Franceses X Ingleses nas Antilhas
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 171

Correspondência Euro-Brasileira©

 
St.Kitts. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE

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Fotos A.A.Bispo 2018©Arquivo A.B.E.

 


N° 171/8 (2018:1)


Franceses X ingleses na história das Antilhas
no seu significado para estudos culturais:
os regimentos antilhanos de africanos em „redcoats“
e lutas em jogos de escravos


Estudos euro-brasileiros no Museu da Brimstone Hill Fortress em St. Kitts

 
St.Kitts. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE
St. Kitts and Nevis receberam particular atenção nos estudos culturais euro-brasileiros desenvolvidos no Caribe em 2017.

Essa atenção, estranha à primeira vista, explica-se pelo significado da antiga S. Cristóvão (St. Kitts) no processo histórico da colonização dessa esfera insular do Novo Mundo. Ali estabeleceram-se as primeiras colonias tanto de ingleses como de franceses, e dali desencadearam-se processos que levaram à colonização de outras ilhas e a desenvolvimentos econômicos e demográficos de amplas dimensões. (Veja)

Entre êles, salienta-se o significado das plantações de cana - que substituiram aquele anterior do tabaco como produto de exportação - e que exigiram maior número de trabalhadores e, com isso, à intensificação da procura de mão de obra africana. O desemvolvimento populacional de St. Kitts foi marcado através dos séculos pela extinção dos indígenas, pela diminuição da parcela européia de sua sociedade e uma crescente predominância de africanos e seus descendentes. (Veja)

Os processos desencadeados nessa ilha cognominada de „Mãe das Antilhas“ nem sempre são considerados com a devida atenção em estudos de relações entre a Europa, as Américas e a África. Em S. Cristóvão, porém, evidenciam-se de forma mais intensa irradiações nessa esfera insular relações e tensões entre as potências européias, em particular entre aquelas da França e da Grã-Bretanha.

Devido à convivência e a seguir a divisão da ilha entre franceses e ingleses, assim como os muitos conflitos entre essas duas parcelas populacionais, a história de S. Cristóvão surge como paradigmática para a consideração dessas tensões no contexto geral das Américas, mesmo em países como o Brasil.

Aqui levanta-se a questão das difilculdades e da insuficiência em número de estudos que relacionam o Brasil e as Antilhas.

Por essa razão, o primeiro passodos estudos ali realizados foi o de trazer à lembrança uma obra que representa um marco histórico nesses estudos, o Brasilien, Westindien und die Südpolar-Länder de J. G. Wappäus (1812-1879) e O. Delitsch (1821-1882) (Leipzig, 1871).

Um segundo passo foi o de considerar o desenvolvimento dos estudos na atualidade, o tratamento museológico, as iniciativas de difusão de conhecimentos e de ensino. Esse intento teve um de seus principais momentos no museu instalado na Brimstone Hill Fortress.

St.Kitts. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE


Brimstone Hill Fortress e seu museu - iniciativas de preservação
St.Kitts. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE
A fortaleza da Brimstone Hill é o mais importante monumento histórico-arquitetônico e St. Kitts e Nevis. Faz parte atualmente de um parque nacional nos termos do National Conservation and Environnment Protection Act de 1987. Ela não só constitui hoje o principal patrimônio arquitetônico das ilhas, mas adquire relevância global para estudos da história e da arquitetura  militar.
St.Kitts. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE
É uma das mais importantes fortificações do mundo, comparável, pelas suas dimensões, projeto e técnica construtiva com os maiores fortificações históricas da Europa. Compreende-se, assim, que tenha sido visitada por chefes de Estado, em particular de representantes da família real britânica, da UNESCO, por destacados políticos, historiadores, pesquisadores de diversas áreas e pela maioria daqueles que visitam St. Kitts.

Após ter sido abandonada pelos militares britânicos em 1853/54, a fortaleza deteriorou-se. Os canhões foram retirados, assim como a artilharia pesada, retornada em 1930. Através do empenho de uma associação fundada para promover a restauração do forte, foi este estabelecido em 1982.

A fortaleza adquire significado sobretudo para a história de processos coloniais em dimensões que ultrapassam os limites locais e mesmo do mundo insular do Caribe. Esse significado resulta sobretudo da sua inserção em processos históricos marcados pelas relações entre franceses e ingleses na colonização da „Mãe das Antilhas“ e que, fundamentalmente tensas  em extensão de situações políticas européias, conheceu fases de convivência mais ou menos pacíficas e lutas, conquistas e reconquistas, vitória de um ou de outro lado, oferecendo um quadro histórico de contínuas confrontações.

Para solidificar o seu domínio, os ingleses realizaram grandes trabalhos de fortificação e são essas obras que constituemhoje o principal patrimônio construtivo de St. Kitts.

A colina em que a Brimstone Hill Fortress se situa passou a ser alvo de construções de defesa a partir de 1690. O forte foi construído em anterior local de defesa conhecido como Mince Pye. Levantado entre 1789 e 1805, é um dos mais bem conservados exemplos de uma concepção inovativa de fortificação com a sua forma poligonal.

O nome Fort George lembra o rei George III (1738-1820) da Grã-Bretanha, uma época de grande significado para a presença britânica no mundo, marcada pelas tensões e guerras sobretudo com a França. Foi uma época na qual a Inglaterra alcançou grandes sucessos - a ela passaram as colonias francesas do Canada e as possessões francesas na Índia -, mas também derrotas e perdas, sobretudo de suas colonias norte-americanas durante a guerra de independência americana (1775-1783). Foi uma época que culminaria e terminaria apenas em 1815 com a derrota de Napoleão na batalha de Waterloo.

Essas tensões entre ingleses e franceses marca a história da Brimstone Hill Fortress. É compreensível que tanto um quanto o outro lado sejam lembrados no museu que foi ali instalado em 1982 quando da restauração do forte, uma data que coincidiu com o bicentenário da vitória e captura da fortaleza pelos franceses, em 1782.


Para além dos compartimentos da fortaleza que demonstram a vida do quotidiano dos soldados e oficiais, o espaço do museu apresenta uma exposição de documentos da história de sua recuperação mais recente, assim como quadros elucidativos da vida indígena anterior à chegada dos europeus, do seu trágico exterminío, da história colonial, da vida da população, em particular da escrava, e de guerras.

Gravuras históricas e pinturas apresentam aspectos da chegada de africanos à ilha, do mercado de escravos e do trabalho nas plantações de cana. Sobretudo, porém, a exposição dirige a atenção ao significado de St. Kitts e de sua fortaleza no complexo internacional de tensões entre a Inglaterra e a França nas suas extensões nas Américas. Salientam-se assim relações e o significado da ilha no contexto da guerra de independência americana, da Revolução Francesa e da história do Haiti.


O museu traz à luz um panorama internacional marcado por jogos de poder e de forças, de guerras, vitórias e derrotas focalizadas em princípio a partir das tensões seculares entre a Inglaterra e a França.

Sob o ponto de vista dos estudos euro-brasileiros, o quadro global assim apresentado traz à consciência que também o Brasil se inscreveu nesse jogo de tensões internacionais, lembrando-se a transferência da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro em sequência às incursões napoleônicas, os fatos que a ela se seguiram, em particular a independência do país e o significado da Inglaterra por grande parte do século XIX.

Integração de africanos nas lutas entre ingleses e franceses - o regimento antilhano

O museu da Brimstone Hill Fortress chama a atenção a um aspecto desse campo de tensões internacionais que é em geral pouco considerado mas que adquire particular relevância para os estudos culturais: o da inserção de africanos e seus descendentes em um ou outro partido.

Como o desenvolvimento demográfico local - do Caribe em geral - foi marcado por um aumento considerável da população africana e de seus descendentes paralelamente a uma diminuição no todo da porcentagem da população européia, os europeus procuraram compensar esse desenvolvimento empregando africanos na defesa militar, suprindo assim a falta de soldados europeus.

Para isso, foram exercitados em práticas militares escravos vindos da África, capturados de navios negreiros ou recrutados nas plantações de cana das ilhas, colocando-os a serviço, do lado britânico, da British Army. Os primeiros dois regimentos de africanos foram criados em 1795, sendo que o número de unidades, embora flutuando, chegou a 12. Esses regimentos - West India Regiments -, sob a autoridade de um oficial inglês, serviram aos interesses militres britânicos não só no Caribe, onde alcançaram três vitórias em batalhas, mas também em outras regiões do mundo, sobretudo na África Ocidental.

Destacamentos desses regimentos das Índicas Ocidentais ficaram estacionados em determinadas épocas na Brimstone Hill Fortress, entre êles o 4° Regimento na década de 1790 e o 2° em 1851.

A exposição na Brimstone Hill Fortress lembra que essas iniciativas britânicas nem sempre foram bem recebidas pelos proprietários das plantações e de escravos. Não só se opunham ao recrutamento daqueles que estavam a seu serviço - pois representava uma perda de mão-de-obra - como também reconheciam os problemas trazidos pelo aumento de auto-consciência dos africanos que serviam nos regimentos. Neles, os soldados, ainda que africanos, eram equiparados aos europeus de outros regimentos, gozando de prerrogativas e liberdades, o que mantinham após quitarem o seu serviço.

A história dos africanos e seus descendentes integrados na defesa particular e a serviço da defesa militar é marcada pela vitória de Brimtone Hill de 1782, um momento significativo na história bélica do Caribe.

Mais uma vez os acontecimentos nas ilhas foram estreitamente relacionados com aqueles das colonias norte-americanas. Os ingleses de St. Kitts atacaram S. Eustáquio como castigo pelo fato de seus habitantes terem auxiliado os revoltosos da revolução estadounidense com armas e mantimentos.

Os franceses, aliados à causa norte-americana e contrários aos inglêses, desembarcaram em St. Kitts, apoderando-se da ilha, com exceção da fortaleza. Esta, com uma guarnição de 600 homens, era apoiada por 350 da milícia africana, além de vários mulatos livres. Os africanos leais à causa inglesa lutavam um combate de guerrilla de retaguarda, conseguindo realizar importantes prisioneiros de guerra. Somente após um mês de sítio e bombardeios é que os ingleses se renderam

Já na Primeira Assembléia Geral de St. Kitts, em 1797, representantes das oligarquias locais tomaram um distúrbio entre alguns dos 250 soldados da Brimstone Hill Fortress como pretexto para exigirem que fossem despedidos e re-escravizados, persuadindo as autoridades à transferência do regimento antilhano a St. Vincent.

A auto-consciência dos africanos dos regimentos era favorecida pelo treinamento comum e pela luta pelos interesses britânicos, pelo espírito de grupo e através de símbolos.

O uso de uniforme comum desempenhou aqui importante papel, sendo os regimentos antilhanos conhecidos e designados pela cor vermelha de seus uniformes. Similar significado coube à música militar, uma vez que os soldados também foram ensinados na execução de toques de tambor e instrumentos de sopro na ordenação da vida em comum, nos exercícios militares e mesmo nas batalhas.

A inclusão nas forças militares a serviço dos interesses europeus, as prerrogativas, liberdades e o prestígio assim adquiridos não poderiam deixar de marcar a consciência de identidade e as expressões culturais. Também os momentos de folga e os divertimentos passaram a refletir esse pertencimento a um dos partidos de uma luta entre ingleses e franceses de dimensões globais.

A luta-jogo de escravos ingleses e franceses na ilha de Dominica de Agostino Brunias (ca.1730-1796)

Uma pintura de A. Brunias - um artista italiano estabelecido em Londres - testemunha a prática de lutas simuladas como jogo ou divertimento de africanos na ilha de Dominica.

A obra foi dedicada a Ralph Payme, Barão Lavington, nascido em St. Kitts e educado na Inglaterra. Foi orador da Assembléias das Leewards Islands e retornou na década de 1760 à Inglaterra, onde foi membro do Parlamento. Em 1771, foi nomeado Knight of the Order of the Bath e governador das Leewards Islands. Após novos cargos em Londres, retornou às ilhas do sotavento, falecendo em Antigua.

Esses embates lúdicos - mas que também representavam um exercício físico - podiam ser realizados por escravos pertencentes a senhores respectivamente franceses ou ingleses no caso de contextos nos quais ambos grupos de colonos conviviam na mesma ilha - como em St. Kitts -, mas também por africanos que, para o jogo, assumiam simbolicamente o partido inimigo.

Na representação desse jogo-luta, constata-se uma prática de lutas de bastões. Ela corresponde, sob esse aspecto, às diferentes expressões de folguedos com batidas de paus conhecidas também no Brasil.

É de se supor que também no embate representado na gravura dos africanos franceses e ingleses das Antilhas as batidas com os paus obedeciam a uma ordenação ou tinham uma função rítmica. Como no Brasil - em extensão de práticas européias - a linguagem visual dos embates entre dois partidos é marcada pelas cores vermelha e azul, o contexto antilhano traz à tona uma implicação político-cultural dessa simbologia, uma vez que o lado inglês era associado com o vermelho.

De estudos euro-brasileiros no Caribe em 2017
Antonio Alexandre Bispo

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „ Franceses X ingleses na história das Antilhas no seu significado para estudos culturais: os regimentos antilhanos de africanos em „redcoats“ e lutas em jogos de escravos“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 171/8(2018:1).http://revista.brasil-europa.eu/171/FrancesesXIngleses_nas_Antilhas.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller,
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