Mascaradas em St. Kitts e Reisados no Brasil
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 171

Correspondência Euro-Brasileira©

 
St.Kitts. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE

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Fotos St.Kitts, A.A.Bispo 2018. No txto: figura de Reisado em Alagoas, 1971 ©Arquivo A.B.E.

 


N° 171/9 (2018:1)



Deposuit potentes de sede et exaltavit humiles

Mascaradas em St. Kitts
em relações com aquelas das U.S. Virgin Islands e Reisados no Brasil
concepções agostinianas de „duas cidades“ e Mariologia

Estudos em Basseterre na festa de Nossa Senhora da Conceição - Basseterre Co-Cathedral of Immaculate Conception


 
St.Kitts. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE
Deu-se continuidade, no Caribe, em fins de 2017, aos estudos referentes a expressões populares tradicionais do ciclo do ano festivo pré- e pós natalinas que se prolonga até o carnaval. Um dos principais momentos das observações deu-se em St. Kitts and Nevis.

O período considerado coincidiu com aquele das festividades de Nossa Senhora da Conceição, celebradas no dia 8 de dezembro e sua oitava. À Imaculada Conceição é dedicada a catedral de Basseterre.

As mascaradas são consideradas como características de St. Kitts e utilizadas na representação cultural do país e no fomento do turismo. Assim, grandes murais pintados no seu porto as mostram ao lado de pinturas da natureza privilegiada da ilha e modos de trabalho e vida de seu povo.

Essas manifestações vem constituindo há décadas importante objeto de estudos culturais euro-brasileiros. A constatação de similaridades em expressões lúdicas correspondentes leva não apenas a estudos de caminhos que explicam o seu cultivo em diferentes regiões e contextos, tanto europeus como extra-europeus, como também e sobretudo dos seus sentidos e fundamentos.

Os estudos de processos históricos e aqueles de sistema de concepções e imagens de antiga proveniência que se manifesta no calendário de festas da tradição cristã nos seus elos com o ciclo do ano natural do hemisfério norte são estreitamente relacionados.

St.Kitts. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE

Folguedos do Advento, Natal, Reis e Carnaval nos estudos euro-brasileiros

Reisado, Olinda. Foto A.A.Bispo 1970/1. Copyright ABE
Os estudos desenvolvidos nas últimas décadas da linguagem visual de folgedos do período do ano que vai do Advento ao Carnaval foram iniciados no Brasil no âmbito de movimento de renovação teórica voltado a processos culturais (ND 1968) em cooperação com a Associação Brasileira de Folclore em fins dos anos de 1960. Contou com a participação de estudantes de Comunicação Visual da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

Um de seus momentos principais deu-se em viagens de observações e pesquisas no Nordeste do Brasil, em particular de tradições natalinas de Alagoas e Pernambuco. Ali, em cooperações com o Prof. Dr. Théo Brandão (1907-1981), especialista em folguedos do ciclo de Natal e Reis, considerou-se os muitos enigmas que se levantam para a compreensão da linguagem visual de várias expressões lúdicas tradicionais.

Entre outros aspectos, perguntava-se qual seria a justificativa de figuras animais e fantásticas em divertimentos relacionados com essa época do ano e que surgiam como incompreensíveis por não evidenciarem elos com as Escrituras.

Este era o caso de figuras como a do Boi, do Urso, do Jaraguá e outros seres fantásticos suportados por armações de madeira, assim várias outras de Reisados. Como se explicaria o sentido de representações ou referências a personalidades da vida social e política nas suas conotações críticas e hilariantes?

Era evidente que a própria linguagem visual dos folguedos permitiam atualizações e integração de diferentes elementos sem perder o seu sentido e função. Para Théo Brandão, tinha-se aqui, apesar das diferenças resultantes dessas atualizações nos diferentes contextos, uma continuidade de práticas tradicionais conhecidas na Península Ibérica, em particular das Janeiras portuguesas.

Fundamentos teológicos da linguagem visual: catequese medieval e folguedos

Na Europa, esses estudos tiveram prosseguimento na Alemanha a partir de 1974 no sentido de continuidade e renovação de linha de pesquisa de simbologia de expressões ibéricas do musicólogo Marius Schneider (1903-1982). (Veja)

A principal razão do significado de Colonia para análises do sentido inerente ou da função dessas tradições reside no fato da sua catedral guardar o relicário dos Três Reis Magos, o que fomenta considerações teológicas e simbólico-antropológicas. (Veja)

Esses estudos que tiveram a catedral de Colonia como ponto de partida naturalmente dirigiram a atenção ao culto mariano e a concepções mariológicas. Neste sentido, sobretudo o conteúdo e as dimensões do significado do Magnificat - o canto de Maria - foi objeto de análises e reflexões em diferentes ocasiões.

Abriram-se assim caminhos à compreensão dos sentidos intrínsecos à linguagem visual das expressões dessa época do calendário católico que foram seguidos nos trabalhos dirigidos pelo editor à frente da seção de Etnomusicologia do Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos em Colonia, Maria Laach e Roma. Um dos principais focos de atenção no diálogo com teólogos e especialistas da história eclesiástica e missionária foi o do estudo de práticas catequéticas e missionárias da Idade Média, baseadas em interpretação das Escrituras e nas obras patrísticas. 

É nessa catequese medieval e na sua fundamentação teológica que se pode explicar a linguagem visual dos folguedos europeus do ciclo do ano e que foram transpostos para as regiões extra-européias com os descobrimentos, contatos comerciais e colonização.

Linguagem visual de representações transplantada a regiões extra-européias

À época dos Descobrimentos, como se conhece de Portugal, foram não só gente do mar, mas também campôneos de terras do interior que se deslocaram para regiões extra-européias.

O fato desses campôneos levarem consigo - como falam os documentos - gaitas de foles já nas primeiras viagens à África Ocidental, testemunha a extensão de práticas tradicionais do ciclo do Natal às regiões contatadas. A gaita de foles - utilizada e imitada na Noite de Natal como instrumento do homem rústico e da antiga humanidade - deve ser vista como apenas um dos aspectos do repertório de imagens desse ciclo do ano. Se ela não sobreviveu na forma organológica européia - devido a dificuldades de construção - manteve-se no seu sentido em instrumentos e configurações musicais que as substituiram.

Figuras de folguedos no Simpósio Internacional „Música Sacra e Cultura Brasileira“ (1981)

Várias dessas figuras - a dos gigantões, dos cabeçudos, do homem sobre pernas de pau - Catolicismo da época colonial levada a efeito em 1981 en São Luís do Paraitinga no âmbito do Simpósio Internacional „Música Sacra e Cultura Brasileira“, sendo então discutida por pesquisadores e teólogos. (Veja)

Com a fundação do Instituto de Estudos da Cultura Musical da Esfera de Língua Portuguesa (ISMPS) em 1985, o estudo do sistema cultural e imagológico de visão do mundo e do homem no qual se inserem essas tradições passou a ser conduzido em diferentes países e regiões.

Alguns aspectos da discussão mais recente: consequências da catequese medieval

Em 2016, importante momento no desenvolvimento dos estudos da linguagem visual de folguedos tradicionais europeus foi o da visita ao museu da Perchta na região de Salzburgo. Ali pode-se discutir com base em máscaras expostas a extensão de um repertório de imagens que, apesar das diferenças, apresentam similaridades em diversas regiões européias, não só da Europa central. (Veja)

Um dos principais aspectos discutidas foi o da influência teológica de Santo Agostinho, em particular de sua distinção entre duas cidades, a cidade terrena e a cidade de Deus. Essas duas cidades originam-se em dois tipos de amor: o amor a Deus e o amor a si próprio. O amor a Deus leva a uma comunidade que divide e compartilha, a segunda a disputas, lugas, guerras e ao intuito do homem em exercer domínio sobre outros.

A primeira é aquela representada com figuras mascaradas, a segunda por participantes sem máscaras. Essas figuras - como os gigantões e cabeçudos do populário ibérico, também praticados no Brasil - representavam não só espíritos maléficos, mas também vícios, ou melhor, o homem marcado pela falta de virtudes, o homem carnal, animalesco, ou aquele cheio de si, que se faz de grande e potente, mas é débil na sua fraqueza humana.

Como porém os cristão já superou esse homem velho, decaído, esse homem e suas representações não inspiram terror, mas sim surgem como hilariantes nas suas características grotescas.

Todo um repertório de expressões do ciclo do ano natural de antiga proveniência foi assim referenciado segundo a narrativa bíblica nos primeiros séculos e puderam manter-se de forma cristianizada através dos séculos em amplo repertório de práticas lúdicas.

Os estudiosos reconhecem nas figuras dessas tradições da região de Salzburgo relitos da catequese da Idade Média, vendo na Perchta até mesmo uma personificação do mundo marcado pelo pecado, o que também pode ser constatado em códices e gravuras. Reconhe-ce ali a permanência da doutrina dos dois Estados de S. Agostinho na linguagem visual, - a Civitas diaboli, a comunidade de cupidez, e a Civitas dei, a comunidade da Caritas. Assim, sinais de  „beleza“ e vaidade pessoal em representações significam altivez, faces com bicos intrigas a pessoa que faz calúnias.

A primeira cidade é aquela a ser desmascarada, ou seja, é aquela que traz máscaras.

Essa linguagem visual das mascaradas, já não mais entendida em século seguintes que procuraram a reforma católica, em particular após o Concílio de Trento e temidas pelo sentido crítico a elas inerente e capaz de dar ensejo a comportamentos imorais e mesmo a revoluções, foi combatida pelo clero, também na esfera centro-européia, levando a proibições.

No século XVIII, figuras de bruxas, de arlequim, de padre e diabo e outras passaram a misturar-se com aquelas de mais antiga tradição. No século XIX, já tendo perdido a intensidade de sua prática, passaram a ser alvo de interesse de recuperação de tradições e, posteriormente, de folcloristas.

De St. Thomas, U.S.Virgin Islands a St. Kitts and Nevis

St.Kitts. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE
No Caribe, as expressões tradicionais relacionadas com o complexo de Natal, Reis e Carnaval assumem especial relevância no patrimônio cultural de várias ilhas. Um dos principais momentos dos trabalhos euro-brasileiros voltados aos folguedos do ciclo de Natal, Reis e Carnaval no Caribe nas últimas décadas deu-se em St. Thomas, U.S. Virgin Islands em 2005. (Veja)

Uma das razões da escolha dessa ilha para o desenvolvimento desses estudos residiu na publicação, em 1998, de livro dedicado às antigas mascaradas nessas ilhas de Robert W. Nicholls (Old-Time Masquerading in the U.S. Virgin Islands, St. Thomas, The Virgin Islands Humanities Council, 1998).

Com base nas trocas de idéias e nas observações locais, assim como sob o pano de fundo dos estudos respectivos anteriormente levados a efeito em outras regiões do globo, os dados e as interpretações contidos nessa obra foram discutidos e aprofundados no âmbito de seminários promovidos pela A.B.E. em Colonia, salientando-se aquele dedicado à música e processos culturais interamericanos no Caribe, em 2004/5 (Musik und Kulturanalyse. Interamerikanische Prozesse in der Karibik - Köln WS 2004/05)

Significado de St. Kitts para o estudo de processos culturais

Esse significado de St. Kitts - a antiga S. Cristóvão - resulta do papel que desempenhou em processos históricos do Caribe. Foi nessa ilha que se estabeleceu o primeiro assentamento inglês na região - com colonos provindos de malograda tentativa colonial no Oiapoque - e mesmo o primeiro assentamento francês. Foi da antiga S. Cristóvão que partiram impulsos que desencadearam desenvolvimentos em outras regiões, tanto na agricultura, na colonização como na constituição populacional. (Veja)

O significado de St. Kitts revela-se também nos seus elos com as colonias norte-americanas, em particular através do cultivo do tabaco que se extendeu à Virginia e cujo sucesso foi um dos motivos para a perda da lucratividade desse comércio em St. Kitts e sua substituição pelo açúcar de cana.Essa mudança nas atividades agrícolas e econômicas em St. Kitts, que se processou paralelamente à extinção dos indígenas, exigiu numerosa mão de obra e, consequentemente, à introdução em grande escala de escravos resgatados na África. (Veja)

Nessas décadas do século XVII, várias regiões da África Ocidental que contavam com décadas de contatos com os europeus passavam por graves problemas internos e que em parte eram resultantes do enfraquecimento da administração portuguesa à época da União Pessoal com a Espanha com as consequentes incursões de países inimigos, sobretudo de holandeses.

Nessa situação de enfraquecimento e crise de sociedades marcadas há muito pelo contato com europeus, tornaram-se estas alvo de incursões de povos inimigos que aproveitaram da ocasião para fazer escravos que eram então vendidos para intermediários que os resgatavam para levá-los ao Novo Mundo.

Casos dessa debilitação foram o reino do Congo, influenciado pelo Cristianismo de fins da Idade Média, sempre alvo de incursões de Angola, assim como Adra com centro em Porto Novo, então atacado pelo Dahomey. Africanos assim já há muito marcados pela influência da catequese cristã e sobretudo pelas práticas cristãs relacionadas com o ciclo do ano festivo católico trouxeram concepções e práticas para o Novo Mundo.

Chegados em St. Kitts, em grande parte já marcados culturalmente pelo contato com europeus de séculos na costa ocidental da África e pela antiga ação missionária, então enfraquecida, esses  africanos tornaram-se objeto de catequese tanto católica como anglicana e de igrejas protestantes de outras designações que já não compreendiam a linguagem visual das antigas tradições e que nelas viam sobrevivências de ritos e expressões nativas, não-cristãs. Entretanto, os africanos ali encontraram, na esfera católica, uma cultura de cunho mariano enraizada, assim como práticas decorrentes da ação missionária, entre outras dos jesuítas, desenvolvida sobretudo no âmbito da comunidade francesa e intensificada à época da administração francesa da ilha.

Momentos da história católica em S. Kitts: a Imaculada Conceição em Basseterre

Os religiosos da Companhia de Jesus ali levantaram a igreja que é atualmente a catedral de Nossa Senhora da Imaculada Conceição em Basseterre , expressão maior do significado do culto a Maria nessa ilha que se levanta dos mares.

Incendiada em 1706 durante a guerra entre ingleses e franceses, a igreja foi reconstruída em 1710 e, sob os inglêses, rededicada a S. Jorge, o padroeira da Inglaterra. Nessa época, os católicos romanos sofreram impedimentos no exercício religioso, recuperando a liberdade de expressão apenas em 1829.

Com a vinda de imigrantes portugueses da Madeira a partir de 1835, o catolicismo experimentou uma revivificação em correspondência a movimentos restaurativos na Europa. Ao redor de 1856 reconstruiu-se a igreja consagrada à Imaculada Conceição. Esse edifício, que marcou a fisionomia de Basseterre, foi demolido em 1926, ali construindo-se uma catedral de traços neo-góticos no espírito da reforma católica e, do ponto de vista musical, do Motu Proprio de Pio X (1903), tendo sido inaugurada no dia 6 de dezembro de 1928, época da festa da Imaculada Conceição.


Principais figuras da representação do homem carnal na tradição de imagens

Figuras altas sobre armações. É conhecida de várias regiões européias, em particular também da Península Ibérica, assim comode países como o Brasil, altas figuras que representam em muitos casos potentados - os gigantes ou gigantões. Similares e ao mesmo tempo distintas no seu sentido são a de anões com grandes cabeças, os cabeções ou „cabezones“ na Espanha e países hispânico-americanos.

Essas imagens teem sido estudadas nas suas origens pré-cristãs relacionadas com o ciclo do ano natural e com os gigantes da antiga mitologia, o significado cristão da sua permanência através dos séculos é porém indubitável. Elas integram folguedos de festas religiosas, surgindo também no Carnaval. São levadas também em procissões de Corpus Christi, onde toda a sociedade - ordo - é representada.

Essa representação de potentados, soberanos ou outras autoridades não é respeitosa, mas crítica desmascaradora, uma vez que essas figuras sempre incitam ao riso. Surgem também como expressas representações de qualidades negativas do homem de poder mundano no „Estado terreno“ daqueles que amam a si próprios. Das alturas podem olhar dentro de casas e sobrepor-se e mesmo perseguir o homem pequeno - e que, mesmo fugindo, delas ri.

A crítica social e humana inerente a essas representações expressa-se não só na altura e no tamanho das figuras, mas sim também no seu aspecto claudicante, sempre ameaçadas de cair. Transmite, na linguagem visual, a fraqueza do poder, daqueles que se encontram ou se colocam nas alturas, sempre ameaçados de serem depostos. É justamente essa debilidade do homem que é cheio de si nas alturas em que se encontra o principal motivo de hilariedade. É uma exortação à modéstia e tomada de consciência da fraqueza da natureza humana.

Não é portanto a representação em si de determinados reis, rainhas ou outras personalidades identificáveis do passado o que mais importa, ainda que a sua associação com autoridades conhecidas da história e do presente seja explícita em vários contextos. Compreensivelmente, essas identificações são tomadas por aqueles que são alvo das representações frequentemente como desrepeitosas e ofensivas.

O decisivo nessas representações é a fragilidade do homem nas alturas ou daquele que se engrandece. Dessa forma, a linguagem visual pode dispensar personalizações, limitando-se a homens sobre armações ou sobre longas pernas de pau. O sinal de grandeza pode então limitar-se a grandes coberturas de cabeça, o que denota o ridículo a que se expõe o homem que se encontra ou se coloca nos altos.

Essa figura do repertório de imagens medieval, resultante de exortações e da antiga catequese, levado a regiões extra-européias, à Africa e às Américas, é, através de múltiplos caminhos, levada às ilhas do Caribe, constituindo uma de suas mais expressivos e considerados elementos do repertório de imagens de folguedos.

Problemas e êrros na interpretação da linguagem visual na literatura

Devido ao desconhecimento do patrimônio cultural de imagens tradicionais de folguedos europeus, da teologia e dos mecanismos de catequese medieval e de missionação e pela superficialidade de observações, essas figuras tem dado motivo às mais disparates interpretações e suposições de origens.

Também aqui, como em muitos outros casos, os autores, partindo do fato de que são descendentes de africanos aqueles que guardaram e praticam esses folguedos - fato explicável pelo significado dos mesmos em processos integrativos e de cristianização do passado - partem de uma origem africana desses folguedos.

Não indagam, assim, qual seria o sentido, se essa hipótese fosse correta, para os africanos e seus descendentes em representarem-se a si mesmo de forma hilariante, ridícula ou carnavalesca.

Não refletem, sobretudo, que não é a cor de pele de protagonistas de práticas culturais ou mesmo o significado que essas adquiriram em determinados países e regiões que revela inquestionavelmente a origem e os processos históricos que levaram à sua difusão.

Se assim o fosse, então o futebol deveria ter a sua origem histórica no Brasil!

Essa superficialidade na leitura da linguagem visual de folguedos é sobretudo questionável por revelar perspectivas intrinsecamente racistas, ainda que autores que fazem a sua carreira a partir dessas falsas suposições critiquem outros como eurocêntricos.

Nos intuitos de fundamentação dessas suposições de origens, tem-se colocado também interpretações de designações e conceitos terminologicamente questionáveis. Esse é o caso da designação de Mocko Jumbie e similares, conhecida em diferentes ilhas.

Procurando-se ver na figura do homem sobre estacas uma origem africana - levado pela cor de pele dos brincantes - supõe-se influências dos Mandinka, Mende e outros grupos populacionais africanos.

Como debatido, o caminho a ser seguido no estudos de processos culturais e suas interações é outro, ous seja, é a ocorrência dessa figura em determinadas regiões da África Ocidental que deveria ser estudada mais diferenciadamente como possível resultado de interações culturais no complexo processo de encontros com europeus.

Indo mais longe, alguns autores procuram explicar terminologicamente a designação Jumbie como sendo de origem africana. Nesse contexto, lembra-se do termo que designa Deus para os congoleses, uma derivação altamente questionável e incompreensível no seu sentido. Qual seria a razão de ser a denominação congolesa de Deus empregada na linguagem marcada pelo grotesco hilariante em folguedos que, além do mais, teriam a sua origem em outras regiões africanas? Como é que um conceito altamente positivo poderia associar-se com idéias de espíritos negativos, até mesmo malignos?

No mencionado estudo das mascaradas da Virgin Islands de Nichols, cita-se relato de 1791 onde esse folguedo é documentado na época do Natal em St. Vincent sob o nome de Moco-Jumbo. A sua designação como „false heads“ sugere antes conceitos da inguagem visual dos „cabeções“. Um relato de 1852/53, registra o nome Jumbee ou De Jumpsa-man.

Essa denominação reflete antes uma interpretação de um folguedo de tradição latina e não compreendido pelos ingleses, que nele viram apenas uma figura que, devido às estacas, salta ou dá pulos (jump). O complexo de sentidos do saltar ou pular - um termo que se conhece também da expressão „pular carnaval“ - exige considerações mais diferenciadas, remontar porém a expressão a línguas africanas surge porém como procedimento questionável.

Em St. Kitts, no âmbito dos folguedos da época precedente ao Natal, observou-se esse homem nas alturas sob estacas que, acompanhando outras figuras, a elas se sobrepunha como uma espécie de chefe. As grandes coberturas de cabeça com penas de pavão dessas figuras deixavam reconhecer as conotações do homem vaidoso e cheio de si do todo e ao qual a alta figura sobre estacas dominava.

Esse homem nas alturas frágeis das pernas de pau, sempre cambaleando e prestes a cair, procura assustar os transeuntes, também olhando para dentro de casas, estes, porém, ainda que se esquivando, dele riam. Ainda que não revelando identificação reconhecível com  poderosos como em geral os gigantões em tradições ibéricas, essa figura trazia um grande manto ou saia que a envolvia, sugerindo assim um grande personagem como também os gigantões cobertos com grandes saias do populário europeu.

Outras figuras do repertório de figuras de folguedos do ciclo de Natal, Reis e Carnaval

O boi. Uma das figuras desses folguedos do Caribe chama a atenção nos estudos que se relacionam com o Brasil é a do boi.

O sentido da imagem do boi em práticas lúdicas do Brasil foi uma das principais preocupações no âmbito dos estudos de renovação teórica de fins de 1960 e início de 1970 em São Paulo. Um de seus pontos altos deu-se com a apresentação de um Bumba-meu-boi em festival então promovido pelo Departamento Municipal de Cultura no Teatro João Caetano.

Estudos mais profundos da imagem do boi ou do touro na visão do mundo de antiga proveniência e na antiga mitologia foram desenvolvidos em instituições européias nas décadas que se seguiram e acompanhadas por visitas a museus e a sítios arqueológicos. Sob o aspecto da catequese medieval, o boi surge como a imagem de mais fácil compreensão da carne e do mundo carnal ou terreno.

Muito difundido no Caribe, a imabem do boi surge como Red Bull em St. Kitts, correspondente ao John Bull em Antigua e ao Cowhead Jonkonnu em Jamaica e Bahamas, além de muitos outros casos.

Em algumas regiões, como nas Virgin Islands, o folguedo do boi caiu em desuso em meados do século XX. Nessa ilha, a sua representação era marcado pelo fazer correr o boi - o running the Bull e por uma dança do boi. Como parte das mascaradas, o boi era representado por uma máscara com chifres e longo costume que cobria a armação, por vezes coberto com folhas secas. Podia ser acompanhado por um vaqueiro ou dono do boi que trazia um chicote e uma vara e que também podiam atuar musicalmente.

O urso.Uma outra imagem que merece ser lembrada é a do urso, registrada no grupo observado em St. Kitts em 2017.

Essa máscara trouxe à memória as reflexões encetadas com Théo Brandão em Alagoas no início da década de 1970. Esse pesquisador registrara a presença do urso no passado e, procurando explicar o sua presença no Brasil, supunha uma relação com ursos que, acorrentados, eram conduzidos pelas ruas e „dançavam“ por seus donos que para isso recebiam dinheiro.

Nos anos que se seguiram, a imagem do urso na linguagem visual de folguedos foi aprofundada. Com o urso relacionavam-se desde a Antiguidade sentidos simbólicos e a sua imagem era presente na designação das seguidoras de Diana - as ursinhas -, e assim com o período do ano marcado pelas noites mais longas. Com essa linguagem relaciona-se a estória daquela elevada aos céus e que constituiu a Ursa Maior, interpretada como sinal da „grande Criação“ (não da criação espiritual simbolizada na Ursa Menor).

A imagem do urso esteve presente em folguedos europeus do passado, também na esfera ibérica. Na região dos Perineus havia o baile do Urso ou da Ursa. Tinha lugar no dia 2 de fevereiro - festa da Purificação ou de Nossa Sra. da Luz - e no domingo de carnaval. Consistia em parodiar a caça do animal para levá-lo à praça do povoado. Ali era executada a dança de forma grotesca e com algazarra, terminando ao anoitecer. A dança da ursa era o mais complexo de todas, nela intervindo, além da ursa, um caçador, um cavalheiro, uma dama, serventes e outros. Terminada a caça, a dança iniciava. Nela participavam apenas homens com os rostos escondidos atrás de máscaras; procuravam manter-se incógnitos e o povo procurava identificá-los.

A extensão das Mojigangas, Moxigangas e Matachins nas mascaradas do Caribe

A esse conjunto de folguedos que continua a estar presente hoje em várias regiões das Américas e no Caribe dava-se na Península Ibérica em muitos lugares a designação de Mojiganga ou Moxiganga.

Também este termo tem sido objeto de estudos e tentativas explicativas. Supõe-se que derive da palavra árabe (magxiguachah) e que significaria rosto coberto, palavra usada também em geral para a designação de uma festa popular.

Uma similar problemática foi tratada relativamente ao termo Matachin, muitas vezes usado indiferentemente com o de Moxiganga. Supõe-se também que o termo tenha uma origem italiana, relacionando-se com matto e, assim, com sentidos de bobo, louco, fatuo e mascarado. O motivo do assalto seria aqui predominante, incluindo armas, mas o sentido geral continuaria a ser grotesco hilariante na acentuação do ridículo do comportamento do homem. Trata-se também aqui da tolice ou mesmo da loucura do homem terreno que, amando-se apenas a si próprio, se eleva, portentoso, e que é demascarado: Deposuit potentes de sede et exaltavit humiles.

De estudos euro-brasileiros no Caribe em 2017
Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „ Mascaradas em St. Kitts em relações com aquelas das U.S. Virgin Islands e Reisados no Brasil concepções agostinianas de „duas cidades“ e Mariologia“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 171/9(2018:1).http://revista.brasil-europa.eu/171/Mascaradas_em_St_Kitts_e_Reisados.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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