Zapatos viejos - o „estar em casa“ na cidade
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 172

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Cartagena de Indias. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Cartagena de Indias. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Cartagena de Indias. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Cartagena de Indias. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

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Fotos A.A.Bispo 2018©Arquivo A.B.E.

 


N° 172/6 (2018:2)




Zapatos viejos - A mi ciudad
O „estar em casa“ em situações urbanas desgastadas
condicionamentos culturais e resignificações na recuperação de patrimônio edificado



Reflexões no monumento „Las Botas Viejas“, Cartagena

 

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Os estudos realizados em países continentais da esfera do Caribe em 2017 tiveram como principal escopo o de conduzir análises de condicionamentos culturais com o sentido de contribuir a mudanças de visões quanto às relações Cultura/Natureza perante os problemas ambientais do presente. (Veja)

Os desenvolvimentos que levaram e levam, à destruição do meio envolvente em vastas regiões são estreitamente relacionados com a abertura de estradas, com o deflorestamento que se segue, com a instalação de povoados e cidades, que surgem em geral sem planejamento refletido e em diálogo criativo com o meio.

A ação desfiguradora de espaços, com graves consequencias para a qualidade de vida, decorre concomitantemente com a destruição do patrimonio natural. Trata-se assiim de desenvolvimentos que dizem respeito tanto a estudos culturais de urbanismo e arquitetura como àqueles patrimoniais.

Sob o aspecto mais geral das relações do homem com o meio circundante e envolvente, esses estudos podem partir de contextos urbanos, sobretudo naqueles em que se colocam questões de proteção e recuperação de bens. Na consideração de cidades e bairros pode-se reconhecer com mais facilidade situações e desenvolvimentos que revelam a vigencia de mecanismos condutores de ações que resultam de condicionamentos culturais.

Para a condução dessas análises, várias cidades históricas da esfera do Caribe oferecem condições particularmente favoráveis pelo significado atual de questões patrimoniais que nelas se registra. Nos diferentes contextos, aspectos de uma problemática geral podem ser exemplarmente considerados.

Entre as cidades que merecem particular atenção, destaca-se Cartagena das Indias. Com as suas muralhas, fortalezas, baluartes e o seu antigo centro esse centro cultural das Colombia foi declarada já em 1984 pela UNESCO como parte integrante do Patrimônio Histórico da Humanidade.

Percebe-se, em Cartagena, a consciencia de que a conservação desse patrimônio não significa apenas a proteção e recuperação de construções quanto à sua materialidade. Uma conservação mais duradoura apenas pode ser alcançada se os edifícios e os espaços continuarem a ser usados, ainda que com outras funções e outros sentidos do que aqueles do passado. Somente assim o edificado deixa de ser apenas relito, cenário museal, difícil por último de conservação, tornando-se espaço com vida e sentido, em complexas relações entre o passado e o presente, possibilitando continuidades apesar de todas as transformações.

Como o núcleo histórico de Cartagena traz à mente, proteção e conservação de bens arquitetônicos e de espaços urbanos possuem dimensões culturais amplas, relacionando-se em particular também com questões de leitura e de resignificação refletida e criativa de prédios, monumentos, ruas e praças.

Não destruição, mas conservação em resignificação e refuncionalização

Processos de refuncionalização e atribuição de novos sentidos podem ser obsdervados e vivenciados em muitas cidades históricas, onde ruas e quarteirões de antigos bairros tornaram-se centros de vida cultural e social, passando os seus edifícios a abrigar museus, centros culturais, galerias,. lojas, bares ou restaurantes em funções que não são aquelas para os quais foram construídos.

Assim como várias cidades históricas do Brasil, também Cartagena possui hoje um antigo centro com grande número de construções restauradas e refuncionalizadas para uso cultural, social,recreacional e turístico, oferecendo espaços internos e externos para exposições e apresentações de dança e música.

Esse desenvolvimento pode fomentar reflexões em dimensões mais amplas. Também partes ou o todo de um sistema cultural de concepções e imagens condicionador de ações, relativado através da análise dos condicionamentos que produz, podem ser considerados na imagem do edificado. Não é demolido, mas conservado com novos sentidos, passando a ser visto à distancia e, assim, em perspectiva mais abrangente.

Cartagena de Indias. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Revitalização e problemas de mudança de sentidos e funções - gentrificação

A intensa vitalidade diurna e noturna que se registra em Cartagena faz com que essa cidade colombiana surja sob muitos aspectos como exemplo de um processo revitalizador de contextos urbanos que se encontravam em decadencia.

Entretanto, também essa revitalização é acompanhada por problemas e levantam questões que merecem ser considerados com atenção em análises culturais.

Um desses problemas foi considerado em cidades continentais da esfera do Caribe que experimentam o processo revitalizador de centros históricos, em particular em Cartagena de Indias e da cidade do Panamá. (Veja)

Como em muitas cidades da Europa e das Américas, pode-se registrar nessas cidades um desenvolvimento que adquire características por assim dizer sistemáticas: a gradual revitalização de contextos urbanos decadentes acompanhada pela saída dos antigos moradores, um processo estreitamente relacionado com a valorização de terrenos e imóveis e que tem sido considerado como o de uma „nobilitação“

Os moradores passam a ser primeiramente estudantes, intelectuais e artistas que, com outros pressupostos culturais tornam-se principais motores da nova vida social, cultural e, consequentemente do aumento de atratividade de ruas e bairros.

O surgimento dessa nova vida social e cultural, acompanhada pela vinda de novos moradores, pode ser analisado no sentido de um distanciamento relativo aos sentidos e valores anteriores do edificado. Este passa a ser visto sob nova perspectiva.


O monumento „Las Botas viejas“ ou „Zapatos viejos“

Na análise de condicionamentos culturais, a atenção merece ser dirigida primordialmente aos sentidos e valores daqueles que viviam no contexto urbano antes do processo gentrificador. Para essas reflexões, oferece-se em Cartagena uma obra plástica com características de monumento: „Las Botas Viejas“.

Também conhecida por „Zapatos viejos“, essa obra de Tito Lombana foi criada em homenagem a Luis Carlos López, um dos grandes nomes de poetas da cidade. Satírico, foi cognominado de „el Tuerto“, sendo conhecido sobretudo pela sua obra mais popular, „A mi Ciudad Nativa“.

Essa plástica relaciona-se com concepções de cidade, vindo ao encontro da atualidade da discussão do ser nativo, do „estar em casa“ em determinado contexto („Heimat“).

A poesia inicia-se significativamente com a evocação da velha Cartagena como rincão dos antepassados, dos avós do poeta, pensamentos e sentimentos que se impõem percorrendo as ruas da cidade.

Noble rincón de mis abuelos: nada
como evocar, cruzando callejuelas,
los tiempos de la cruz y la espada,
del ahumado candil y las pajuelas...


Relações entre arquitetura e música nos estudos euro-brasileiros

Esse ponto de partida do texto deixa entrever relações entre tempo e espaço, pois a evocação decorre do percorrer do poeta as ruas da cidade, ou seja o seu deslocar temporal no espaço urbano, sendo que a arquitetura envolvente é que nele desperta pensamentos e emoções. Trata-se de um complexo de relações que vem sendo discutido há décadas no âmbito de estudos euro-brasileiros de elos entre arquitetura e música.

A evocação do passado a partir da vivência de antigas ruas já foi alvo de atenção em reflexões sobre Arquitetura, Urbanismo e Estudos Culturais em cooperações entre estudantes de arquitetura da Universidade de São Paulo e a a Associação Brasileira de Folclore em fins da década de 1960.

Textos como o do „Lampião e Gás“ de Inezita Barroso (1925-2015) deu margens repetidamente a reflexões nos anos posteriores, entre outros em debates e apresentações da cantora e pesquisadora Ely Camargo no âmbito dos trabalhos da seção de Etnomusicologia do Institut für hymnologische und musikethnologische Studien sob a direção do editor em 1989.

Diferentemente da percepção musical por um ouvinte - que, estável, é envolvido pelo decorrer musical no tempo -, a experiência relatada pelo poeta indica ser êle que se movimenta, enquanto que as construções permanecem imóveis. É êle assim que se coloca na posição da música, é êle que, impregnado de musicalidade a personaliza, é o músico ou o cantor. Êle não escuta o meio construído envolvente, mas é aquele que é por assim dizer escutado.

Esse canto nasce de sua percepção sensorial, sobretudo visual do meio envolvente edificado, tratando-se aqui de um complexo de relações de significado para estudos voltados a elos entre música e visões, tema que marcou os estudos de processos culturais por ocasião da celebração dos 500 anos do Brasil (1999-2004).

Nostalgia, visão idealizada do passado e posicionamento político

A evocação de um passado já findo em „A mi Ciudad Nativa“ reflete uma visão idealizada da história da época colonial . A cidade - e seus filhos - são descritos como tendo sido heróicos.

Pues ya pasó, ciudad amurallada,
tu edad de folletín... Las carabelas
se fueron para siempre de tu rada...
¡Ya no viene el aceite en botijuelas!

Em linguagem de imagens, o poeta compara os homens do passado como tendo sido „águias“ e que, com essas qualidades, difereriam daqueles do presente que seriam „vencejos“, pássaros que sobrevoam em bandos ao léu como andorinhões e corvos.

Essa visão do passado assume assim um sentido de crítica social e humana, onde os homens atuais surgem como já não tendo características de águia, sem a energia ou o fogo interno em direção às alturas e sem a capacidade de visão dos olhos dessa ave.

Fuiste heroica en los tiempos coloniales,
cuando tus hijos, águilas caudales,
no eran una caterva de vencejos.

O „desalinho“ da cidade e o „estar em casa“


A cidade atual, sem essas qualidades heróicas do passado, é descrita pelo poeta como desalinhada, uma visão que sugere um desgaste de seus contornos formais, uma perda de precisão de linha ou desenho que corresponderia à perda de têmpera de seus habitantes.

Ao mesmo tempo, porém, o poeta vê justamente nesse processo morfológico que representaria uma diluição da ação formal nas relações forma/matéria a explicação dos sentimentos de afeto que a velha cidade despertaria.

Seria justamente o fato de estar „plena de rancio desaliño“ que justificaria o carinho de seus moradores. O poeta cartageno emprega para eludicar essa interpretação a imagem dos sapatos velhos que, embora já desgastados e sem a precisão da forma que possuiram quando novos são bem quistos.

Uma vez que sapatos velhos não são de rua ou para serem mostrados, mas de casa, da intimidade, do aconchego e do conforto doméstico, quando o homem permite relaxar-se, essa imagem sugere que seria justamente o „desalinho“, a perda gradual do predomínio da forma ns suas interações com a matéria o que possibilitaria o afeto dos nativos da cidade.

O monumento aos „sapatos velhos“ e, assim, ao carinho que desperta nos nativos a velha cidade „plena de desalinho“ encontrava-se de início significativamente no bairro Getsemaní de Cartagena. Esse quarteirão, hoje procurado pela sua vida noturna, destaca-se pelas características que o diferenciam de outros contextos barriais - diferentemente das ruas e edifícios que se impõem pela ordem e „limpeza“ visual da cidade, conservada e apresentada a visitantes, Getsemaní é marcado pelos seus muros com grafites, suas caricaturas e figuras de esferas sociais desprivilegiadas e de marginais.


Com a transferência dos „sapatos velhos“ para logradouro nas proximidades do Castelo de S. Felipe, a obra adquire novos sentidos. As associações com o conforto do estar em casa no relaxamento da privacidade doméstica passam a segundo plano. À sombra do castelo, vem à tona antes a lembrança que, na poesia, essa imagem é precedida pela evocação de tempos heróicos de longínguo passado, quando os homens teriam sido como „águias“.

O debate atual concernente a essa zona de Cartagena éi marcado pela crítica às autoridades que permitem modificações e construções nas proximidades de bens históricos, acusando-se aqui omissões e mesmo interesses particulares e financeiros.

Critica-se, sobretudo, o fato de permitir-se construções de altura superior àquela prevista no plano de ordenamento territorial. Essa discussão levanta um aspecto importante das considerações patrimoniais, ou seja, a da dimensão vertical de construções que prejudicam visões ou preponderâncias de edifícios históricos e monumentos e, assim, a necessidade de uma nova tomada de consciência do significado de uma normatização de alturas no planejamento e na ordenação urbana.

A sensação do „estar em casa“,  a perda de forma e a conservação do patrimônio

As reflexões motivadas pela plástica dos „sapatos velhos“ em Cartagena possui dimensões que ultrapassam o contexto local, regional e nacional colombiano.

Elas trazem á consciência aspectos pouco considerados de processos transformatórios de urbes nas suas implicações sociais e culturais, em particular daquelas de gentrificação e suas relações com o conservacionismo patrimonial.

O afastamento de antigops moradores - dos seus „nativos“ na linguagem do poeta - pode ser considerado sob a perspectiva de uma perda de sentidos de intimidade doméstica que explica o desalinho ou o relaxamento da precisão formal que se manifesta na aparência visual do espaço edificado.

Construções e ruas recuperadas sob o ponto de vista histórico-arquitetônico e artístico possuem outras qualidades e sentidos do que aquelas do estado anterior desgastado.

Considerar essa transformação da perspectiva dos seus antigos moradores e que, em geral de círculos mais modestos da população, afastam-se no decorrer do processo gentrificador deve ser tarefa de estudos culturais que, como os Cultural Studies na sua tradição inglesa dirigem-se antes a esferas sociais desprivilegiadas ou subalternas.

Esse direcionamento da atenção não pode, porém, ofuscar o significado de outros aspectos dos complexos processos relacionados com a proteção e a conservação do patrimônio histórico e arquitetônico.

A própria poesia dos „sapatos velhos“ do autor colombiano traz à consciência os problemas que aqui se colocam, uma vez que revela na sua nostalgia uma visão idealizada, heroicizante do passado colonial e uma valorização de um tipo humano de características de „águia“ que poderia ser questionado. Poder-se-ia cogitar se não seria justamente essa sensação de viver na descontração doméstica sugerida pela imagem que representaria a continuidade de processos coloniais.


De ciclos de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „Zapatos viejos - A mi ciudad.O estar em casa em situações urbanas desgastadas, condicionamentos culturais e resignificações na recuperação de patrimônio edificado“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 172/6 (2018:2).http://revista.brasil-europa.eu/172/Zapatos_viejos.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller,
N. Carvalho, S. Hahne