Multiculturalismo, gentrificação e patrimônio
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 172

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Cidade do Panama. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

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Fotos A.A.Bispo 2018©Arquivo A.B.E.

 


N° 172/10 (2018:2)




O pluriétnico e o multiculturalismo no debate político-cultural
nas suas relações com desenvolvimentos urbanos: gentrificação e recuperação patrimonial
Esboço de uma problemática em estudo de caso: a Cidade do Panamá

 

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As grandes metrópoles brasileiras são e devem ser objetos de análises de processos urbanos, sociais e culturais sob os mais diversos aspectos e que, necessariamente, exigem ser conduzidos segundo perspectivas e procedimentos interdisciplinares.

Reflexões e estudos que marcaram a preocupação de arquitetos e pesquisadores culturais já em fins dos anos de 1960 em São Paulo tiveram prosseguimento nas décadas que se seguiram, sendo conduzidos no Brasil e no Exterior.

Não só perspectivas e impulsos nascidos no Brasil contribuiram a estudos de outros contextos. Reciprocamente, também a consideração de desenvolvimentos urbanos de outros países ofereceram e oferecem subsídios para estudos de cidades do Brasil.

Neste sentido, cidades da Europa e de outros continentes são visitadas e consideradas quanto às principais questões que se levantam nos seus respectivos contextos. Vários dos aspectos assim tratados de forma contextualizada puderam assim contribuir às discussões por ocasião dos 450 anos da fundação de São Paulo, em 2004.

Atualidade do debatede sobre o multiculturalismo

Entre os complexos temáticos que adquirem particular atualidade nos estudos culturais e na polêmica político-cultural é a do multiculturalismo.

Esse interesse pode ser registrado em eventos culturais em diferentes cidades da América Latina, salientando-se, entre outros, „Cartagena pluriétnica e multicultural“ na Colombia. (Veja)

Na Europa, esse interesse tem como contrapartida preocupações decorrentes de mudanças demográficas e culturais que transformam ruas e bairros de cidades com alto número de imigrantes.

Em ambos os casos, reflexões e iniciativas referentes a situações pluriétnicas e multiculturais relacionam-se com cidades e desenvolvimentos urbanos. A consideração dessas relações, ainda que complexa e incipiente, oferece-se como importante tarefa para análises de processos culturais.

Entre as cidades recentemente consideradas no âmbito de ciclos de estudos euro-brasileiros desenvolvidos na esfera do Caribe, destaca-se a Cidade do Panamá.

Cidade do Panama. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Significado da Cidade do Panamá para estudos de processos urbanos

A Cidade do Panamá destaca-se pelo significado que adquire no presente como centro econômico e financeiro e que se evidencia no crescimento vertiginoso às alturas do qual fala a sua skyline.

Com os seus altos edifícios, muitos deles de alta qualidade construtiva, além de vias amplas e viadutos arrojados que procuram solucionar problemas de congestionamento do intenso tráfego, a cidade insere-se na sua aparência e com os seus problemas em já longa lista de metrópoles que, em diferentes partes do mundo, desenvolvem-se de forma acelerada possibilitada pelo poder econômico.

Cidade do Panama. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Cidade do Panama. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright
Este fundamenta-se, na Panama City, no comércio e navegação, em antividades bancárias e turismo relacionadas com o canal transoceânico e o seu porto de Balboa. A cidade tornou-se local privilegiado de convergência de capital de todo o mundo e de investimentos, bastando lembrar os seus hotéis e estabelecimentos como Trump Ocean Club.

A expansão do canal nos últimos anos, aumentando a sua capacidade de transportes, contribuiu a essa expansão econômica que tem a sua expressão na fisionomia da cidade.

Ainda que haja várias cidades comparáveis na sua silhueta de arranha-céus com a capital do Panamá nas Américas, o observador sente-se antes tentado a estabelecer cotejos com cidades como Dubai ou as grandes cidades da China.

Essa tentação explica-se pelo cosmopolitismo que sempre marcou a cidade do canal e pela sua localização no Pacífico, que levou a uma intensa presença internacional na sua história e no seu presente, contando a sua população com considerável porcentagem de moradores da esfera asiática.

Significado da Cidade do Panamá para estudos de situações multiculturais

Ainda que se diversidade populacional de séculos se evidencie na maioria demográfica constituída por mestiços, mulatos e descendentes de africanos, o cosmopolitismo da capital manifesta-se sobretudo na diversidade de minorias, o que faz com que a cidade se torne objeto relevante para estudos de plurietnicidade e multiculturalismo.

Como esta atenção a constituições pluriétnicas e pluriculturais é acentuada no presente das preocupações culturais de muitos países das Américas e do Caribe, a capital do Panamá oferece-se como objeto exemplar para reflexões e análises.

Significado da Cidade do Panamá para estudos da globalização

A Cidade do Panamá traz à consciência que o acento do enfoque às diferenças decorrentes da configuração demográfica que tanto marca as preocupações dos debates culturais da atualidade pode surgir como paradoxal perante as dimensões da uniformização que se manifesta no todo urbano e que cada vez mais tornam similares entre si as grandes cidades do mundo. Vista à distância na silhueta de seus edifícios ou em imagens, o observador desinformado poderia supor que a cidade se localizasse na Austrália, na Malásia ou em outra parte do mundo.

A capital do Panamá oferece-se assim também de forma exemplar como estudo de caso de globalização e consequentes desenvolvimentos uniformizadores e, concomitantemente, às relações desse processo uniformizador com a multiplicidade sob o aspecto étnico e cultural de configurações populacionais.

Ela traz à tona a necessidade de uma retomada atualizada do debate sobre relações entre unidade e diversidade que vem sendo conduzido há décadas nos estudos culturais e do qual importante marco foi o simpósio internacional dedicado ao tema realizado em São Paulo, em 1981. (Veja)

Atualidade da problemática perante tendências político-culturais identitárias

O complexo „unidade/diversidade“, assim como a atenção privilegiada à diversidade que marca os estudos culturais adquirem no presente renovada atualidade perante a virulência de movimentos políticos e tendências de natureza nacionalista, populista e identitária em vários países da Europa e mesmo das Américas.

À medida em que neles se manifestam intentos de defesa e mesmo recuperação de características culturais asseguradas da própria identidade, configuradas no passado e transmitidas através de gerações, acentua-se nessas tendências e movimentos uma atenção voltada a origens, a continuidades e tradições.

Como pode ser registrado no debate europeu, o panorama geral visualizado a partir desse posicionamento de cunho nacionalista e identitário seria o de um complexo de nações que se relacionam a partir e em manutenção de suas características, ou seja, uma diversidade de nações no todo de um mosaico de relações internacionais uma imagem que traz à memória ideários político-culturais de regimes autoritários dos anos de 1930.

Nessas visões, o multiculturalismo é considerado como um aspecto ou uma outra face das criticadas estruturas supra-nacionais - como a da União Européia -, assim como da globalização.

Nessa visão, o predomínio de uma situação marcada por multiculturalismo, apesar dessa diversidade, levaria a uma uniformização internacional marcada por uma mistura niveladora de diferenças. Esse processo dar-se-ia em desfavor da sociedade configurada no decorrer de séculos, com as suas características étnicas, de idioma, de religião, de modos de vida, expressões culturais e tradições garantedoras de identidade nacional, passando gradativamente a uma posição secundária e mesmo marginal, levando por fim à sua substituição.

Como essas características garantedoras de identidade nacional mantiveram-se sobretudo em camadas menos privilegiadas da população, essa visão de cunho nacionalista e identitário apresenta-se como sendo aquela que se posiciona ao lado do povo, estigmatizando simpatizantes de situações multiculturais não só como instrumentos de internacionalização em processos mundializadores como também como representantes de uma elite intelectual.

Essa situação assim sumarizada em algumas de seus aspectos, demonstra a complexidade do debate cultural nas suas relações com tendências políticas da atualidade e os mal-entendidos que podem decorrer dos seus paradoxos.

Paradoxos e riscos no debate de questões de globalização e multiculturalismo

Um do riscos na consideração do multiculturalismo manifesta-se quando aqueles que, valorizando situações de diversidade cultural, passam a posicionar-se, - na consideração de grupos ou partes de um complexo maior -, segundo similares critérios identitários que determinam o pensamento daqueles que os criticam.

Voltando-se em abertura e interesse à modos de vida, de pensar, a tradições e expressões culturais de determinados grupos, contribuindo à manutenção de sua memória, de sua auto-consciência étnico-cultural e de identidade, apoiando diferenciações em oposição a assimilações descaracterizadoras, passam a ser conduzidos por concepções e utilizam procedimentos similares àqueles de seus contraentes nacionalistas.

Significativamente - e paradoxalmente - pesquisadores que se posicionam a favor da diversidade criticam frequentemente uniformizações niveladoras de interações e misturas, como aquelas de fenômenos culturais de cunho global, por exemplo no caso da „World music“. Não só agem também similarmente a modo „populista“, mas podem contribuir, nas partes, a um revigoramento de consciência de descendência étnica, de origens, de visões idealizadoras de natureza retroativa, ou seja de tendências tradicionalistas e de conservadorismo extremado que se manifestam frequentemente na atuação política de grupos de imigrantes relativamente a desenvolvimentos nos países de procedência ou de seus antepassados.

Há o risco, assim, que justamente aqueles que no seu pensamento e nas suas ações culturais se voltam em posicionamentos de abertura à diversidade sentidos como progressistas, se transformem em veículos de estreitamento de visões e de desenvolvimentos reacionários de amplas consequências.

Posicionamentos político-culturais, visões da História e questões patrimoniais

Em ambos os casos - o de posicionamentos político-nacionalistas, „povistas“ e identitários em anti-multiculturalismo - ou daqueles que se voltam em princípio à diversidade pluriétnica e pluricultural - as visões são marcadas por enfoques ao étnico, à procedência, às origens, à reconscientização de raízes, à memória, sendo, assim, voltados a linhas de desenvolvimento no tempo.

Trata-se assim de uma problemática de natureza histórica e que deve ser considerada sob o aspecto da História como ciência. Neste sentido, surge como de relevância em reflexões e iniciativas voltadas a questões de patrimônio, de preservação e recuperação de monumentos históricos, edificações e conjuntos urbanos.

Alguns desses problemas foram considerados na Cidade do Panamá, uma vez que em 2017 decorreram 20 anos da inscrição do seu „Casco Antiguo“ na lista do Patrimônio da Humanidade da UNESCO.

Cidade do Panama. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Desde então, vários edifícios foram restaurados, apresentando-se já algumas ruas e praças revalorizadas e as grandes obras em andamento indicam as dimensões da projetada revitalização.


Interações de problemas - gentrificação e transformações comunitárias

Justamente por encontrar-se ainda em fase não avançada do processo reconstrutivo pode-se ali constatar com mais evidência a problemática social que o acompanha e que possui implicações culturais: o da gentrificação em bairros e quarteirões históricos que passam a ser restaurados e revalorizados.

A valorização de terrenos e imóveis  no contexto da recuperação de edifícios e ruas leva a uma mudança da estrutura sócio-econômica da urbe, à venda de casas e edifícios residenciais, ao aumento de aluguéis com o consequente afastamento de moradores de menores recursos e a uma gradual transformação de serviços, da vida comercial e comunitária.

Como conhecido também de grandes cidades brasileiras, esse processo transformatório evidencia-se, por exemplo, na constituição de comunidades paroquiais e de irmandades de antigas igrejas de centros históricos que deixam de ser frequentadas por moradores das vizinhanças, com consequências para atos de culto e paralitúrgicos, para a prática musical, para festas e outros atos que, no passado, marcaram a vida urbana. Algumas dessas antigas igrejas passam a ser frequentadas por imigrantes de diferentes proveniências e expressões culturais, outras experimentam um esvaziamento que coloca em questão a sua manutenção. Essa problemática pode ser registrada também nas antigas igrejas do „Casco“ histórico da Cidade do Panamá.


Diferenciações: transformações de cidades - downtowns e enclaves históricos

Os processos de gentrificação nas suas relações com desenvolvimentos urbanos merecem ser considerados mais diferenciadamente no complexo mais amplo das transformações de cidades de longa história em centros de economia e finanças.

Em muitas grandes cidades, as antigas construções deram lugar em passado não muito distante a edifícios comerciais, de firmas e bancos, em muitos casos a construções de qualidades arquitetônicas manifestadoras de diferentes tendências estilísticas e que hoje também constituem significativos bens patrimoniais.

Relativamente às antigas construções, muitos desses edifícios, por vezes monumentais e de alta qualidade construtiva, representam um desenvolvimento que é por muitos vistos como de progresso, uma espécie de nobilitação arquitetônica.

Esse processo leva a um afastamento de moradores, que se deslocam para novos bairros ou são relegados a determinadas ruas ou quarteirões, formando enclaves no tecido urbano, em geral com marcas da marginalização na sua aparência deteriorada.

Entretanto, com o deslocamento de sedes de empresas, bancos, da vida econômica e comercial a novos bairros dá-se início a uma de-vitaiização de centros que tinham substituido mais antigas configurações urbanas.

Exemplos por excelência dessa „morte“ de centros velhos, que se mostram vazios e mesmo ameaçadores fora de horas de trabalho são as „downtowns“ das grandes cidades norte-americanas, mas também, no caso do Brasil, de metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro.

Revitalizações de centros a partir de enclaves históricos

A questão da conservação do patrimônio edificado desses centros econômicos que passam a perder o seu significado relaciona-se assim de forma complexa com o da sua revitalização. Essa, porém, passa a realizar-se antes a partir daquelas sub-regiões do todo não ou em parte não atingidas pelas grandes remodelações, com características de enclaves e marginalizadas, com antigas construções, ainda que degradadas, e moradores de nível aquisitivo mais modesto.

O processo transformador toma aqui novas características: não a nobilitação arquitetônica através da substituição das antigas construções por edifícios de maiores dimensões e qualidades, mas sim através de uma „nobilitação“ no sentido sócio-cultural. Justamente as antigas construções, em parte modestas, adquirem valor nesse processo nobilitador.

Em muitas cidades da Europa e das Américas pode-se registrar um desenvolvimento que adquire características por assim dizer sistemáticas: a saída dos antigos moradores dá-se concomitantemente com uma gradual entrada de estudantes, intelectuais e artistas, o que leva ao surgimento de uma correspondente vida social e comercial de traços alternativos, a bares e restaurantes, a uma revitalização da vida noturna e cultural.

Essa situação de aumento de atratividade de bairros revela-se em muitos casos apenas como sendo a de uma fase em processo valorizador que leva à vinda de moradores de mais recursos, movidos por impulsos de ascenção e de modo e, com o aumento de custos de vida, a uma nova transformação na constituição social.

Sendo atraídos nessa substituição populacional de bairros e ruas sobretudo moradores abertos às diferenças, de visões e posicionamentos liberais, evidenciar-se-ia nesse processo relações entre a gentrificação e a multiculturalidade ou posições a êle favoráveis.

Enquanto assim, na sua aparência externa, edifícios e ruas históricas recuperadas, adquirem valor memorial do mais alto grau para aqueles que se voltam a seu próprio patrimônio cultural no sentido identitário, na sua vida interior, social e nas expressões culturais passam a ser esses contextos urbanos marcados por interações culturais que se manifestam em eventos, na música, nas artes e no pensamento.


De ciclos de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „ O pluriétnico e o multiculturalismo no debate político-cultural nas suas relações com desenvolvimentos urbanos: gentrificação e recuperação patrimonial. Esboço de uma problemática em estudo de caso: a Cidade do Panamá“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 172/10 (2018:2).http://revista.brasil-europa.eu/172/Multiculturalismo_e_Gentrificacao.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller,
N. Carvalho, S. Hahne