Ataúro em Maria Laach e o Brasil
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 168

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Maria Laach. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

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Maria Laach. Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.

 


Maria Laach. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright
N° 168/9 (2017:4)

Ataúro em Maria Laach e o Brasil
Timor-Leste nos estudos músico-culturais
sob o impacto de desenvolvimentos pós-conciliares e político-culturais
Pe. Jorge Barros Duarte (1912-1995):
da música sacra segundo o Motu Proprio (1903) e do movimento orfeônico à Etnomusicologia

 

Há 40 anos fundou-se o Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos como instituição de pesquisa alemã em Colonia e com centro de trabalhos em junto à Abadia Beneditina de Maria Laach, um dos grandes monumentos arquitetônicos, culturais e de pesquisa da Alemanha.


Este instituto, nascido a partir de um simpósio etnomusicológico realizado em 1976 pela organização pontifícia de música sacra (Consociatio Internationalis Musicae Sacrae, Roma), foi não apenas entidade única sob o aspecto eclesial, atuando em estreita colaboração com instituições romanas, em particular com o Pontificio Istituto di Musica Sacra, mas também centro de pesquisas especializadas subvencionado pela Academia das Ciências da Mogúncia e trabalhando em cooperação com várias universidades alemãs e de outros países da Europa e de outros continentes.

De 1977 a 2002, quando encerrou as suas atividades, o departamento de Etnomusicologia esteve sob direção do editor desta revista, inserindo-se em corrente de pensamento originada no Brasil e realizando ciclos de estudos, publicações, simpósios e congressos relacionados com o país ou nele efetivados.

Não houve outra instituição alemã ou mesmo internacional que mais assegurasse a presença do Brasil na discussão músico-cultural nas últimas décadas, influenciando modos de pensar, marcando projetos e suscitando debates e revisões de posições e perspectivas, tanto interno-eclesiais como científicas.

Com uma visita de convidados da A.B.E. ao antigo centro de estudos junto à Abadia de Maria Laach relembrou-se em 2017 a fundação do departamento de Etnomusicologia em 1977, os critérios que determinaram a sua orientação e os muitos eventos ali realizados de significado para Portugal, para o Brasil e para outros países que merecem particular atenção em estudos desenvolvidos em português.

Os estudos etnomusicológicos no contexto de sua época

Nessa visita pelos 40 anos do início dos trabalhos etnomusicológicos, salientou-se que a própria fundação do instituto, o seu escopo e os trabalhos ali desenvolvidos devem ser considerados no contexto internacional tanto eclesial da época pós-conciliar como no da área de uma musicologia compreendida como interdisciplinar e, em particular, na área dos estudos culturais com especial focalização da música.

Considerá-lo no contexto da época e das décadas em que se seguiram surge como significativo para a história do pensamento e da pesquisa em relações internacionais da segunda metade do século XX. As interações entre estudos de processos culturais e aqueles da própria ciência - cujo estudo é objetivo da A.B.E. - tornam-se particularmente evidentes na fundação e no trabalho do departamento de Etnomusicologia desse instituto.

A presença brasileira do departamento de Etnomusicologia favoreceu desde o início uma maior consideração de pesquisadores e de publicações em língua portuguesa nas discussões do instituto e no meio universitário em que se inseriu. Entre êles, merece ser lembrado o nome do sacerdote, escritor, pesquisador, músico e político de Timor, o Pe. Jorge Barros Duarte (1912-1995).

Timor-Leste em foco das preocupações internacionais

Numa época em que Timor do Leste se encontrava no centro das preocupações políticas internacionais devido à descolonização, aos movimentos revolucionários e à ocupação por forças da Indonésia, esse religioso timorense de múltiplos talentos e interesses surgia como personalidade significativa e de influência em meios voltados a questões culturais.

Essa sua posição era conhecida por pesquisadores de religiões e da missiologia sobretudo através da obra do Pe. Manuel Teixeira sobre Macau e as missões em Timor recentemente publicada. (Macau e a sua Diocese: Missões em Timor, vol. 10, Macau, Tipografia da Missão do Padroado,1974, p. 576)

Essa e outras publicações referentes à história missionária de Timor-Leste puderam ser estudadas e discutidas na „Haus Völker und Kulturen“ dos Missionários Steyler (SVD) em Saint Augustin, próximo da então capital da Alemanha, instituição que estreitamente colaborou com a seção de Etnomusicologia e com os estudos euro-brasileiros em geral.

Nos diálogos referentes a religiosos que se dedicavam também à pesquisa nessa esfera do globo, Jorge Barros Duarte surgia como exemplo de uma geração intermediária entre desenvolvimentos pré- e pós-conciliares que também teve representantes de influência no Brasil e em Portugal.

Formação e atuação em época anterior ao Concílio Vaticano II

Como vários religiosos que se dedicaram à música e à pesquisa de folclore no Brasil, Jorge Barros Duarte tinha sido formado na tradição da reforma litúrgica e sacro-musical no espírito do Motu Proprio Pius X. (1903).

Recebera essa formação desde a sua infância no Seminário de São José de Macau, principal centro de formação de jovens e de sacerdotes do Oriente segundo normas consideradas como universais na tradição do Motu Proprio de 1903 e segundo o espírito da restauração litúrgico-musical na tradição do século XIX.

Ali teve como mentores personalidades das mais destacadas e influentes do movimento litúrgico-musical, do Gregoriano e do canto coral segundo modêlos da polifonia clássica. Ali adquiriu formação filosófica, teológica e  literária, orientada segundo estudos clássicos, o que explica a sua atuação como escritor e sua obra poética.

Tendo terminado os seus estudos e sido ordenado a presbítero em Macau, em 1936, foi marcado também por tendências político-culturais do Estado Novo português que acentuava ideais de unidade do Império e de uma lusitanidade fundamentada na língua e no estudo do folclore português.

Jorge Barros Duarte foi assim, como discípulo dessa instituição, marcado pelo meio eclesiástico-cultural de Macau, levando os seus ideais a Timor, para onde se transferiu logo após a sua ordenação e nomeação como missionário do Padroado Português no Oriente.

A sua atuação em Timor nessas décadas pode ser vista assim como característica de  um contexto político-cultural em dimensões mundiais, tanto da Igreja como de Portugal relativamente às suas colonias.

Soibada como centro musical - o Canto Orfeônico em Timor e no Brasil

A consideração da vida e das atividades do Pe. Jorge Barros Duarte no âmbito dos estudos euro-brasileiros despertou a atenção para paralelos entre desenvolvimentos no Brasil e em Timor-Leste, em particular no referente ao Canto Orfeônico nas décadas de 30 e 40.

Esse reconhecimento trouxe à consciência que os estudos do movimento orfeônico no Brasil tinham sido até então por demais marcados por perspectivas nacionais, pouco considerando-se as suas inscrições em processos de dimensões mais amplas.

As atividades do Pe. J. Barros Duarte em Timor-Leste, que uniaram ideais restaurativos do canto polifônico a cappella ou com discreto acompanhamento de órgão com aqueles nacionalistas dos orfeões dessas décadas correspondiam àquelas dos muitos religiosos brasileiros que também salientaram-se no movimento orfeônico como organizadores, regentes, compositores e arranjadores.

O Pe. J. Barros Duarte pôde aplicar o aprendido em Macau sobretudo em Soibada. Ali tornou-se veículo de transmissão de conhecimentos e de ideais assimilados a novas gerações, atuando na formação de professores-catequistas  e no Seminário Menor de Nossa Senhora de Fátima. Importante salientar é o papel exercido pela música nessa sua atividade educativa.

Soibada já era conhecida como centro musical e pela tradição do cultivo da música sacra. Essa tradição remontava à época da restauração que se compreendia como re-cristianização da ilha iniciada à época de D. Manuel Bernardo de Souza Ennes (1814-1887), erudito prelado açoriano que foi bispo do Pará e de Macau, assim como professor do Seminário de S. José. Responsável pelo início da tradição coral e instrumental em Soibada foi o Pe. Sebastião Maria Aparício da Silva.

Emprestando grande significado à prática coral na missão, criou ali um conjunto coral com o qual executava obras da polifonia clássica segundo os ideais historicistas do movimento católico restaurador europeu. Assim como também em vários centros missionários do Brasil na fase de revitalização conventual da segunda metade do século XIX, esse missionário promoveu também o ensino da música instrumental entre os jovens, criando uma banda para atuações em festas escolares, religiosas, nacionais e em procissões.

„Cultivavam com esmero a musica. Quando alli foi de visita o actual Bispo de Macau, ficou maravilhado ao ouvil-os cantar na igreja musicas classicas, sendo um d‘elles o organista; e n‘uma academia em sua honra, em que recitaram discursos, poesias e executaram canticos varios, era o acto abrilhantado por uma banda instrumental por elles composta, em que se houveram com muita correcção.“ (D. J. P. d‘Azevedo e Castro, Os Bens das Missões Portuguezas na China, Redacção do Boletim do Governo Eclesiástico de Macau, 1915, 2a. ed., fac.sim. Macau: Fundação Macau, 1995, 182)

Jorge Barros Duarte tornou-se representante no Timor do movimento orfeônico nas suas características político-culturais da década de 30 e que passara a constituir principal escopo da prática educativo-musical de Portugal, do Brasil e de outros países marcados ao mesmo tempo pelo nacionalismo político e pelo ideal sacro-musical do movimento restaurativo.

A prática orfeônica e de regência que adquirira no Seminário de Macau serviram-lhe como modêlo para a sua atuação em Soibada. Conseguiu, assim, criar ali um orfeão de alta qualidade técnica e que se orientava quanto ao repertório sacro em obras dos maiores representantes da restauração litúrgico-musical em Roma, como, entre outros, de Lorenzo Perosi (1872-1956), maestro da Cappella Sistina, conselheiro de Pio X, principal nome de peritos relacionado com o Motu proprio de 1903.

Significativamente, Jorge Barros Duarte regeu, como maestro do seu orfeão de Soibada, a Missa Pontificalis de Perosi por ocasião da sagração da matriz de Dili por Dom José da Costa Nunes (1880-1976).

A sua atuação nesse ato celebrado por esse influente vulto da Igreja, bispo de Macau, Arcebispo de Goa e Damão, Cardeal, Primaz Patriarca da Índia Oriental, acentua não só os elos de Timor com Macau, mas sim também com os Açores, onde nascera e onde obtivera formação no Seminário de Angra. Sendo também músico, defensor das normas sacro-musicais, Dom José da Costa Nunes correspondia, na sua orientação, àquela adquirida por Jorge Barros Duarte em Macau.

Exílio na Austrália e período de pós-guerra em Timor: ensino e política

Como vários religiosos e homens de cultura de Timor, Jorge Barros Duarte afastou-se de Timor no período da ocupação japonesa durante a Segunda Guerra Mundial, abrigando-se na Austrália. A sua vida oferece assim mais um exemplo da necessária consideração da Austrália nos estudos voltados a Timor. (Veja)

Retornando com o término da Guerra, dedicou-se à missão em Barique. Deu prosseguimento à sua atividade educativa como diretor do Seminário Menor de Nossa Senhora de Fátima e da Escola de S. Francisco Xavier.

Nas décadas que se seguiram, desempenhou vários cargos eclesiásticos e educativos, entre êles na missão de Manatuto e na paróquia de Santo Antonio de Motael. Nos anos de 1960, Jorge Barros Duarte passou a ocupar influentes cargos na Diocese e na representação política de Timor em Portugal. Destacou-se, assim, como um nome significativo dos últimos anos da época colonial portuguesa.


Mudanças desencadeadas pelo Concílio Vaticano II e descolonização

Os desenvolvimentos desencadeados pelo Concílio Vaticano II, que relativou grande parte dos ideais de sua juventude, em particular também aqueles concernentes à música, e as cruciais transformações políticas e os violentos conflitos que atingiram Timor determinaram uma situação fundamentalmente modificada para a atuação do Pe. Jorge Barros Duarte.

Como para outros religiosos em situação comparável de sua geração em outras partes o mundo - também no Brasil - a dedicação à cultura popular foi uma das possibilidades encontradas para a criação de pontes entre ideais do passado e as tendências do presente.

Se no passado o movimento orfeônico com as suas tendências patriótico-nacionalistas tinham levado a um interesse pelo folclore em várias regiões do mundo, as correntes pós-conciliares, procurando caminhos para uma maior participação do povo nas celebrações, redirigiu os olhares à cultura popular, em particular à música. Estabeleceram-se assim pontes entre o passado e o presente, e pesquisas há muito realizadas foram retomadas sob outro signo, passando religiosos a se destacarem como pesquisadores.

No Brasil, a interação de ideais pós-conciliares e a tradição da pesquisa de folclore levou a que esses pesquisadores se dedicassem primordialmente a uma „folc-música“ e não às culturas musicais indígenas, o que significou em muitos casos uma revitalização de correntes estéticas do nacionalismo musical que parecia estar superado. No caso do Timor-Leste representado por Jorge Barros Duarte, o desenvolvimento parecia ter outras características, pois o seu nome destacou-se antes através de pesquisas de cunho mais propriamente etnológico e científico-religioso.

A pesquisa da cultura e da reiigião dos Ataúros e a expansão evangélica

A maior obra do Pe. Jorge Barros Duarte foi terminada em Lisboa, em 1979, mas publicada apenas em 1984. Constituiu a principal fonte para os estudos relativos a Timor-Leste no Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa, fundado em 1985.

A publicação baseou-se nos seus estudos sobre os moradores da ilha Ataúro, uma ilha montanhosa situada ao norte de Dili. No período colonial, Ataúro era um posto administrativo de Dili, com sede na vila de Mumeta. Era uma região relativamente isolada, sendo a ligação com Timor possibilitada por um avião Dove (Veja), por navio, barcaças ou barcos à vela. Como constatada pelo pesquisador, tratava-se de uma vida e uma cultura fundamentalmente determinada pelo mar.

Desde fins de 1959 dedicara-se à coleta de dados sobre a religião dos ataúros, anotando-os e gravando-os. Segundo as suas palavras, o seu estado sacerdotal representou um empecilho para as pesquisas. Os habitantes, então ainda não-cristãos, não se dispunham a fornecer dados sobre certos aspectos de suas concepções e práticas.

No decorrer dos anos seguintes, Jorge Barros Duarte vivenciou uma profunda transformação religioso-cultural desse grupo populacional devido à expansão protestante.

Embora já em 1949 ali existisse uma dependência missionária católica, com catequistas, em fins dos anos 60, Ataúro contava com pouco mais de 1000 católicos e ca. de 2000 protestantes.

Esse desenvolvimento não deixava de ter conotações político-culturais, uma vez que teria sido desencadeado por atividades missionárias vindas da Indonésia.

A divisão confessional do Cristianismo ocidental ressoou no mundo colonial dessa parte do mundo, uma vez que, diferentemente das regiões marcadas pelo Catolicismo dos portugueses, a antiga Batávia holandesa fomentara movimentos de reforma.

A expansão evangélica e sincretismo - observações de interesse para o Brasil

A expansão do Protestantismo ter-se-ia dado segundo Jorge Barros Duarte sobretudo por via de pregadores populares, o que favorecera o surgimento de formas de culto que misturavam elementos ocidentais - sobretudo de batistas - e de tradições populares pré-cristãs, liderados por „gurus“ ou pastores. Esse desenvolvimento de cunho popular teria sido posteriormente apoiado pela comunidade protestante de Dili.

As observações de J. Barros Duarte trazia à tona que a expansão de igrejas evangélicas e a ação de seus pastores, em geral sem formação teológica mais profunda, não impedia a continuidade de concepções e expressões sincretísticas. Estas possuiam um longo desenvolvimento histórico, podendo-se distinguir no passado duas fases: uma, aquela de início, quando os batismos de líderes e suas famílias levavam ao batismo de seus subalternos, e outra mais recente, aquela marcada pela atividade de „gurus“ ou pastores sem formação mais profunda.

A manutenção de práticas tradicionais, em particular por ocasião de mortes, é já registrada em fontes da história missionária do século XVII. Uma outra fase foi aquela a que se seguiu à expulsão dos missionários no século XIX, quando o vácuo então surgido levou a desenvolvimentos expontâneos da religiosidade e da prática popular. A expansão protestante no século XX representaria uma nova fase numa história religiosa popular de cunho heterodoxo ou de harmonização de concepções e imagens.

Nas discussões que então se encetaram, considerou-se a necessidade de estudos mais pormenorizados desse processo, também no Brasil, uma vez que a expansão evangélica significava também um maior pêso ao texto bíblico em detrimento a uma cultura antes de cunho imagológico e, assim, novos acentos interpretativos ou na justificativa de práticas.

A música em ritos e mitos ataúros em relações com a pesquisa brasileira

O interesse do Pe. Barros Duarte foi sobretudo o de reconstruir o edifício de concepções e práticas nativas. Para isso, baseou-se em mitos transmitidos oralmente e práticas rituais observaas, oferecendo vários cantos gravados e anotados, entre êles do rito de É-Bua e do rito de Báku-Mau e Lêbu-Hmôru.

A sua obra adquire assim, particular interesse etnomusicológico, tendo sido especialmente considerada neste sentido.

No exmplo do É-Bua, o autor registra similaridades com a ladainha católica, fato discutido em encontros na seção de Etnomusicologia. Com base em ladainhas recolhidas no Brasil, a consideração dessa prática tinha constituido importante centro de atenções. (A.A.Bispo, „Zur Geschichte der Litanei in Brasilien: 1830/1930“, Musices Aptatio 1982, Roma: Typis Polyglottis Vaticanis 61-74)

Nas reflexões, lembrou-se do significado da prática das Ladainhas no Oriente, em particular também no Timor-Leste, devido ao fomento da prática do Rosário e do culto mariano pelos Dominicanos. Se já no distante passado tem-se notícia de desenvolvimentos da religiosidade popular nos quais interagiam expressões de diferentes proveniências, então tudo fazia supor que o princípio litânico também tivesse tido repercussão em práticas de execução popular.

Vários aspectos registrados por Barros Duarte pareciam evidenciar que o por êle observado não poderia ser analisado sem a consideração de complexos processos culturais.

No canto do rito É-Bua, tratava-se da „Avó Rita“, que nunca era invocada pelo seu nome. Tanto esse fato como invocações que o autor considera como de sentidos nebulosos parecia fornecer indícios para considerá-lo como expressão sincrética comparável com práticas brasileiras. Já o termo em português e o nome Rita sugeriam possibilidades de considerações mais diferenciadas, lembrando-se, entre outros, da popularidade do culto de Santa Rita - a „dos Impossíveis“ - em Macau.

O canto noturno de Báku-Mau e Lêbu-Hmôru tratado por Barros Duarte é descrito como entoado pelos mata-blolos sentados numa esteira ao lado de estátuas das duas divindades. A seu som, o povo dançava e repetia uma aclamação constituida de exclamações interjeccionais. (op.cit. 149).

O autor reconheceu aqui que sob um aparente ilogismo e falta de nexo ocultava-se um pensamento mitológico definido e um código tradicional mantido com religiosa fidelidade através de gerações. (op.cit. 155)

A cooperação de Simão Barreto - pesquisa e música prática

Na transcrição dos cantos gravados, o autor contou com a colaboração do compositor, instrumentista e professor Simão Barreto (*1940). Nascido em Timor-Leste, tendo estudado quando jovem em Macau, estudou composição em Lisboa como bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian. Tornou-se uma das mais destacadas personalidades da vida musical de Macau, cujo conservatório dirigiu entre 1986 e 2005.

Nas décadas que se seguiram, Simão Barreto experimentou um reconhecimento internacional ainda pouco suspeitado nos anos de 1970 nos estudos etnomusicológicos. Recentemente, em 2015, esse compositor e professor lançou, na Galeria da Fundação Rui Cunha, dois CD‘s - Canções Populares Timorenses e Música e Poesia, assim como cinco volumes da obra Música Coral, parte do conjunto de obras editadas sob o patrocínio do Govêrno de Timor Leste. O CD Canções Populares Timorenses apresenta cantos tradicionais harmonizados que, em notas, são comentados pelo compositor português Eurico Carrapatoso. O CD Música e Poesia contém composições do próprio Simão Barreto sobre textos de autores portugueses.

A obra Música Coral, em vários volumes, apresenta cantos timorenses harmonizados por Simão Barreto e prefácio de Alexandre Delgado. O segundo volume contém significativamente composições religiosas em latim, com prefácio de Antonio Leitão, o que revela os elos do músico com a tradição sacro-musical. O terceiro volume é dedicado à música sobre poemas de poetas de renome, com prefácio e António Vitorino de Almeida. O quarto volume contém harmonizações de música portuguesa e World Music, com prefácio e António Jorge Marques. O quinto, contém harmonizações de fados de Coimbra, com prefácio de Augusto Mesquita, regente da Tuna dos Antigos Tunos da Universidade de Coimbra.




Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.). „Ataúro em Maria Laach e o Brasil- Timor-Leste nos estudos músico-culturais
sob o impacto de desenvolvimentos pós-conciliares e político-culturais - Pe. Jorge Barros Duarte (1912-1995): da música sacra segundo o Motu Proprio (1903) e do movimento orfeônico à Etnomusicologia“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 168/9 (2017:4).http://revista.brasil-europa.eu/168/Jorge_Barros_Duarte.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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