Tannhäuser, Salvator Rosa e Momo Precoce
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 169

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Baden-Baden. Foto A.A.Bispo 2016. Copyright

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Baden Baden. Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.

 


N° 169/10 (2017:5)



Tannhäuser, Salvator Rosa e Momo Precoce
conotações emblemáticas na despedida de Villa-Lobos de São Paulo (1931)
em concerto da
Banda da Força Pública sob J. Antão Fernandes (1864-1949),
com a participação de orfeões escolares e coros de imigrantes

Reflexões de outono na Alemanha pelos 30 anos do falecimento de Rossini Tavares de Lima (1915-1987) no ano
Primeiro Congresso Brasileiro de Musicologia pelo centenário de Villa-Lobos (1887-1959)


 

No âmbito do ciclo „reflexões de outono“ levado a efeito em 2017 em cidades da Alemanha e da Áustria, recordou-se o falecimento, há 30 anos, de um dos mais relevantes pesquisadores do Brasil que marcaram de forma significativa o desenvolvimento do pensamento nos estudos euro-brasileiros da segunda metade do século XX: Rossini Tavares de Lima (1915-1987), presidente da Associação Brasileira de Folclore e mentor do Museu de Folclore e da sua escola em São Paulo.

O seu falecimento deu-se no mesmo ano em que se realizou o Primeiro Congresso Brasileiro de Musicologia motivado pelo centenário e Heitor Villa-Lobos, compositor por êle particularmente admirado e estudado. Essa coincidência permite que a sua memória seja focalizada sobretudo à luz desse evento e dos estudos voltados a Villa-Lobos.

Os trabalhos preparativos à realização do congresso, em 1987, foram acompanhados por intensas trocas de idéias em encontros pessoais e por correspondência de R. Tavares de Lima com o editor. Esse diálogo foi em grande parte decisivo para a realização do congresso e merece ser recordado em alguns aspectos pela atualidade de muitas das questões tratadas.

Entre elas, cumpre salientar a exigência de Rossini Tavares de Lima de que fosse a perspectiva mais ampla da pesquisa da cultura a determinadora do tratamento de questões musicais. Essa orientação marcou o escopo desse primeiro congresso e a consideração de Villa-Lobos no seu centenário na Europa e no Brasil.

Orientação científico-cultural dos estudos relativos à música

Essa prioridade à ciência da cultura - compreendida por êle mais especificamente sob a sua conceituação de „cultura espontânea“ - manifestou-se na sua exigência de que a sessão do evento relativa a temas pertinentes à pesquisa da área fosse realizada não em instituto de música, mas sim no próprio Museu de Folclore.

Com isso, deixava claro que via não a musicologia, mas sim os estudos culturais - no sentido de sua conceituação de cultura não dirigida - como ciência condutora das reflexões.

Esse posicionamento não era recente, tendo determinado as reflexões que, no âmbito do movimento de renovação teórico-cultural através da análise de processos de meados da década de 1960, levara à criação do Centro de Pesquisas em Musicologia em S. Paulo.

Rossini Tavares de Lima, como representante do órgão estadual responsável pela inspeção de instituições de música e artes, participou estreitamente não só na orientação de cursos de Folclore como disciplina prescrita pela legislação, como também na introdução pioneira da História da Música no Brasil como unidade específica que perfazia um dos três anos da disciplina História da Música.

Dentre os muitos aspectos então tratados sob a perspectiva do estudo de processos culturais e à luz do posicionamento de Rossini Tavares de Lima concernente à prioridade desses estudos no tratamento de questões musicais, aqueles referentes a H. Villa--Lobos mereceram ser especialmente relebrados por ocasião do congresso que se realizava no centenário do compositor.

Villa-Lobos em São Paulo na sua vida e no seu centenário

Tendo lugar em São Paulo, parecia a Rossini Tavares de Lima que o significado de São Paulo na vida, na criação e sobretudo nas ações político-culturais educativas de Villa-Lobos não poderia ser reduzido a referências históricas mais ou menos breves quanto à sua participação na Semana de Arte Moderna de 1922 ou às suas atividades nos anos que se seguiram a seu retorno da Europa e que foram decisivos para os seus desenvolvimentos posteriores.

Também o fato de ter sido apoiado pelo interventor João Alberto (1897-1955) mereceria ser considerado com muito maior atenção pelo seu significado na análise de contextos e processos político-culturais nos quais se inscreveu e que surgem como de fundamental relevância para a compreensão das atividades que, a seguir, se desenvolveram a partir da então capital do Brasil.

O estudo dessa presença de Villa-Lobos em época política de tanta brisância para São Paulo - em anos que antecederam a Revolução de 1932 - não deveria limitar-se à constatação suscinta de fatos e sua análise no sentido historiográfico convencional, mas sim também ser conduzido em sensibilidade favorável à percepção de desenvolvimentos mentais e psicológicos, de auto-conscientização e identificação cultural paulistas e paulistanos.

Nessa aproximação, procedimentos inter-disciplinares surgem como indispensáveis e neles se incluem aqueles que, segundo Rossini Tavares de Lima, voltar-se-iam a expressões decorrentes de processos espontâneos ou não-dirigidos na cultura.

Villa-Lobos em São Paulo em época de desenvolvimento de estudos regionais

Não se poderia esquecer, segundo êle, que a época da presença de Villa-Lobos em São Paulo foi marcada por crescente interesse por tradições e pelo folclore, em particular também no interior do Estado, bastando lembrar personalidades como Amadeu Amaral (1875-1929), nascido em Capivari, e de Cornélio Pires (1884-1958), de Tietê.

Já a lembrança desses nomes traz à consciência às relações entre o desenvolvimento da área de estudos respectiva com processos culturais de regiões interioranas, de tomada de consciência de características culturais identificadoras de cidades e regiões de mais antiga fundação em época de intensas transformações no interior do Estado, nas quais amplas regiões ainda até então cobertas de florestas passaram a ser devassadas e colonizadas.

Os estudos historiográficos concernentes a Villa-Lobos nas suas relações com São Paulo não podem deixar de considerar essa época de tão grande relevância para o desenvolvimento dos estudos de folclore e sua compreensão como área de estudos em vias de definição e organização.

Partindo da sua própria vida, Rossini Tavares de Lima salientou sempre a atenção que deve ser dada a Itapetininga nos estudos referentes a Villa-Lobos em São Paulo. Expressamente mencionou, em publicações, o papel desempenhado por composições de Villa-Lobos na formação recebida por êle e seus irmãos Modesto e Bellini, assim como o seu pai Mozart Tavares de Lima. Foi sobretudo este último que mais de perto relacionou-se com Heitor Villa-Lobos, com êle cooperou e com o qual criou laços de amizade.

Modesto Tavares de Lima criara a peça teatral „Minha Terra, Minha Gente“, na qual empregou elementos da linguagem musical popular e que tinha - como o título e o seu texto manifestam - claramente intuitos de fomento de sentimentos de amor e orgulho locais e regionais.  Quase que como um testemunho da opinião manifestada por Rossini Tavares de Lima sobre o nacionalismo, este surgia na obra do seu próprio irmão sobretudo como regionalismo, indicando, porém, claramente uma orientação dirigida à realidade envolvente, à terra e à gente.

O movimento orfeônico paulista, representado exemplarmente no orfeão de Itapetininga mereceria ser estudado de forma mais diferenciada nas suas relações com o movimento orfeônico praticado e promovido por Heitor Villa-Lobos, uma vez que não foi decorrência ou recepção deste.

Arquivo A.B.E. Copyright
O Concerto Villa-Lobos de despedida no dia 21 de outubro de 1931

Entre as muitas atividades de Villa-Lobos em São Paulo, uma delas mereceria ser relembrada por ocasião do seu centenário, uma vez que este era comemorado em São Paulo: o „Concerto Villa-Lobos“ por ocasião de sua despedida de São Paulo, realizado no Teatro Municipal no dia 21 de outubro de 1931.

Essa despedida dava-se poucos meses após a saída de João Alberto como interventor do Estado. O concerto assumiu proporções apenas possíveis devido ao apoio de instâncias governamentais e militares. Assim, o comandante da Força Pública de São Paulo colocou à disposição a banda da corporação, regida pelo Capitão Antão Fernandes, a mais representativa e influente personalidade da música de banda militar da história paulista.

O evento assumiu características apoteóticas, reunindo 500 executantes e anunciado como o mais original concerto realizado até então na capital. A sua concretização apenas tornou-se possível com a cooperação de J. de Souza Lima (1898-1982) como pianista e dos regentes de coros então reunidos: Samuel Archanjo dos Santos, Fabiano Lozano, João Baptista Julião, Mozart Tavares de Lima, Levy Costa, L. Tabarin, Martin Braunwieser e Domingos Mignone.

Esses regentes representavam os orfeões paulistas - expressamente assim designados - a saber, aqueles do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, do Instituto Pedagógico, da Escola Normal do Braz e Escolas Complementares, da Sociedade  de Arte Lirica, além de cantores de sociedades corais particulares.

Sobre a programática do concerto de despedida de Villa-Lobos de São Paulo

O conteúdo do programa surge como de relevância para o estudo desse concerto nas suas inscrições nos processos político-culturais da época.  O importante papel exercido por Antão Fernandes como influente personalidade em círculos oficiais na consecução desse evento nnao poe deixar de ser salientado.

Cada uma de suas partes foi aberta com a apresentação da banda sob a sua regência, seguindo-se a ela obras de Villa-Lobos por êle mesmo regidas. Villa-Lobos apresenta-se assim em singular proximidade, se não mesmo inserção na tradição cívico-patriótica da música para banda militar.

É significativo que Villa-Lobos tenha escrito especialmente para essa banda e para esse concerto uma versão para piano e banda do seu Momo precoce, fantasia composta no fim de sua estada em Paris e interpretada por J. de Souza Lima, pianista que estudara e atuara também em Paris e que era profundamente marcado pela cultura francesa.

Essa participação surge como a mais evidente manifestação dos estreitos laços entre esse pianista e Villa-Lobos, coroando a sua cooperação com iniciativas do compositor em São Paulo, o que é compreensível pelos elos de ambos os músicos com Paris, centro musical onde alcançaram os seus êxitos.

Dividido em três partes, o concerto foi aberto com a sinfonia de Tannhäuser de Richard Wagner, executada pela bana sob a regência de Antão Fernandes. Se a segunda parte foi tomada pelo Momo precóce, a terceira foi aberta com a sinfonia de Salvator Rosa, de A. Carlos Gomes (1836-1896).

Seguindo-se às apresentações instrumentais da banda, Villa-Lobos regeu obras suas para coro. Apresentou Cantiga de Roda para coro feminino acompanhado pela banda e Preces sem Palavras para coro mixo a cappella na primeira parte e, na terceira, Na Bahia tem... para coro masculino a cappella e, terminando, Pr‘a frente ó Brasil, para coro mixto.

É digno de atenção o fato de ter sido uma obra de Richard Wagner aquela escolhida para a abertura so concerto de despedida de Villa-Lobos de São Paulo. Essa escolha e de Salvator Rosa abrindo as partes que envolviam a execução de Momo precoce surgem como obras sugestivas simbolicamente, aptas a análises do ideário que levou à configuração do concerto. Com elas, o evento transcorreu em atmosfera e estado de espírito ainda marcado pelo romantismo.

A presença de Wagner não reflete um significado desse compositor na colonia austríaco-alemã de São Paulo, mas sim a importância da recepção wagneriana na vida musical francesa.

A sinfonia de Tannhäuser und der Sängerkrieg auf Wartburg, baseada em balada tradicional, trazia à mente a figura desse Minnesänger que, a caminho da festa de cantores, encontra-se captado pelo amor sensual e dele procura libertar-se através do amor elevado no campo de tensões Venus/Maria e é a força do amor divino que por fim o redime.

Esta tematização do amor sensual e do amor puro, assim como da redenção através do amor prepara, no programa, a atenção dada à criança na sua singeleza e pureza nas obras de Villa-Lobos. Neste contexto, surge coerente o término da primeira parte com Preces sem Palavras. Esse caminho do amor sensual ao puro parece refletir a mudança de vida do compositor, de um Paris marcado pela intensa vida mundana ao Brasil a serviço de uma dedicação educativa.

A sinfonia de Salvator Rosa, abrindo a terceira parte do programa, traz à lembrança o artista, pintor, poeta e ator napolitano Salvator Rosa (1615-1673), cuja nome tem conotações com a natureza de regiões por ele percorridas, as aventuras passadas com bandidos e paisagens portentosas e representadas dramaticamente nas suas obras. Também aqui parece haver uma relação com a própria vida de Villa-Lobos, que percorrera amplas regiões do Brasil.

São as conotações de Salvator Rosa no tratamento musical dado ao assunto por Carlos Gomes que precede e prepara Na Bahia tem... Esta última parte do programa - assim como as Preces sem Palavras no término da primeira parte - não poderia ter sido realizada sem a participação do coral mixto formado em grande parte pelos componentes do Schubertchor sob a regência de Martin Braunwieser (1901-1991). Significativamente, Villa-Lobos a êle dedicou um exemplor dessa sua obra impressa na França.

Orfeões escolares e associações corais austríaco-alemãs no concerto

Na constituição dos coros, a cooperação dos vários orfeões foi decisiva. Estes, pertencentes a diferentes instituições, sociedades e apesar de marcados por distinções quanto a tradições e orientações de seus regentes, integraram-se no evento, fato possibilitado pelo seu ideário, aglutinador na sua orientação patriótica.

Dentre os regentes que atuaram no concerto, o papel desempenhado pela família Tavares de Lima merece ser lembrado, uma vez que de todos eram os seus membros aqueles que mais se destacavam no interesse por tradições musicais populares e seu uso na composição e no ensino.

Poucas semanas antes do seu concerto de despedida, Villa-Lobos tinha visitado Itapetininga, onde estreitara laços com Modesto Tavares de Lima. A êle ofereceu, no dia 14 de agosto, um exemplar de Cabôca de Caxangá, Embolada do Norte, com texto de Catullo da Paixão Cearense, publicada em Paris (Max Eschig, 1930), com a dedicatória: „Para o Modesto florescer esta canção com o seu mavioso orfeon de Itapetininga e ter lembranças do velho patrício e admirador amigo“


Do texto publicado no programa: Momo precóce

„Momo precóce foi composto em Paris, em 1929. É uma fantasia para piano e orchestra, escripta sobre themas da Suite para piano solo, por sua vez inspiraa no Carnaval das Crianças Brasileiras. A intenção do autor, escrevendo essa Fantasia, onde o piano deve aparecer unicamente como solista, foi traduzir em musica o ambiente alegre e buliçoso criado pelos pequenos fantasiados com as mais berrantes côres.

Não se pode classificar Momo Precóce como um genero já conhecido de música, nem mesmo quanto à forma. É uma suíte de diversas peças interrompidas em certo momento por uma série de cadencias, para o piano, o que lhe dá precisamente o carater de comentarios sinfonicos.
O arranjo que hoje vae ser executado, por Banda e Piano, foi feito especialmente para este concerto.

Numa entrevista que concedeu em França, quano Momo Precóce foi executada pela primeira vez, Villa-Lobos disse como se inspirara para escrever a fantasia:

„Momo é o deus dos gracejadores e foliões carnavalescos do Brail. O carnaval brasileiro é o maior fanatismo nacional. É realmente a festa mais popular do meu paiz, a mais original e típica, sobre tudo no Rio.

E o que causa a mais viva impressão lá, nesses tres dias, é ver a folia das crianças mascaradas, pobres ou ricas, aristocraticas ou burguezas, todas juntas, todas confundidas n‘um unico desejo: divertirem-se á larga, o mais possivel, n‘uma liberdade absoluta.

(...)“



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.“ Tannhäuser, Salvator Rosa e Momo Precoce: conotações emblemáticas na despedida de Villa-Lobos de São Paulo (1931) em concerto a Banda da Força Pública sob J. Antão Fernandes (1864-1949), com a participação de orfeões escolares e coros de imigrantes
.“ Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 169/10 (2017:5).http://revista.brasil-europa.eu/169/Despedida_de_Villa_Lobos_de_SP.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
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