Magnificat e linguagem visual
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 171

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Rep.Dominicana. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE

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Fotos A.A.Bispo 2018©Arquivo A.B.E.

 


N° 171/4 (2018:1)



Deposuit potentes de sede et exaltavit humiles

O Magnificat e a linguagem visual de folguedos tradicionais
Mariologia nas análises antropológico-culturais e demopsicológicas no Caribe
nas suas relações com o Brasil


Museo de la catedral de Santo Domingo, Catedral Primada de América

 
Rep.Dominicana. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE
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Um ds tópicos principais dos estudos euro-brasileiros levados a efeito no Caribe em fins de 2017 consistiu na revisita da catedral de Santo Domingo, República Dominicana. Ali foram recapituladas questões fundamentais para análises de processos culturais e para a leitura de expressões tradicionais do Caribe.

O Museo de la Catedral, instalado em edifício histórico ao lado da catedral, conserva objetos históricos e artísticos que dão testemunho do seu significado para a antiga Hispaniola e para toda a área do Caribe.

A catedral, como mais antiga do Novo Mundo, é o mais importante monumento do patrimônio de arquitetura religiosa das Américas.

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A sua construção foi iniciada em 1512/1514 a partir de plano do arquiteto Alonso de Rodriguez. Interrompidos, os trabalhos foram retomados em 1522. Em 1540, a catedral foi parcialmente concluída por Alonso González, que ter-se-ia inspirado na catedral de Sevilha, tendo sido consagrada em 1541. Em 1546, a pedido de Carlos I (1500-1558), foi elevada a catedral pelo Papa Paulo III. Na sua parte sul edificou-se o claustro com as celas dos cônegos, o que lembra a catedral de Salamanca. Essa construção dá testemunho do significado do Capítulo, de sua vida espiritual e consequentemente do canto de côro nos ofícios das horas e nas solenidades litúrgicas da catedral.

A referência à catedral de Sevilla indica a sua inscrição em corrente histórico-religiosa que remete à Idade Média e que favorece a compreensão de sua configuração arquitetônica, que surge à primeira vista como singularmente arcaica.

A catedral de Sevllha, então ainda em construção em estlo gótico, - trabalhos iniciados em 1401 e terminados em 1519 -, elevava-se sobre os restos da antiga Mezquita Mayor, do século XII. Foi assim, um dos principais exemplos da transformação de mesquitas em igrejas no decorrer da Reconquista ibérica, o que também ocorreu em Portugal e repercutiu em regiões alcançadas pelos portugueses. (Veja)

Essa referência à catedral de Santa María de la Sede de Sevilha, a maior da Espanha, implica em elos com o espírito a Reconquista, do combate contra o Islão e com a vitória da Cristandade, o que ajuda a explicar a impressão de fortaleza que desperta a catedral de Santo Domingo. Esses elos com Sevilha manifestam-se da forma evidente pelo fato de ambas as catedrais serem marcadas como locais de sepultura de Cristóvão Colombo.

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Sevilha e/ou Santo Domingo como locais que guardam os restos de Colombo
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Após o seu falecimento em Valladolid, em 1506, os seus restos mortais foram trazidos para Sevilha e, em 1596, trasladados para Santo Domingo. Quando em 1795 a ilha passou ao domínio francês, foram dali levados a Havana. Em 1898, levados novamente a Sevilha. Em 1902, levantou-se o mausoléu na Puerta de la Lonja da catedral de Sevilla, uma obra de plástica mortuária plena de simbologia, no qual o sarcófago do descobridor é segurado por figuras representando  Castela, Leão, Aragonia e Navarra.

Já em Santo Domingo, após a descoberta de supostos ou reais restos mortais do descobridor na catedral numa urna de chumbo com a inscrição „Don Christobal Colon“ em 1877, surgiram intentos de levantar-se um monumento, pensando-se inicialmente na catedral, que para isso deveria ser adaptada. Por ocasião dos 500 anos do Descobrimento da América, em 1992, edificou-se o Faro a Calón em Santo Domingo, monumental obra com o túmulo de Colombo. O edificio e seu museu - no qual estão representados todos os países da América, foram visitados em ciclos de estudos euro-brasileiros anteriormente realizados em Santo Domingo.

A devoção mariana de Cristóvão Colombo - Santa Maria la Antigua

O significado dos estudos de concepções marianas na consideração e Colombo e de seus descobrimentos não resulta apenas dos locais históricos de sua sepultura nas catedrais de Sevilla e de Santo Domingo. Sabe-se que êle próprio foi marcado por uma profunda veneração a Maria e, colocando-se sob a sua proteção, concepções e imagens marianas guiaram e acompanharam os seus feitos. (Cf.Linda B. Hall, Mary, Mother and Warrior: The Virgin in Spain and the Americas. University of Texas Press, 2009, ISBN 978-0-292-79742-0, S. 539).

Uma particular devoção dedicava Colombo à imagem da Virgen de la Antigua da capela de mesmo nome da catedral de Sevilha, famosa pela pintura a fresco La Virgen. Maria, segundo a tradição apareceu a Fernando II o Santo (1199/1201-1252) quando da conquista de Sevilha dos mouros em 1248. O rei, conduzido por um anjo, teria visto, no interior da grande mesquita, por detrás de uma parede, a imagem da Virgen de la Antigua com o seu filho sustentado com a mão esquerda e com uma rosa à direita e que ali se encontrava há séculos velada. Logo após, os muçulmanos se renderam e o rei libertou Sevilha. A transformação da mesquita em catedral, após a conquista, teria sido assim a de uma re-cristianização.

A veneração de Colombo pela Virgen de la Antigua possui assim amplas dimensões históricas e simbólicas, uma vez que se relaciona com a vitória sobre o Islão, com a reconquista cristã de Sevilha no século XIII e com a memória de Fernando II. Entretanto, não só a catedral, mas também na capela do palácio gótico do Real Alcázar e do hospital del Pozo Santo de Sevilha, em outras igrejas e outras cidades da Espanha, o que documenta a intensidade e a extensão dessa veneração. É padroeira de Guadalajara, onde se encontra o Santuario de la Antigua e, nas Américas, padroeira do Panamá.

Um testemunho do significado dessa imagem nos empreendimentos de Colombo no Caribe é o fato de, em 1493, ter denominado uma das ilhas por êle encontrada de Antigua segundo Santa Maria de la Antigua em Sevilha, uma designação que se perpetua até o presente na denominação nacional de Antigua. (Veja) A designação de uma ilha segundo essa veneração também é conhecida da cidade de Antigua, em Fuerteventura. Aliás, essa devoção encontra-se presente em outras igrejas das Canárias.

Significativamente, um dos mais valiosos objetos de arte da catedral de Santo Domingo é uma imagem da Virgen de la Antigua doada por Colombo.

A devoção à Virgen de la Antigua, de tanto significado para Sevilha - o porto das Índias - também marcou a religiosidade de outros navegantes da era dos Descobrimentos e mesmo conquistadores. Entre êles cumpre salientar a viagem de circum-navegação do mundo de Fernando de Magalhães (1480-1521) em 1519. Tendo sido completada sob Juan Sebastián Elcano (1486-1526), foi a imagem de Sevilha procurada em ação de graças por este e seus marinheiros.

A devoção mariana de Colombo não se limitou naturalmente à imagem de Santa Maria la Antigua. Pode-se lembrar aquela de Nossa Senhora de Guadalupe, cuja imagem no Real Monasterio de Nuestra Señora de Guadalupe, na Extremadura, foi procurada por Colombo na su primeira peregrinação após os Descobrimentos.

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Estudos de fundamentos de concepções e imagens

Esse extraordinário significado de Santa Maria la Antigua na história dos Descobrimentos e para o estudo de mentalidades e de imagens condutoras de ações e feitos, levou a que fosse particularmente considerada em estudos de seus fundamentos e de fundamentos de processos culturais desencadeados pelos europeus nos séculos XV e XVI em regiões extra-européias.

Considerou-se, em reuniões com teólogos e historiadores da religião e da Igreja no âmbito dos trabalhos desenvolvidos em Maria Laach e Roma sob a direção do editor entre 1977 e 2002, as várias opiniões e hipóteses a respeito da proveniência dessa veneração e seus significados.

Uma principal atenção foi emprestada à igreja de Santa Maria Antiqua, aos pés do Palatino, em Roma, que, com as suas representações pictóricas é um dos mais valiosos exemplos da arte cristã dos primeiros séculos. Entre as representações, destaca-se uma de Maria com o seu filho, em trono e coroada.

Elevada em meados do século VI, a igreja representou a transformação cristianizadora de edifícios imperiais na área do Forum Romanum. O fato de ter-se ali descoberto um santuário de Juturna, uma ninfa de fontes, levou a considerações sobre as relações da veneração mariana com a água.

Também a devoção de Colombo por Nossa Senhora de Guadalupe revela relações entre concepções marianas e as águas, no caso a do rio Guadalupe. Também aqui são estreitamente relacionadas com a história do combate contra os muçulmanos e da Reconquista, em particular com a batalha de Salado, em 1340.


Dedicação da catedral a Santa María de la Encarnación o Anunciación

A catedral de Santo Domingo é dedicada a Santa Maria da Encarnação ou Anunciação. Esta dupla designação indica o estreito relacionamento entre a Anunciação a Maria pelo anjo Gabriel e, com a sua receptividade ao declarar que era  a escrava do Senhor, nela fazendio-se segundo a sua palavra“ -, e da quase que imediata encarnação do Logos. Compreende-se, assim, que ambas as festas se celebrem no dia 25 de março, nove meses antes do Natal.

A devoção a Nossa Senhora da Encarnação encontra-se presente nas Américas, predomina, porém, antes nas designações a atenção ao momento da Anunciação. (Veja) A dedicação explícita à Encarnação surge em várias catedrais da Espanha, como em Almeria, Granada, Malaga e Guadix. Foi no convento carmelita Nuetra Señora de la Encarnación que Teresa de Ávila entrou na vida religiosa, em 1536. 

Trata-se de uma designação que diz respeito a concepções fundamentais relativas à natureza divina e humana de Cristo, o que explica o seu significado decisivo em processos de cristianização do Novo Mundo. Encontra o seu fundamento no Evangelho de S. João (Jo 1,1-14) -  a palavra tornou-se carne - e no Apóstolo Palo (1 Tim 3,16): o Logos era Deus, mas não assim se manifestou, mas rebaixou-se e tornou-se como um escravo igual ao homem (Fil. 2,6-7a).

O Magnificat como canto de Maria no seu significado em processos culturais

Segundo o Evangelho de S. Lucas (Lc 1,26-56), Maria visitou alguns dias depois da Anunciação a su prima Isabel, grávida com João que seria o Batista. Em resposta à saudação de Isabel, Maria entoou um hino no estilo dos salmos.Maria louva Deus como aquele que se volta a todos os pequenos, os sem poderes, rebaixando os poderosos e cheios de si, depondo-os do seu trono.

O Magnificat não só tem sido alvo de estudos teológico-musicais e musicológicos, como também considerado sob o aspecto dos estudos missiológicos e de encontros de culturais. Foi assim tratado em seminários na Universidade de Colonia realizados em cooperação com o Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS e.V.).

Esses estudos abrem caminhos para a compreensão de desenvolvimentos e expressões culturais de países da América Latina e do Caribe. O significado para estudos musicológicos de orientação cultural, de relações entre a música e concepções e imagens de um sistema cultura de antiga procedência reside no fato de ser êle o canto de louvor de Maria. Nos estudos relacionados com o Brasil, foi considerado mais recentemente em estudos de relações entre Malaca e Olinda. (Veja)

O despojamento do Logos ao assumir na Encarnação tal como um escravo a natureza humana, de corpo e alma, mantendo a sua divindade, representa o fundamento paradigmático de um processo de deposição de portentosos e elevação de humildes decantado no Magnificat.

Deposuit potentes de sede et exaltavit humiles - na linguagem visual de folguedos

Deposuit potentes de sede et exaltavit humiles do Magnificat constitui a chave para a compreensão das muitas expressões tradicionais festivas marcadas por inversão de posições: os potentados e os homens que se engrandecem decaem e os humildes são exaltados. Essas representações tem o seu ponto alto no ciclo do Natal, uma vez que este celebra o nascimento Encarnado na humildade do presépio e nas trevas da humanidade carnal.

Esse repertório de folguedos na profusão de suas imagens caracterizava na Idade Média as festas do calendário católico e a cultura popular nas várias regiões da Europa, de forma compreensivelmente mais intensa em círculos mais simples do povo, entre os humildes, entre os campôneos das aldeias e zonas rurais.

Em debates e estudos desenvolvidos em diferentes ocasiões desde 1977, lembrou-se, entre outros aspectos, do significado do ensinamento de Santo Agostinho relativamente a dois estados ou cidades. Em De civitate Dei, obra criada entre 413 e 426, este Doutor da Igreja distingue o estado divino (civitas dei ou civitas caelestis) e o seu contrário, o estado terreno (civitas terrena).

Durante muitos séculos foi o povo ensinado a respeito do estado terreno, do homem carnal (Civitas Diaboli) no seu contraste com o Civitas Dei, e que o fator fundamental de distinção é o amor: no primeiro caso o amor voltado ao próprio ego, no segundo caso o amor a Deus e ao próximo (caritas).

Como o cristão já superou em princípio o estado carnal, ainda que sempre em risco, as imagens que caracterizam o homem terreno na sua altivez, prepotência, vaidade - e os espíritos malignos - com os perigos que representam já não o aterrorizam, mas são vistos como grotescos, ridículos e motivos de riso.

Os cristão enxerga por detrás das aparências de poder, de auto-engrandecimento a fragilidade do homem nesse estado carnal. Êle já não tem mais mêdo, mas dele goza e ri. As figuras do homem carnal trazem máscaras, pois são desmascaradas.

Explica-se assim todo o repertório de mascaradas que caracterizam folguedos de festas católicas nas quais a Civitas Diaboli é representada, sobretudo aqueles do ciclo do ano do Natal e Reis, chegando até o Carnaval.

Esses folguedos fram levados à época dos Descobrimentos a regiões extra-européias alcançadas pelos portugueses e espanhóis, à África, à América e à Ásia. Referências nas fontes documentam o significado dos folguedos, suas danças e instrumentos nas viagens e nos processos culturais então desencadeados na África Ocidental desde a segunda metade do século XV, e seria dessas regiões que viria posteriormente a maior parte dos africanos como mão de obra escrava ao Novo Mundo. No ciclo de estudos levado a efeito no Caribe, em 2017, foram considerados sobretudo nas suas expressões em St. Kitts. (Veja)

No decorrer do processo de reforma católica, cujo marco foi o Concílio de Trento (1545-1563) e os novos métodos missionários - sobretudo da então nova Companhia de Jesus - teve lugar um distanciamento relativamente às práticas e expressões festivas da tradição popular de europeus e daqueles povos extra-europeus por ela marcados.

Esses esforços de reforma na consecução de preceitos tridentinos marcaram os séculos que se seguiram corresponderam a uma crescente perda de compreensão pelos sentidos da linguagem visual dos folguedos, tanto na Europa como no Novo Mundo. (Veja)

Uma das preocupações dos estudos culturais tem sido o de considerar um edifício de concepções e imagens que estaria à base da própria narrativa escrita e que estaria estreitamente relacionado com o ano natural do hemisfério norte e com conhecimentos filosófico-naturais. É significativo que tenha-se mantido na consideração da época marcada festivamente pela inversão de posições do período de Natal, Reis e Carnaval a designação de Saturnália, o que remete o estudioso necessariamente à Antiguidade.

De estudos euro-brasileiros no Caribe em 2017
Antonio Alexandre Bispo

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „
Deposuit potentes de sede et exaltavit humiles. O Magnificat e a linguagem visual de folguedos tradicionais. Mariologia nas análises antropológico-culturais e demopsicológicas no Caribe
nas suas relações com o Brasil“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 171/4(2018:1).http://revista.brasil-europa.eu/171/Magnificat_e_linguagem_visual.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
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