Amparo Carvas: Música na Univ.de Coimbra
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 168

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 168/15 (2017:4)



Resenha

Da Música na Universidade de Coimbra (1537-2007)
Das Artes Liberais aos Estudos Artísticos
por Maria do Amparo Carvas Monteiro


 
Os estudos musicológicos referentes a Portugal foram recentemente enriquecidos com uma fundamental publicação publicada em Coimbra e que é também de alto significado para o Brasil: Da Música na Universidade de Coimbra. Das Artes Liberais aos Estudos Artísticos de Maria do Amparo Carvas Monteiro (Coimbra: CIEC - Centro Interuniversitario de Estudos Camonianos, 2015, ISBN: 978-989-8660-10-7, 675 págs., ils.).

A autora é conhecida dos pesquisadores brasileiros pelas suas publicações, participações e conferências em diversas ocasiões e eventos do Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e da Akademie Brasil-Europa, entre outros no Congresso Internacional „Música e Visões“ pelos 500 anos do Brasil (1999) e no Colóquio Internacional de Estudos Interculturais pelos 450 anos da fundação de São Paulo (2004).

A publicação representa substancialmente a sua tese de Doutoramento em Letras, na área de Ciências Musicais, mais precisamente de Ciências Musicais Históricas realizada sob a orientação dos professores Gerhard Doderer e Sebastião Tavares de Pinho. Apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em 2002, a tese foi defendida em 2003. O texto passou por atualizações até 2007. Da sua versão original, foram retiradas notas e anexos que perfaziam o segundo volume da tese.

As dimensões, a profusão de dados inéditos, a precisão no exame das fontes, a profundidade na sua consideração e o alto grau de reflexão que se revela nas interpretações e comentários fazem com que essa publicação se torne exemplar sob diferentes aspectos. Ela dá testemunho de uma qualidade científica e de uma seriedade na pesquisa especializada que surge hoje quase que singular em muitos centros universitários que conferem graus de doutorado, inclusive de institutos da Alemanha.

A motivação para a realização do trabalho partiu de pesquisas da autora sobre plásticas nas caixas de órgãos barrocos portugueses em 1995, no âmbito das quais considerou com especial atenção o órgão da capela de S. Miguel da Universidade de Coimbra. Foi esse instrumento e o próprio espaço em que se encontra que a levaram a reconhecer a necessidade de estudos mais pormenorizados sobre os estreitos laços entre a música, o seu ensino e a Universidade de Coimbra. Compreende-se, assim, que o órgão dessa capela não só tenha sido escolhido para ilustrar a capa da publicação, como tenha sido alvo de extenso estudo num de seus capítulos.

Aproximando-se da tarefa sob o aspecto cronológico com a finalidade de reconhecer linhas de desenvolvimento, a autora sentiu-se compelida a delimitar a área de estudos, concentrando-se a alguns aspectos de um amplo e diversificado complexo temático que visualizou. Propôs-se, assim, demonstrar que a música, como cadeira, esteve presente na Universidade de Coimbra desde a reforma de Dom João III até o início do século XX, uma continuidade que foi retomada no fim da segunda década desse século com uma cadeira de História da Música e, posteriormente, com cursos em Ciências Musicais.

Para além de exaustivo estudo da literatura especializada, a autora levantou e considerou grande número de fontes manuscritas. Para isso, realizou consultas não só em acervos do Arquivo, da Biblioteca Geral e da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, mas também em várias outras instituições de Portugal e do Exterior, entre elas também da Biblioteca Nacional e do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro.

Após oferecer índice de abreviaturas, de siglas do Répertoire des Sources Musicales (RISM) e mencionar normas de transcrição, a obra é aberta com prefácios dos professores Gerhard Doderer e Manuel Augusto Rodrigues. Seguem-se Introdução e cinco capítulos: Capítulo I: Da Música nas Artes Liberais. O Quadrivium na Universidade Portuguesa Medieval; Capítulo II: Da Música e da Reforma Universitária de D. João III; Capítulo III: Da Real Capela da Universidade; Capítulo IV: Da Cadeira de Música (1544-1918) e dos seus Lentes; Capítulo V: a Cadeira de História da Música (1919-2007) e seus Docentes; A Universidade de Coimbra e as Ciências Musicais e Considerações finais. Por fim, apresentam-se Referências Bibliográficas e o Índice.

Embora focalizando primordialmente desenvolvimentos a partir da reforma de Dom João III, a autora aborda também aspectos de desenvolvimentos anteriores, remontantes à instituição do Estudo Geral. Como toda reforma deve ser compreendida a partir de situações existentes e precedentes, Carvas Monteiro traça um quadro geral da música nas universidades de Portugal e de Salamanca na Idade Média. Nesse capítulo, após considerações gerais sobre a música nas Artes Liberais e sobre o Quadrivium, trata das artes nas universidades hispânicas dos séculos XIII ao XV.

No segundo capítulo, a autora estuda especificamente a reforma de Dom João III, considerando os seus objetivos, a transferência da universidade e sua vinculacão com o Mosteiro de Santa Cruz, a criação de colégios e as estruturas locais. Em seis tópicos, considera os antecedentes e as aspirações reformadoras; a transferência definitiva da Universidade em 1537; aspectos da estrutura urbana e social quinhentista em Coimbra; os Colégios Universitários; o Real Colégio as Artes e aspectos da estrutura universitária no século XVI, mencionando uma modernidade de Coimbra como urbe.

O terceiro capítulo é dedicado ao estudo da música na Capela de S. Miguel e seus elos com a cadeira de música da universidade, um complexo temático que, como mencionado, constituiu ponto de partida e foco de particular atenção das pesquisas da autora. Esse capítulo constitui já por si uma obra completa pela quantidade de dados oferecidos, pela acuidade de exame das fontes históricas e suas considerações. Aprofundando os seus estudos de órgãos historicos, dedica-se em particular à questão da data de construção do atual instrumento e dos profissionais nela envolvidos. Em oito ítens, com vários sub-ítens, trata da Real Capela da Universidade, dos Estatutos de 1559 aos Estatutos de 1653; da Capela no século XVIII e os Estatutos de 1772; da Real Capela da Universidade no século XIX; Da Capela da Universidade no século XX; dos órgãos da Capela da Universidades dos séculos XVI ao XVIII e, por fim, ponto alto de sua especialização, o tópico dedicado ao órgão setecentista da Universidade e seus artífices. Neste, a autora considera o estado da arte, os artífices do órgão e da sua caixa, o organeiro, a construção e colocação do instrumento, a pintura, douramento e charão da caixa do órgão, afinações de 1738 e e 1745, sua identidade confrontada com outras hipóteses e opiniões, restauros e outras afinações, assim como oferece a ficha técnica do instrumento.

Esse capítulo, indispensável como outros para estudos histórico-musicais também referentes mais especificamente ao Brasil, desperta sob este aspecto um desideratum para o futuro, o da consideração do período em que a Corte portuguesa esteve transferida para o Rio de Janeiro, uma vez que o tratamento da Real Capela da Universidade no século XIX parte de 1832.

O capítulo IV - Da Cadeira de Música (1544-1918) e dos seus Lentes - pode ser considerado como um dos mais valiosos da obra por tratar ou mesmo revelar grande número de personalidades, comentando-as na sua sequência histórica. Como a própria autora salienta, até o início do século XX conhecia-se apenas 16 dos 33 lentes de música da Universidade de Coimbra. O seu principal escopo foi o de revelar a corrente histórica de transmissão de conhecimentos da cadeira através da sucessão e seus lentes, o que tinha apresentado na sua sequência cronológica de forma pioneira em 2002. Após considerações gerais sobre a cadeira de música, a autora apresenta os lentes dessa cadeira desde Mateus de Aranda (1544-1548). Seguindo a Aranda, a autora considera Pedro Trigueiros (1548-1549), Baltazar Teles (1549-1552); Afonso Perea de Bernal (primeira terça de 1549-1550); António de Bivar (c. 1550/1552); Ambrósio de Pino (possivelmente de 15.10.1552 a 1.02.1553); António de Bivar (10.02.1553-28/29.04.1553; 15.06.1553); Afonso Perea de Bernal (15.06.1553-31.07.1553; 1.10.1553-1593); António Francisco (14.10.1593 a 31.05.1594; 2 a 20.12.1594); Pedro Correa de Andrada (01.06.1594-1610); Germão Luís e outros (03.02.1597-13.05.1597); Pero Correa; João Gomes (11.05.1610 - 2° terça de 1612-1613); Frei Simão dos Anjos de Gouveia (opositor ao cargo de lente); Pedro Thalesio (19.01.1613-1629); Sebastião Casco (1° terça 1629-1630); Frei António Francisco Camelo (1630-1636); Frei António Jesus (27.11.1636-1682); Pe. António Sebastião (1° terca de 1637-1638); Frei António de Jesus; Frei Nuno da Conceição (1679/1680-1737); Pe. Manuel Cardoso (1709-1710); Pe. António Duarte (1737-1.03.1737); Frei Francisco a Conceição (1.03-1737-1748?); António Pedro de Mello (1° terça de 1748-1749); Pe. António Carrilho de Matos (2° terça de 1748-1749); António Pedro de Mello (1748/1749 a 1771); António José Contreiras (23.11.1752-1755/56?); Frei Francisco José de Almeida Leitão e Vasconcelos (1771-1788); Pe. Manuel José Ferreira (1783-1802); José Maurício (1802-1815); D. Francisco de Paula e Azevedo (1815-1837); Francisco Xavier Chipe Migone (6.04.1832 - principio 1835); António Florêncio Sarmento (30.07.1838 a 25.10.1864); Transferência da cadeira de Música para o Lyceu de Coimbra (1850); Francisco Lopes Lima de Macedo (29.11.1871 - 1° terça 1875); Eduardo d‘Oliveira Lopes de Macedo (29.11.1871 - 1° terça 1875); José Diogo Arroyo (18.12.1875 - 3° terça de 1880); Regresso da cadeira de Música à Universidade (1880); António Simões de Carvalho Barbas (23.11.1881 - 28.03.1916) e Francisco Lopes Lima de Macedo (23.10.1912 a 1918?).

O capítulo quinto é dedicado ao exame do contexto e de normas que levaram à instituição da área da História da Música a partir de 1919/1920 e que perdurou até 2007. A essa cadeira remontariam, segundo a perspectiva da autora, impulsos para a constituição das Ciências Musicais no país e da inserção da música no âmbito da Licenciatura em Estudos Artísticos.

Em três tópicos, subdivididos em muitos ítens, a autora considera aspectos da cadeira de História da Música e Canto Coral, dos docentes respectivos e da universidade de Coimbra e as Ciências Musicais. Destaca-se, no tratamento dos docentes de História da Música, os ítens dedicados a Elias Luiz de Aguiar (1919-1936).Em textos que constituiriam já por si uma obra merecedora de publicação à parte, este ítem do trabalho é de grande interesse também para estudos mais especificamente relacionados com o Brasil pelas considerações da autora a respeito do Canto Coral e da tradição orfeônica de Coimbra. O Orfeon Académico e a Tuna Acadêmica de Coimbra aqui considerados ocupam não só posições de central relêvo nos estudos do movimento orfeônico português como também nas suas repercussões nos então territórios coloniais e no Brasil, em particular aqui em círculos da imigração portuguesa.

Ainda nesse capítulo, a autora constrói uma ousada ponte entre esses desenvolvimentos e o ensino das Ciências Musicais através da criação do Mestrado e do Doutoramento, da cadeira opcional de História da Música Portuguesa e posteriormente, da Licenciatura em Estudos Artísticos. Mesmo focalizando desenvolvimentos a partir do seu posicionamento em contexto local e assim correndo o risco de conceder importância em dimensões nacionais a fatos e decorrências antes de limitado significado, não deixa de considerar corretamente a instituição das Ciências Musicais na Universidade Nova de Lisboa, mencionando o papel fundamental desempenhado pela Profa. Dra. Maria Augusta Alves Barbosa, também na criação da licenciatura em Ciências Musicais.

Nas suas considerações finais, a autora cita surpreendentemente uma conceituação de cultura de um autor brasileiro: Darcy Ribeiro, formulada em Os brasileiros: 1. Teoria do Brasil - formações econômico-sociais, configurações histórico-sociais, ordenações políticas, alienação cultural (Rio de Janeiro, 1985). A partir dela, considera o debate sobre a preservação de acervos documentais e a relação entre documentação e pesquisa histórica. Através do seu trabalho, procurou dar visibilidade à conservação de acervos sobre a historia da Universidade de Coimbra.

Da forma ainda mais pertinente, a autora apresenta uma crítica a desenvolvimentos atuais, particularmente aqueles relacionados com a reforma de Bolonha: „ A organização do ensino superior e o seu ethos foram moldados segundo um modelo de conhecimento e, acontece que, ao longo de mais de uma década, se deram transformacões que desestabilizaram não apenas este modelo de conhecimento mas apontaram também para a emergência de um outro, interpelando a hegemonia e a legitimidade institucional actual, na medida em que a força a avaliar-se por critérios discrepantes entre si, criando uma fractura na identidade social e cultural“. (pág. 617)

A autora exprime, por fim, o seu voto de que seja instituída uma licenciatura específica na área das Ciências Musicais na Universidade de Coimbra. Esta poderia interagir com outras licenciaturas ou áreas do conhecimento. Como lembra, a Universidade de Coimbra não possui, na atualidade, ciclos superiores em Ciências Musicais, sendo esta área científica tratada de forma „diluída“ em licenciatura, mestrado e doutoramento em Estudos Artísticos; paralelamente, há, em outra instituição, licenciatura e mestrado em música. Seria, assim, desejável que a área científica no sentido próprio do termo estivesse representada na Universidade.

Esse voto da autora, de fundamental importância também sob a perspectiva brasileira, merece ser considerado à luz de uma  colocação que precede a introdução do seu trabalho. Mencionando Ferdinand Braudel, diz que a história, sempre um questionamento em mudança, não é um fim em si, mas sim meio de conhecimento do homem. É na procura desse conhecimento do homem que poder-se-ia examinar e questionar concepções fundamentais que marcaram todo um desenvolvimento iniciado com a reforma de Dom João III, as suas relações no decorrer dos séculos com situações de poder, com instituições e processos eclesiásticos e políticos - como aqueles restaurativos, ultra-conservadores, reacionários e os da época autoritária -, e, sobretudo, colocar em questão uma tradição e práticas institucionalizadas universitáriamente que sob muitos aspectos deveriam pertencer a um passado encerrado. Sob a perspectiva do conhecimento do homem, cumpriria questionar os problemas decorrentes de uma tradição universitária que glorifica de forma excessiva „proprietários“ de cadeiras, o que tão expressivamente pode ser reconhecido nos desenvolvimentos estudados pela autora.

A publicação evidencia extraordinária diligência e erudição, sendo modelar como trabalho acadêmico, superior em acuidade a muitas dissertações inaugurais apresentadas em institutos musicológicos de universidades européias. Fornece subsídios em profusão para o prosseguimento dos estudos sob a perspectiva mais ampla dos processos culturais e de reflexões críticas reorientadoras de desenvolvimentos, uma tarefa para a qual Maria do Amparo Carvas Monteiro recomenda-se de forma especial com o seu excepcional conhecimento de fontes.

Antonio Alexandre Bispo



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.(Res.). „Da Música na Universidade de Coimbra (1537-2007). Das Artes Liberais aos Estudos Artísticos“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 168/15 (2017:4).http://revista.brasil-europa.eu/168/Musica_na_Universidade_de_Coimbra.html


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