. Francisco de Matos, lente de Artes e os padres Fr. Luis de Brito, Fr. Francisco da Cunha e Fr. Gaspar Teixeira, letrados e pregadores de renome. Embarcados sob a direção de Fr. Thomas, em janeiro de 1586, foram confrontados com naus inglesas de piratas, chegando após seis meses em Moçambique e dali para Malaca, entrando em Solor. Já nesse empreendimento registra-se o cuidado português em enviar para as ilhas religiosos de alta formação intelectual e teológica, ou seja, o de promover uma cristianização bem fundamentada segundo critérios e concepções da época.

A repercussão desses sucessos comunicado pelas cartas do bispo de Malaca pode ser avaliada através da disposição que despertou entre os Dominicanos portugueses em transferir-se para Timor e outras ilhas. As  cartas foram lidas também em outros conventos, e do Colégio de Coimbra se oferecerão 19 religiosos, vindos com Fr. Hyeronimo de S. Thomas em duas naves. Com eles veio  Fr. João da Piedade, que no Colegio de S. Thomas de Goa leu durante anos. Entre outros, distinguiu-se o Fr. Domingos da Visitação, que, ao chegar, também dedicou-se ao ensino, lendo Artes e Teologia.

Esssa fase da história cultural das ilhas do Sudeste Asiático determinada pela repercussão do grande número de batismos alcançado pelos Dominicanos foi marcada por uma tragédia naval que levou à morte de vários religiosos de renome em Portugal pela sua capacidade intelectual e teológica.Trata-se do naufrágio do galeão S. Lucas, em 1590, onde viajavam para o Oriente dez Dominicanos que iam sob a direção do Vigário Geral da Congregação, Fr. Antonio de Lacerda. Todos eram homens de erudição e pregadores, dois eles lentes de artes no convento de S. Domingos de Lisbos e no convento a Batalha.

„Com tão grandes socorros e ajudas, como teve a christandade de Solor, e outros que depois mandou o provincial e os prelados da congregação continuarão, por via de Malaca, forão tantos os religiozos que entrarão em Solor, que athe os annos de 1606, se contavão sessenta e quatro e estavão aquellas ilhas tão povoadas de igrejas que herão dezoito as que estavão fundadas nas ilhas e Solor e do Ende, em que havia muitos milhares de christõas, das quais a principal e como cabeça das mais he a da invocação de Nossa Senhora da Piedade em Larantuca, onde havia um seminario onde os meninos aprendiam a ler, escrever e conbtar. e rezide hum vigario com seu companheiro, que he o prelado mayor destas christandades e quasi sempre comissario do Santo Officio, (...)“ (op.cit. 429).

O cronista afirma não haver povoações nas ilhas de Solor, Sica e Ende em que não houvesse igreja, e em Timor. Em reinos como Lifau, Amanubão, Mena, Luca, Batamião e Cupão, já todos os regulos eram cristãos e, à sua imitação, muitos vassalos tinham sido batizados, tendo-se levantado em suas terras igrejas onde os padres diziam missas.

Se muitos sacerdotes tinham que cuidar de várias igrejas, isso não era resultado do descuido as autoridades, mas das muitas mortes causadas pelas „ruins agoas que há em Timor, por respeito dos mineraes de emxofre, ferro, e outros metaes, por onde pação e tambem por muitas raizes venenozas, de que he esta ilha abundante, e os que escapão em vida ficão sempre tão achacaos e doents que parecem defuntos (...)“ (op.cit. 430)

A falta de meios financeiros foi sempre o principal empecilho para o envio de mais dominicanos. A congregação encontrava-se sobrecarregada com a construção do convento de S. Domingos de Goa. Além do mais, a viagem era muito longa, não podendo ser feita diretamente, sendo necessário ir primeiramente a Macua ou ao Sião e dali para Solor, gastando-se para isso no mínimo 9 meses.

Os dominicanos em Malaca viviam em pobreza, sofrendo muitas necessidades, pregando até a perda da cidade, em 1640, quando lutaram para defenter o baluarte de S. Domingos a seu cargo. Mesmo nessa penúria, procuraram criar condições favoráveis à atração e formação de batizados, organizando-os numa confraria do Rosário e nela realizando celebrações e festas com o brilho e o esplendor na medida as possibilidades.

Mouros X Cristãos nas ilhas de Sonda e os Dominicanos

O estudo do conflito entre o Islão e o Cristianismo, que marcou fundamentalmente a história política e cultural das relações entre a Europa e o Oriente, e, em particular, aquela de Malaca, adquire novos acentos através da consideração de Solor, Timor e outras ilhas nas quais atuaram os Dominicanos.

Os sucessos por estes alcançados no batismo de régulos, suas famílias e vassalos, e assim na formação de configurações de estado identificadas como cristãs não ressoaram apenas entre os portugueses, mas também naquelas dos muçulmanos que combatiam a expansão ocidental na região.

Como mencionado pelo cronista, os muçulmanos que viviam nas ilhas e também os de Java e de Tolo procuraram impedir tal crescimento, o que deu origem a embates e mortes. Para a luta contra os muçulmanos, o Fr. Antonio da Cruz levantou já no início uma fortaleza de pedra e cal na ilha de Solor, uma fortificação que foi sustentada durante muito tempo pelos próprios dominicanos, que nomeavam o capitão e pagavam os soldados até que esta passou em 1586 a ser sustentada pelo Vice-Rei.

Essas ilhas inscreveram-se tanto na história dessa situação de guerra que marcou a região como naquela da expansão dos holandeses como concorrentes comerciais dos portugueses. A consideração dos Dominicanos como principais agentes europeus nas ilhas permite que se entenda situações e desenvolvimentos à primeira vista de difícil compreensão. Pela sua própria história e pelas suas características e orientações, marcadas pela defesa da doutrina e pelo combate a heresias, os Dominicanos confrontaram-se com dois inimigos, um não-cristão, outro cristão, ou seja o Islão e o Protestantismo dos holandeses. Os portugueses católicos foram assim o inimigo comum de muçulmanos e cristãos reformados, e uma aproximação ou mesmo aliança que não pode ser explicada apenas por questões de interesses comerciais, mas também no sentido de que o „inimigo do meu inimigo é meu amigo“.

O regime dos Dominicanos em Solor e Timor

O poder temporal dos Dominicanos e a natureza quase estatal da sua presença explica-se em parte que, sem ter governador residente, Timor ficou sob o poder dos religiosos, vigorando um sistema de cunho teocrático. Na mesma época em que os Jesuítas criaram missões na América do Sul que seriam criticadas posteriormente pela sua natureza de estados fechados e rigidez na organização interna, os dominicanos erigiram na ilha também uma configuração de governança social autoritariamente estruturada, mas com características totalmente diversas daquelas da Companhia de Jesus no Paraguai.

Essas diferenças entre os métodos empregados pelos missionários da Companhia de Jesus e os dominicanos não poderiam deixar de ter influência na formação religiosa e cultural das populações. Se de um lado os Jesuítas empregavam elementos das culturas indígenas resignificando-os através de sua integração em expressões lúdicas e festivas, assim como exercitando os indígenas em instrumentos europeus e práticas artesanais, os Dominicanos davam sobretudo significado a questões doutrinárias e de moral, sempre preocupados com a manutenção da pureza da fé e da detectação e combate à heresias.

Intervenções sobrenaturais: S. Domingos nas guerras contra os holandeses

A relação dos feitos dos religiosos Dominicanos do século XVII salienta o papel decisivo por êles desempenhado na defesa da ilha contra os holandeses. Tudo indica que se deve a esse espírito combativo e não temente de uso de armas o fato de ter-se mantido a presença portuguesa na região em época na qual Malaca e outras regiões passavam ao domínio holandês.

Essa militância e aptidão soldática dos religiosos davam continuidade nessas distantes regiões da tradição medieval de combate aos hereges dos Dominicanos. Se os estudos da Contra-Reforma nas suas dimensões globais deram atenção até hoje sobretudo aos Jesuítas, a consideração de Timor dirige o olhar a um outro aspecto do movimento de combate católico aos protestantes: o da mão armada sob a direção dos Dominicanos.

Principal exemplo desses embates é aquele que se relaciona com o aprisionamento de um religioso (Fr. Christóvão). Os holandeses, após atacarem a fortaleza de Solor, dirigiram-se a Cupão, na cabeça de Timor, onde teriam convocado os muçulmanos de Solor e alguns reis de Timor para auxiliá-los na luta. Estes últimos levaram à traição de um régulo, o de Amavi, que entregou os líderes cristãos do seu reino, dos mosqueteiros e do seu capitão, com um exército de 20.000 homens. Os cristãos, reagindo, mataram muitos inimigos, um fato que não deixa de ser registrado com satisfação pelo cronista dominicano.

Esse sucesso teria sido devido a uma milagrosa intercessão de S. Domingos. Através de confissões de inimigos traidores sobreviventes, os Dominicanos constataram que, enquanto durou o embate, os combatentes viram um frade vestido com o hábito de S. Domingos com uma cana de Bengala na mão, com a qual os saudava, fustigava e ordenava que debandassem. Essa visão criou pavor pavor e confusão nas hostes inimigas.

O cronista estabelece aqui explicitamente uma relação direta entre o combate aos hereges na Idade Média e aquele contra os protestantes unidos aos muçulmanos em Timor. A guerra contra os cátaros ou albigenses em Albi, no sul da França, convocada pelo Papa Inocêncio III em 1208, e cujo último combate deu-se em 1244, com numerosas mortes, é transportada para as ilhas de Sonda.

„Bem podia ser este nosso santo patriarcha que esta occazião quis socorrer a seus filhos christãos contra os hereges, como em vida fizera contra os de Alby. (op.cit. 442)

Segundo a crónica, com esses sucessos dos católicos, os holandeses ainda mais se empenharam a partir de Batavia em destruir os cristãos de Timor, então sob o govêrno de Fr. Manuel da Concepção.

Também nessa fase da luta, porém, teriam acontecido vários fatos que pareciam milagrosos. Uma delas dizia respeito a uma aparente ressurreição por intervenção divina: caindo um capitão atingido por uma bala de mosquete, e estando como morto, quando o régulo levantou os olhos para o céu, o capitão levantou-se, sem feridas.

Entre outros prodígios salientou-se aquele do aparecimento de uma pessoa que carregava o mosquete para um religioso que disparava, embora não houvesse nenhum outro Dominicano nas redondezas: teria sido S. Domingos?

Também a intensidade do culto mariano promovido pelos Dominicanos favoreceu suposições de fatos milagrosos e visões. Assim, a padroeira de Larantuca, Nossa Senhora da Piedade, teria aparecido em situação de luta rodeada de homens a cavalo e anjos-infantes.

O combate a heresias e à sensualidade em processos culturais nativos

Marcados por um espírito de cuidado relativo à doutrina e de princípios morais segundo as normas da Igreja, e na tradição de combate a heresias, os letrados dominicanos portugueses que atuaram nas Ilhas de Sonda combateram com afinco expressões e cerimônias que pareciam-lhe ser errôneas de nativos já batizados, causando com essa atitude conflitos e inimizades. Entre êles salientou-se o Fr. Duarte Travassos OP que, trazendo fama de erudito e grande pregador como leitor de Artes e Teologia no convento da Batalha, atuou em Solor com cinco outros religiosos e, a seguir, em Timor, como vigário de Lifão; ali encontrou a morte em 1670.

O seu assassínio foi devido ao fato de ter-se indignado e combatido o que considerava superstições indignas de gente que se considerava católica por ocasião da morte de um régulo. O combate desse letrado levou a reação popular, tendo sido mortos e jogados num poço êle e seus companheiros. (op.cit. 456)

Esse fato traz mais uma vez à consciência que os líderes locais e suas famílias, batizados no início de processos cristianizadores com o sentido de tornarem-se modêlos para os seus povos, embora neles criando uma identidade de cristãos, não suprimira os elos tradicionais com religiões nativas.

O espírito inquisitório e doutrinário-intolerante dos Dominicanos não os condicionou apenas a ver com severidade expressões e formas de celebração que lhes pareciam heréticas. Voltavam-se sobretudo também a formas de comportamento que não correspondiam às normas da Igreja, sobretudo aquelas referentes ao casamento e à vida conjugal, assim como ao que consideravam como lascivo e sensual. Também essa intransigência dominicana levou a reações por parte do povo, sendo um exemplo o do Fr. Gaspar Evangelista OP que, alguns anos após o assassínio do Fr. Duarte Travassos OP, também foi morto na igreja de Ade, Timor, pelo fato de ter repreendido um natural em assuntos morais.

A luta dos Dominicanos para com a sensualidade que viam reinar nas ilhas de Sonda pode ser exemplificada na história do Pe. Rafael da Veiga OP. Atuando como missionário na ilha de Savo, sentiu-se êle próprio tão propenso a ser influenciado pela sensualidade que ali predominava que preferiu dela fugir para não cair no mesmo estado moral que criticava e, assim, perder a sua alma. Ganhou, assim, a fama de santidade nos anais da ordem. (op.cit. 448)

Dominicanos no Timor e o Padroado à época da Independência do Brasil

Como em outras regiões, também em Timor procuraram os portugueses reestabelecer a sua soberania de governança após a mudança da situação política na Península Ibérica no século XVII. Em 1702, Timor e Solor receberam o seu primeiro governador. Acostumados com uma quase que irrestrita autonomia, os missionários não aceitaram facilmente a soberania administrativa portuguesa.

Uma nova situação impôs-se no início do século XIX, sendo esta condicionada por desenvolvimentos globais nos quais o Brasil se inseriu. Embora o papel dos Dominicanos e de outras ordens religiosas à época da transferência da Côrte portuguesa ao Rio de Janeiro exija ainda estudos mais aprofundados, os desenvolvimentos que então se seguiram repercutiram no Oriente. Um dos aspectos que merecem ser considerados é o das relações entre o govêrno português e os Dominicanos nas missões a serviço dos interesses do Padroado Português do Oriente.

Uma notícia em jornal de Macau, no início de 1823, na qual se publicam extratos do Diário do Govêrno de Lisboa, documenta uma dissidência relativamente ao Arcebispo de Goa e o apreço governamental aos Dominicanos.  Dom João VI (1767-1826) tinha tomado conhecimento de „excessos jurisdicionais“ do Arcebispo de Goa na medida que procurara intervenir através de sacerdotes seculares nas atividades de ordens em diferentes regiões, entre elas dos Dominicanos em Solor e Timor. O rei salienta, neste contexto, o significado do trabalho desses religiosos, que teriam criado instituições, levantado igrejas, conventos, hospícios e atuado sem despesas para o Estado,

„Sendo presente a Sua Magestade os excessos de Jurisdicção, com que o Reverendo Arcebispo de Goa Primáz do Oriente, se tem intromettido nas missoens dos Religiozos Dominicanos nas Ilhas de Solor e Timor Bispado e Malaca; e na dos Religiozos Agostinhos em Bengalla, Bispado de Miliapor, nomeando para ellas Sacerdotes Seculares contra as Reaes Determinaçoens, que Ordenaõ a conservação dos mesmos Regulares nas suas respectivas Missões, que crearaõ pelo seu zêlo, e conservaõ pelas suas fadigas, e aceitaçaõ dos Povos, aonde fundaraõ Conventos, ou Hospicios para irem accudir às necesidades espirituaes da Christandade, sem despeza do Estado, e sómente pelas religiozas oblaçoens dos Fieis, mostrando com estes procedimentos huma reprehensivel ambiçaõ de dominar todos os Bispados do Oriente sobre os auqes, além de conhecer das cauzas por Appellaçaõ só tem direito de nomear Vigario Capitural (...) porque a sua he limitada a demarcaçoens do seu Bispado, o que faz duvidosa aquella que confere a Sacerdotes que vaõ Missionar a Dioceses alheias, chegando ao extranho procedimento de naõ querer Ordenar os Religiozos (...) Espera Sua Magestade, que o Reverendo Arcebispo Primàz Ordene quanto antes os Regulares, que so lhes apresentarem habilitados pelos seus respectivos Prelados; e quando recuze cumprir estas Reaes Determinações (o que se naõ espera) Sua Magestade mandará proceder as temporalidades contra o mesmo Reverendo Arcebispo Primáz do Oriente. Palacio de Queluz em 16 de Abril de 1822. Jozé da Silva Carvalho“. (A Abelha a China XIX, 23 e Janeiro de 1823)

A relevância dos Dominicanos na sustentação da ordem política pode ser avaliada de um outro artigo publicado no mesmo órgão de Macau e na qual se transcreve um extrato de ordem régia ao Prior Provincial da Ordem dos Pregadores publicada no „Pregoeiro Luzitano“. Nela, ordenava-se que os mais competentes religiosos pregassem sujeição ao govêrno estabelecido, demonstrando que as reformas que então se faziam não vinham de encontro à religião.

„A Regencia do Reino, em Nome d‘El-Rey o Senhor D. João VI, ordena, que V.P. Reverenissima faça prégar nos Conventos, ou Mosteiros da sua jurisdicçã pelos mais habeis, e acreditados Pregadores, determinando-lhes, que nos seus Sermoens recommendem aos seus ouvintes huma reciproca uniaò, e a sua sujeiçaò ao Governo estabelecido; provando-lhes, que as reformas, e melhoramentos, de que estaò occupados os ligitimos Representantes da Naçaò, de maneira alguma offendem a Religiaò Catholica Apostolica Romana, que todos professamos, e juramos manter e deffender; o que participo a V.P., Reverendissima de Ordem da mesma Regencia, para que assim o faça executar. Deos Guarde a V.P. Reverendissima. Palacio a Regencia em 26 de Fevereiro de 1821. Joaquim Pero Gomes de Oliveira.“ (A Abelha a China XXVIL, 20 de março de 1823)

Paralelos com desenvolvimentos posteriores no Brasil

Também na superação da quase que configuração quase de estado das missões há paralelos entre os acontecimentos no Brasil e em Timor, assim como em outras regiões sob a administração portuguesa.

Esses paralelos resultam de processos desencadeados por decisões políticas portuguesas. Se no Brasil o momento crucial deu-se com a expulsão dos Jesuítas no século XVIII, em Timor esse momento ocorreu já em época do Brasil independente, com a expulsão dos dominicanos em 1834 no contexto das medidas restritivas quanto a ordens religiosas do Liberalismo em Portugal.

Não se pode esquecer que também no Brasil procurou-se reestruturar as missões indígenas e instaurar um processo de gradual supressão do poder de ordens com a proibição de aquisição de novas entradas. Não se pode também esquecer que este foi a época de Dom Pedro IV de Portugal, o Dom Pedro I° do Brasil (1798-1834).

Expulsão dos dominicanos - permanências culturais em comunidades

Assim como no Brasil, a expulsão de religiosos deixou um vácuo que foi particularmente grave em regiões que tinham até então estado sob o domínio quase que exclusivo das missões. No caso de Timor, a ilha ficou quase que abandonada.

Os elos com Goa deram lugar àqueles com a diocese de Macau, à qual Timor passou a pertencer a partir de 1874. Vê-se, aqui, o início de uma fase moderna da história missionária com a implantação de amplas medidas de re-catolização da ilha. Essa re-cristianização, porém, procedeu sob o signo de uma nova época da história eclesiástica, marcada sobretudo por tendências restaurativas, do historicismo do século XIX e da cultura de ordens missionárias com outras tradições, outros pêsos no culto de santos e outras expressões. (Veja)

É de se supor que o longo período em que Timor esteve sem atuação sistemática de missionários a população cristã, marcada por formação obtida no passado, deixada a si só, desenvolvesse práticas e expressões de culto heterodoxas e que passaram a ser corrigidas segundo as normas e concepções  dos religiosos.

O culto de N.Sra. do Rosário dos Dominicanos e Fátima

Uma das devoções mais características dos Dominicanos é aquela do rosário e o seu fomento marcou as suas atividades missionárias na Europa e nas regiões extra-européias.

Esse significado do rosário explica-se pelo peso dado à interiorização através da contemplação nas concepções dominicanas: com as repetições, o homem é transportado a uma esfera de introspecção, de serenização de impulsos sensuais e receptiva, ou seja, a uma esfera mariana.

É compreensível, assim, que a prática do rosário e a instituição de confrarias de Nossa Senhora do Rosário tenham marcado processos de cristianização de africanos trazidos a Lisboa e em regiões da África e da Ásia. (Veja)

Significativamente, a igreja mais relevante do patrimônio histórico-arquitetônico de Goa é um monumento do culto a Nossa Senhora do Rosário. (Veja)

Também nas ilhas de Sonda, os Dominicanos fomentaram a prática a serviço da cristianização dos nativos e a sua organização em confrarias. Essa devoção marcou assim profundamente a cultura religiosa, permanecendo viva mesmo depois da saída dos Dominicanos.

Assim como os Dominicanos viram na sua luta contra os muçulmanos e protestantes holandeses um paralelo contra o combate dos albigenses na Idade Média, também a prática do rosário podia ser assim explicada, uma vez que, segundo a tradição, teria sido o rosário dado por Maria a S. Domingos no contexto daqueles empenhos medievais.

Nessa prática fomentada pelos Dominicanos encontram-se os fundamentos de outras formas e denominações de culto mariano nas ilhas, também daquelas relativas a aparições marianas mais recentes. A quantidade de grutas espalhadas pela região dão testemunho de uma linguagem visual de remotas proveniências atualizada pela recepção de cultos de aparições na Europa nos séculos XIX e XX.

A veneração de Nossa Senhora do Rosário de Fátima foi promovida em Timor - como em outras partes do mundo - sobretudo na década de trinta do século XX. Nesse fomento destacou-se o Pe. Ezequiel Pascoal Enes em Manatuto, seguindo-se Soibada. Aqui, em 1936, o Pe. Jaime Garcia Goulart fundou um seminário no qual deveriam formar-se sacerdotes nativos e que passou a ser designado como Seminário de Nossa Senhora de Fátima. No ano seguinte, consagrou-se a igreja de mesma invocação em Suro; em 1939, a capela de Fátima de Fatubessi e a capela de Watolari, seguindo-se, em 1940, a de Fatumaca.

Essa propagação da veneração de Nossa Senhora de Fátima em Timor-Leste pode ser considerada em paralelos com aquela que ocorreu na mesma época no Brasil. Só que em Timor-Leste essa extraordinária difusão explica-se de forma mais evidente pelos pressupostos culturais marianos lançados há séculos pela prática do Rosário e pelo culto a Nossa Senhora do Rosário.

É esse estudo de processos históricos que permite explicar a intensidade e o significado da veneração de Fátima em Timor-Leste. Em 2002, com grande participação popular, uma imagem de Maria foi trazida de Fátima para a cateral de Dili, tendo percorrido grande parte do país.

É o estudo desses processos que explicam o grande número de timorenses que visitam o Santuário de Fátima, entre êles, em 2008, o Presidente José Rampos Horta. Esse estudo torna compreensível, também, que Timor-Leste tenha Nossa Senhora de Fátima como padroeira.




Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Ed.)  „ Os Dominicanos de Goa nos primeiros séculos do Cristianismo de Solor e Timor
A tradição do combate a heresias e do espírito inquisitório dos „cães do Senhor“
na luta contra muçulmanos e holandeses. Da prática dominicana do Rosário ao significado de Fátima no Timor-Leste do presente“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 168/11 (2017:4).http://revista.brasil-europa.eu/168/Dominicanos_em_Timor.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

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