Estudos Culturais e Estética: Villa-Lobos
ed. A.A.Bispo
Revista
BRASIL-EUROPA 169
Correspondência Euro-Brasileira©
Estudos Culturais e Estética: Villa-Lobos
ed. A.A.Bispo
Revista
BRASIL-EUROPA 169
Correspondência Euro-Brasileira©
Palácio Linderhof. Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.
N° 169/9 (2017:5)
Estética e Estudos Culturais na literatura sobre Villa-Lobos
- a questão do „particular ao geral“-
Marcel Beaufils (1899-1985) nas suas relações com Rossini Tavares de Lima (1915-1987)
Reflexões de outono no Linderhof, Baviera:
50 anos da publicação de- Villa-Lobos - Musicien et poète du Brésil. Essai sur un homme et une terre
e pelos 30 anos do falecimento de Rossini Tavares de Lima (1915-1987) no ano
Primeiro Congresso Brasileiro de Musicologia pelo centenário de Villa-Lobos
Essas questões possuem dimensões políticas e impõem-se sobretudo pelo fenômeno de recrudescimento de tendências nacionalistas, povísticas, identitárias, nacionalconservadoras e nacionalsocialistas no presente e que leva a reações, controvérsias, polêmicas e movimentos de oposição, em parte violentos, fomentando discussões e análises.
Atualidade de questões tematizadas no congresso à luz de desenvolvimentos do presente
Na Europa, trata-se sobretudo da diferença entre a conceituação de uma „Europa de nações“ e de uma Europa acusada de tornar-se organização supra-nacional, a „Europa de Bruxelas“. A intendida recuperação de competências nacionais relaciona-se com intuitos de defesa não só da própria cultura como também do Ocidente, da Europa confrontada com imigrações ou mesmo de uma Humanidade marcada pelo Humanismo e Esclarecimento, ou seja, de forma complexa com questões do nacional e do supra-naciona ou internacional, de partes e do todo, do particular e do geral em diferentes sentidos.
O etnopluralismo os „Identitaires“, combatendo o multiculturalismo, parte de uma noção e imagem de pluralidade de culturas como configurações étnico-culturais singulares que, no relacionamento entre os povos, manteriam as suas características.
Manifestando-se essa problemática sobretudo no nacionalismo, povismo ou identitarismo de movimentos políticos, corre-se o risco de redução do significado das questões que se colocam, tratando-as indiferenciadamente como expressões partidárias de direita ou de extrema-direita.
Torna-se assim oportuno recapitular discussões que marcaram o primeiro Congresso Brasileiro e Musicologia, uma vez que este procurou estabelecer um diálogo entre diferentes visões, interpretações e posicionamentos que, por tratar-se de ano celebrativo de Villa Lobos, giraram prioritariamente em torno do nacional, do nacionalismo e do universal.
Dando continuidade, nesse sentido, aos debates do ano precedente de 1986, motivados pelo centenário de morte de Antonio Carlos Gomes (1836-1896), o congresso inseriu-se numa longa corrente de preocupações e reflexões. (Veja)
Revendo Villa Lobos: Refrações e prospecções de Rossini Tavares de Lima
Uma voz que merece particularmente de ser lembrada é a de Rossini Tavares e Lima, então Presidente da Associação Brasileira de Folclore e do Museu de Folclore de São Paulo, instituição que abrigou uma das sessões do evento.
Poucos seriam as personalidades que mais poderiam trazer à consciência a necessidade de uma maior diferenciação quanto a atribuições político-culturais na consideração de Villa Lobos, de problemas concernentes ao nacional na cultura e da valorização da cultura popular do que esse vulto da pesquisa de São Paulo.
Contrariando suposições indiferenciadas de que aqui se tratam de posições nacional-conservadoras, políticas de direita ou mesmo de extrema-direita de autores nacionalistas, Rossini Tavares de Lima, situava-se expressamente em esfera política de esquerda, assumindo atitutes progressistas, de combate e mesmo militância, próximo a posições do socialismo internacional.
Ao mesmo tempo, foi um admirador incondicional de Heitor Villa Lobos, o que pode parecer surpreendente pensando-se no papel desempenhado pelo compositor à época do Estado Novo autoritário no Brasil, paralelo, no tempo, ao nacionalsocialismo alemão, ao fascismo italiano e ao salazarismo português.
Compreender assim o pensamento e a argumentação de Rossini Tavares de Lima é relevante para estudos mais diferenciados da personalidade e da obra de Villa Lobos nas suas inserções político-culturais, assim como da própria pesquisa.
Reconhecer esse edifício de idéias - que hoje nem sempre é fácil de ser compreendido na sua coerência - contribui também para análises mais diferenciadas de fenômenos do presente.
Como admirador e especialista de Villa Lobos, Rossini Tavares de Lima estava presente na lembrança dos congressistas através de um artigo então recentemente republicado na segunda edição do segundo volume do órgão do Museu Villa-Lobos - Fundação Nacional próMemória („Brasil Musical Erudito“, Presença de Villa-Lobos 2, Rio de Janeiro, 1982, 189-198).
A primeira edição, de 1966, com textos apresentados também no programa „Villa-Lobos, sua vida, sua obra“ pela Rádio Ministério da Educação e Cultura, foi publicação que serviu como ponto de partida de discussões quando da fundação do Centro de Pesquisas em Musicologia da sociedade de estudos de processos culturais (ND) fundada em São Paulo, em 1968.
Rossini Tavares de Lima, como inspetor do Estado de cursos que possibilitou a introdução da disciplina „História da Música no Brasil“ no Centro de Pesquisas em Musicologia, lembrava que o texto então discutido e publicado na Presença de Villa-Lobos era apenas parte reproduzida, com modificações, de uma conferência realizada a convite do Secretário de Educação e Cultura da Municipalidade de São Paulo, publicado em 1949 na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo („Villa Lobos: Refrações e Prospecções“, Revista do Arquivo Municipal CLXXV - Ano XXXII, São Paulo, págs. 221-236).
São justamente essas partes excluídas do texto publicado na série do Museu Villa Lobos que melhor apresentam e esclarecem colocações e posições de Rossini Tavares de Lima.
Teria sido a partir das „refrações e prospecções“ ali apresentadas e re-consideradas após décadas que Rossini Tavares de Lima faria um pronunciamento na abertura da sessão do congresso que teve lugar no Museu do Folclore. Lamentavelmente, por adoecimento que levaria à sua morte no mesmo ano, não foi possível que nela participasse, sendo lembrado em palavras de José Geraldo de Souza, Presidente da Sociedade Brasileira de Musicologia; a sessão foi então dirigia por Julieda de Andrade, Niomar de Souza Pereira e outros membros do museu.
Marcel Beaufils (1899-1985) e Rossini Tavares de Lima: Estética e Estudos Culturais
Nele, o professor e pesquisador menciona Marcel Beaufils, Professor de Estética do Conservatório de Paris que, com a intenção de escrever livro sobre Villa Lobos, veio ao Brasil e, procurando-o, ouviu gravações de pesquisas de campo que acabava de realizar, assim como documentos sonoros da Comissão Paulista de Folclore.
Não só teria assim Rossini Tavares de Lima contribuido de forma significativa à pesquisa musical e estética de Beaufils, como teria também este influenciado o pensamento do pesquisador brasileiro, uma vez que ouviu os exemplos musicais considerados à luz de Villa-Lobos. A atenção de ambos não era dirigida primordialmente ao uso de material folclórico pelo compositor, mas antes ao reconhecimento do próprio Villa-Lobos nesses documentos, um intuito hoje que surge como de difícil compreensão.
Teria sido essa interação dos dois estudiosos que levara Rossini Tavares de Lima à convicção de ser Villa-Lobos „o Brasil musical erudito“ - o que pode ser entendido como sendo a erudição que situa, contextualiza, valoriza e dá sentido ao popular documentado.
„Villa Lobos é um Brasil musical erudito, ainda que tendo por fundamento, mas específico e característico, a música popularesca carioca, a roda infantil de vária procedência e o elemento exótico indígena.“ (op.cit. 224)
Musicien et poète du Brésil em cursos de Estética, Etnomusicologia e História da Música
A publicação de Beaufils - Villa-Lobos - Musicien et poète du Brésil. Essai sur un homme et une terre - surgida em 1967, foi comentada por Rossini Tavares de Lima no contexto dos trabalhos do Centro de Pesquisas em Musicologia.
Representando esse relacionamento elos interdisciplinares entre os estudos culturais e a estética, a publicação foi considerada quando da introdução da Estética nos cursos de Licenciatura da Faculdade de Música e Educação Musical e Artística do Instituto Musical de São Paulo em 1972. Essa área filosófica foi então conduzida em orientação científico-cultural, e nesse sentido as concepções resultantes dos encontros entre Beaufils e Tavares de Lima foram consideradas com atenção.
A partir de meados da década de 1970, essas relações entre a Estética e os Estudos Culturais com especial enfoque de Villa Lobos tiveram continuidade em seminários de Estética do Instituto de Musicologia da Faculdade de Filosofia da Universidade de Colonia. Neles considerou-se a obra de Beaufils, também e sobretudo por ter sido esse professor germanista, estudioso de filósofos e da música alemã.
Beaufils interessou-se já à época da guerra pela questão de como a Alemanha tinha-se tornado um país musical com a sua tese defendida em Lyon, em 1942 (Par la musique vers l‘obscur), pensamentis divulgados posteriormente em Comment l‘Allemagne est devenue musicienne, Paris 1983).
Seguindo antiga tradição de interesse francês pela música alemã, em particular por Wagner, escreveu Wagner et le Wagnérisme (Paris, 1947), voltando ao tema em La Philosophie wagnérienne: de Schopenhauer à Nietzsche dans Wagner (Paris, 1962). Do ponto de vista musicológico, a sua obra sobre a música de piano de Schumann manteve-se como texto de referência (La Musique de piano de Schumann, Paris, 1951), assim como o seu estudo sobre a canção alemã romântica (Le lied romantique allemand, Paris, 1956).
Foi sob o pano de fundo do interesse de Beaufils pela música e pela filosofia alemã do romantismo que a sua obra Villa-Lobos - Musicien et poète du Brésil foi estudada em seminários de Estética do Instituto de Musicologia da Faculdade de Filosofia de Colonia.
Reconsiderações de relações franco-alemãs na Baviera: Linderhof, 2017
A obra do professor de Estética de Paris na Alemanha exige uma consideração contextual mais ampla das relações intelectuais entre a França e a Alemanha desde o século XIX, inserindo-o em processos que foram estreitamente vinculados à história política das nações vizinhas.
Sob a perspectiva dos estudos relacionados com o Brasil, essas relações foram e são em geral tratadas prioritariamente no sentido da recepção da Alemanha em Paris nas últimas décadas do século XIX e início do XX, fato compreensível devido ao número de brasileiros que desenvolveram estudos na capital francesa.
Sob diferentes aspectos considerou-se e considera-se neste sentido não só o movimento Bach, como também a recepção de Beethoven, de Wagner e o da música instrumental, sobretudo para piano, como a de Schumann. Beaufils insere-se aqui numa tradição de muitas décadas da recepção alemã na vida musical e na história do pensamento na França, marcada que foi pelo Romantismo e pelas tensões políticas determinadas pelos resultados contrários das guerras de 1871 - com a derrota francesa - e a de 1914-1918 - com a derrota alemã.
Sendo porém os estudos dessas relações franco-alemãs tratado na Alemanha, a atenção dirigiu-se e dirige-se à reciprocidade desse processo receptivo, ou seja, àquele da música e do pensamento francês na Alemanha do século XIX.
Não há local mais sugestivo e significativo para o estudo dessas complexas relações do que o palácio Lynderhof em Ettal, nos Alpes da Baviera Superior. Construído pelo rei Ludwig II (1845-1886) como „villa real“ entre 1870 e 1886, remonta a uma casinha reai de madeira seu pai de 1874, e este a uma casa camponesa de 1790.
Esses elos com a tradição da vida camponesa e de caça, ou seja, com a natureza e a terra, é apenas um dos fatores que fazem desse pequeno palácio um documento do Romantismo do século do Historismo no pensamento e nas artes. Vem de encontro, neste sentido, ao interesse pela vida do campo do passado nas suas relações com a natureza que se manifestou na pesquisa cultural de mitos e tradições orais desse século de origem da área disciplinar dos estudos culturais que posteriormente passaram a ser denominados de estudos do Folclore.
A complexidade multidimensional dessas relações, porém, manifesta-se no fato de ter sido o palácio construído segundo o modelo de Versailles e refletir o interesse e o fascínio de Luís II tanto pelo universo mítico de Richard Wagner, o seu protegido, assim como pelo passado político-cultural francês da época do Absolutismo. Significativamente, no saguão de entrada do Linderhof encontra-se uma estátua equestre de Luís XIV (1638-1715), o „rei sol“, como explicitamente representado em imagem dourada no teto com o dístico „Noc Pluribus Impar“ e que corresponde à auto-consciência manifestada na expressão „L‘État c‘est moi“, o que levou à denominação inicial do projeto de „Meicost-Ettal“.
Apesar da perplexidade que causam essas múltiplas referências, esse refúgio de Luís II abre caminhos para estudos da complexidade do pensamento romântico do século do fascínio pelo passado e pela terra nas suas dimensões político-culturais. A sua consideração a partir da Alemanha abre assim novas perspectivas nos estudos da recepção da música e do pensamento alemão na França em fins do século XIX e início do XX, que sugere, sob muitos aspectos, recepções de recepções.
Seria sob o pano de fundo dessa complexa tradição de pensamento romântico na sua vigência em épocas posteriores do século XX que o interesse de Beaufils por vultos da história da música da Alemanha do século XIX e pela canção alemã pode ser estudado. Esse seu interesse e mesmo configuração psicológico-cultural dele decorrente e condicionadora do seu pensamento não poderiam deixar de elucidar o seu surpreendente fascínio por Heitor Villa Lobos. Ter-se-ia, aqui, um exemplo da vigência do pensamento romântico na valoração do compositor brasileiro, marcado que foi por uma auto-consciência que se manifesta na frase „O folclore sou eu“.
O pensamento romântico nas idéias condutoras de „Refrações e prospecções“
É sob o pano de fundo dessas considerações que devem ser consideradas as concepções expostas por Rossini Tavares de Lima no seu estudo Villa Lobos: Refrações e Prospecções.
Entre as idéias condutoras de Rossini Tavares de Lima encontra-se aquela que via em Villa Lobos uma „atitude de artista que enxerga a possibilidade de realizar o internacional em arte através do nacional aculturado o seu país“. Com essa atitude teria ido à França, a fim de mostrar ao europeu o que era capaz o gênio brasileiro. O meio brasileiro não podia mais conter um artista que se universalizara com as criações de inspiração brasileira. (op.cit. 227)
Outro pensamento-chave de Rossini Tavares de Lima é o do significado do folclore na integração do indivíduo na coletividade e, no caso do Brasil, país marcado por interações culturais, de aproximá-lo do Homem na sua universalidade.
Este teria sido a linha-mestra do programa educacional da juventude que Villa Lobos iniciou a seguir no Brasil e que tinha como base uma necessária e inteligente utilização do folclore, „que não apenas serve para integrar o indivíduo na coletividade de origem como também, em país de vária aculturação como o nosso, aproxima-lo do contexto universal“. (op.cit., 228)
Através de sua identificação com o povo e a natureza do Brasil Villa Lobos pôde sentir e depois revelar na sua obra, „a profundeza do sentimento do Homem de todas as raças, de todos os tempos, de todas as pátrias.“ (229)
Nas suas prospecções, Rossini Tavares de Lima afirmava não acreditar que o compositor brasileiro, que vive e se expressa como tal, pudesse criar música que deixasse de revelar de algum modo suas origens culturais e isso talvez fosse possível até mesmo na música serial e eletrônica, caso não seja originada da imitação.
O compositor manifestaria necessariamente na sua obra algo da sua cultura espontânea, à qual pertence a música folclórica e também a popularesca que integram o seu meio ambiente. O compositor, antes de ser erudito, é produto de certa coletividade, tendo recebido na infância e juventude a ação daqueles que no seu sentir, pensar, agir e reagir existem mais em função da cultura espontânea.
Atingindo a maturidade, traz muitas das características da música da coletividade a que pertence. Mesmo afastando-se do país, mesmo modificando-se no seu modo de vida, de pensar, de sua língua e religião, conservaria nos limites essenciais, o estilo da música de sua cultura.
Com a finalidade consciente de defender e projetar a música da sua cultura, compositores nacionalistas, ou melhor regionalistas, teriam coletado elementos do folclore e utilizado-os nas suas composições, concebidas estas segundo o modêlo europeu. Teriam sido composições com temática brasileira mas escritas com o pensamento no Velho Mundo. Ao contrário, Villa Lobos teria cuidado de criar música pensando mais no Brasil. Diferenciava-se, com isso, dos musicistas no Brasil que, alheios da realidade, defenderiam a tese de uma música universal, sem base no sentir e no pensar do povo, fazendo referência, neste sentido, a Mário de Andrade.
Um processo psicológico-cultural que explicaria o universal em Villa Lobos
O pensamento de Rossini Tavares de Lima quanto a um processo psicológico-cultural é claro: com o contato com a gente da sua terra, haveria uma assimilação inconsciente, não procurada, de peculiaridades estilísticas: inflexões tonais, relações intervalares, esquemas rítmicos, timbres instrumentais, processos harmônicos e contrapontísticos.
Essa conformação com a linguagem musical da sua gente teria possibilitado a Villa Lobos poder usá-la revestida de indumentária erudita, como se fosse a sua própria língua. Fazendo ou não uso literal do folclore, expressou-se numa linguagem a um tempo pessoal e nacional e por isso mesmo de força irradiadora, universal. Citando o próprio Villa Lobos, afirma que quanto mais o artista for da terra em que nace, tanto mais é universal.
Villa Lobos não seria um compositor nacionalista - a força internacionalizadora do povo
Rossino Tavares de Lima tinha a convicção de que Villa Lobos não seria um compositor nacionalista.
„Prescrutando (estas) palavras e a própria atitude estética de Villa Lobos diante da música folclórica ou popularesca do seu país, verificamos que não pode e não deve ser classificado como compositor nacionalista, pelo menos no sentido mais comum da expressão. Bem diferente daqueles que abraçaram o nacionalismo musical, os quais já se disse, melhor se chamariam regionalistas, Villa Lobos acedeu perseguir o caminho musical que suas origens culturais o indicavam, porque vislumbrou a possibilidade de nêle encontrar a própria verdade universal de sua arte (...)“ (op.dit. 235)
Para Rossini Tavares de Lima, seguindo Mário de Andrade (1893-1945), na folcmúsica ou na arte „popularesca“ podia-se pressentir o universal no sentido de uma força internacional do povo. A música popular seria nacional brasileira na organização de seus elementos constitutivos, mas se analisada em comparação de cada um de seus elementos com aquela de outros povos encontram-se relações e identificações que direta ou indiretamente contribuem para a formação cultural do Brasil.
A atitude de Villa Lobos, como salienta Rossini Tavares de Lima, seria a de procurar atingir o universal através do Brasil e não ao contrário, como o fariam ou sugeriam músicos seriais. Mais uma vez citando Mário de Andrade, afirmava que o compositor brasileiro devia partir do particular para o geral, da „raça para a humanidade“, conservando aquelas suas características próprias. (pág. 235)
„Na verdade, penso que é mais fácil, mais natural e espontâneo que isto se objtive assim: o compositor palmilhando o caminho musical de sua gente, para alcançar o mundo de todos.“ (op.cit. 235g
Aspectos de debates: do particular ao geral ou do geral ao particular
Entre os pontos que marcaram a troca de idéias no decorrer das décadas salientou-se aquele que revelava-se como fundamental, também sob o aspecto teórico-científico: o da defesa que fazia - baseando-se em Mário de Andrade na sua infeliz „da raça para humanidade“ - de um procedimento que vai do particular ou do especial ao geral.
Assim pensando e argumentando, Rossini Tavares de Lima revelava-se como estudioso que partia primordialmente da empiria, o que era compreensível e o distinguia como representante de estudos culturais empíricos, baseado na observação, na vivência e participação.
A problemática filosófica do particular ao geral ou do geral ao particular, remontante a antiga tradição do pensamento e alvo permanente de considerações de filósofos, relacionou-se assim com a discussão de métodos, de procedimentos empíricos ou dedutivos.
Na sua argumentação, partindo da perspectiva musical, tratava-se da crítica de compositores que procediam do geral ao particular, fossem aqueles que partiam de formas européias e nelas integravam elementos do folclore - que seriam para êle os nacionalistas ou regionalistas - fossem aqueles que partiam de construções e princípios abstratos ou teóricos em criações de vigência internacional, por assim dizer independentes de contextos culturais como seria o caso do dodecafonismo.
Problemas derivados do pensamento que parte do particular ao geral
Como salientado nas discussões, esse caminho de pensamento levanta graves questões, uma vez que desvaloriza não só a Teoria, mas sim também a procura de conhecimentos através da Filosofia, entre êles o da Ética na sua vigência ultrapassadora de contextos, dos Direitos Humanos, do Direito de outros seres viventes e da Ecologia.
Discutiu-se sob esse aspecto sobretudo a questão da função da música na educação, de tanta importância nas considerações de Rossini Tavares de Lima relativas a Villa Lobos, uma vez que justamente o ensino a orientação segundo princípios - sobretudo éticos - deveria ser primordial. Considerou-se que somente um ensino assim conduzido pode promover processos de esclarecimento e fundamentar uma formação de consciência e uma atitude de reflexão sobre os próprios condicionamentos culturais.
Somente assim pode-se reconhecer problemas do próprio contexto cultural, de crítica a desenvolvimentos - sobretudo necessários em país de formação colonial - e possuir a liberdade de neles agir e transformá-los: nem todas as tradições são dignas de serem conservadas, nem todos os aspectos da própria cultura são positivos.
O aguçamento da auto-consciência esclarecida relativamente a condicionamentos culturais revela-se como relevante para a própria discussão disciplinar nos estudos culturais, em particular aquelas de divisões de áreas, tais como aquelas entre os Estudos de Folclore e a Etnologia.
Consequências de problemas de conceituação de Folclore e Etnologia
Foi assim, ponto de central relevância nos diálogos à época do movimento de renovação teórica através do direcionamento da atenção não a esferas culturais, mas sim a processos. Essa problemática revela-se na própria argumentação de Rossini Tavares de Lima no seu estudo relativo a Villa Lobos, no qual, considerando os pontos principais „da atividade musical da gente do Brasil“ em que se baseou o compositor, menciona o „elemento exótico indígena“, considerando-o negativamente.
Já o fato de falar de exotismo indica que este não inclui o indígena na sociedade eno contexto cultural do observador, um procedimento então estreitamente relacionado com a conceituação de folclore. Com isso, o autor relativa em ponto grave a sua afirmação de que Villa Lobos, na sua identificação com o povo e natureza do Brasil, pôde sentir e depois revelar o „sentimento do Homem de todas as raças, de todos os tempos, de todas as pátrias.“ (op.cit., 229)
O contexto cultural de partida da argumentação: o interior de São Paulo
O contexto cultural do qual o autor de „Villa Lobos: Refrações e prospecções“ parte - da terra e da gente, da realidade musical, do folclore que constituiria o mundo de cultura espontânea (op.cit., 228) - é aquela da sua origem no Interior de São Paulo, o mundo de um Cornélio Pires (1884-1958), como êle próprio várias vezes salientou.
Mencionando com palavras denotadoras de distância referências indígenas na obra de Villa Lobos, as suas explanações revelam-se como sendo não necessariamente correspondentes a concepções do compositor, representando antes projeções ou aplicações interpretativas à sua obra.
Como porém discutido, uma orientação voltada à análise de processos culturais exige que se considere Villa Lobos a partir de seus próprios pressupostos e de suas inserções em processos na sua decorrência no tempo a partir de uma atitude de distância do cientista.
Um aspecto do posicionamento de Rossini Tavares de Lima que sempre deu motivo a intensas trocas de idéias pessoais e por corresponência foi o da sua acima mencionada convicção de Villa Lobos não ter sido nacionalista, mas sim o de, seguindo o caminho musical de suas origens culturais, procurar encontrar a „própria verdade universal“ e sua arte.
Essa frequente menção ao universal através do particular, o de sentir Chopin, Beethoven, e especialmente Bach em expressões do populário, o de supor uma „essência“ humana e força internacional a ser alcançada através da realidade do homem e da terra despertou a atenção para as dimensões político-culturais dessa corrente de pensamento.
As reflexões voltaram-se à recepção de idéias do Internacionalismo socialista, às relações entre o ideário do movimento trabalhista e conceituações de cultura popular e pesquisa cultural empírica nas suas inserções em correntes de pensamento remontantes ao século XIX. Como personalidade de convicções políticas de esquerda, e ao mesmo tempo com as suas convicções relativas ao folclore e à área correspondente de estudos, Rossini Tavares de Lima surge como pensador que traz à consciência a necessidade de análises mais diferenciadas da vigência do pensamento romântico nas suas transformações de sentidos e conotações político-culturais através do tempo e do espaço. Esse pensamento, na sua complexidade, teria marcado fundamentalmente a literatura histórico-musical e dos estudos culturais referentes ao Brasil, sendo que se manifestaria sobretudo naquela concernente a Villa-Lobos.
Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.“ Estética e Estudos Culturais na literatura sobre Villa-Lobos - a questão do „particular ao geral“. Marcel Beaufils (1899-1985) nas suas relações com Rossini Tavares de Lima (1915-1987) . Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 169/9(2017:5).http://revista.brasil-europa.eu/169/Marcel_Beaufils_e_Bispo.html
Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha
Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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