A Praia dos Vaqueiros e Virgílio em Camões
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 173

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Mossel Bay. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

Mossel Bay. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright


Mossel Bay. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

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Fotos A.A.Bispo 2018©Arquivo A.B.E.

 


N° 173/11 (2018:3)




A „Praia dos Vaqueiros“ na Angra de São Brás - Mossel Bay
Primeiros registros de nativos sulafricanos de portugueses
sob o signo do bucolismo pastoril de Virgilio
no seu significado para a história da etnografia dos Khoikhoi:
„hotentotes“ em
Os Lusíadas

Pelos 30 anos do „Ano Bartolomeu Dias“ e 20 anos de simpósio pelo „Ano Vasco da Gama“ da ABE/ISMPS

 

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Mossel Bay. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright
Decorridos respectivamente 30 e 20 anos de colóquios euro-brasileiros realizados pelos 500 anos de duas decisivas datas das História dos Descobrimentos - o do dobramento do Cabo das Tormentas/Boa Esperança por Bartolomeu Dias (ca.1450-1500)  e o do caminho marítimo das Índias por Vasco da Gama (1469-1524), surge como oportuno rememorar o significado para os estudos culturais do primeiro local pisado por um europeu no litoral sul-africano discutido naqueles eventos.

Com o objetivo de considerar in loco o contexto natural onde esse fato ocorreu e a memória dele guardada e cultivada no presente, visitou-se a atual cidade de Mossel Bay, situada na baía de mesmo nome na Província do Cabo Ocidental, a leste do Cabo da Boa Esperança.

Nomes e redenominações - Paulus van Caerden (ca.1569-1615/16), África, Brasil e Índias

A denominação da cidade e do município como Mossel Bay desvia a atenção dos conceitos designativos originais e dificulta a percepção de seus significados.

Essa denominação é posterior àquela da época do seu descobrimento, remontando ao admiral holandês Paulus van Caerden. Explica-se pela profusão de muxilhões ou conchas no seu litoral, o que parece corresponder também ao apreço de holandeses pelo consumo de mariscos. Já à época do domínio britânico, a baía foi chamada, em 1846, de Allwal South, época em que ali existia uma estação baleeira.

Ambas as designações são superficiais e encobrem dimensões mais profundas de contextos culturais nos quais se inseriram os portugueses que por ali passaram nos primórdios da história do dobramento do Cabo e da descoberta do caminho às Índias.

Essas designações surgem até mesmo como um sinal de tentativa de delusinização da história, bastando lembrar que Paulus van Caerden, a serviço da Companhia Holandesa das Índias Orientais, entrou na história como um dos grandes inimigos dos portugueses e seus interesses.

Com o seu „descobrimento“ da Mossel Bay em 8 de julho de 1601, que já tinha sido descoberta muito antes, demonstrava aos holandeses que era possível dobrar o Cabo sem maiores temores do poder português, favorecendo assim iniciativas de navegação comercial holandesa ao Oriente, onde, sobretudo no Sudeste Asiático, levaram ao abalo da presença portuguesa.

Após ter estado no Brasil com seis naves entre 1603 e 1605, atacou em 1608 o forte São Sebastião em Moçambique, ameaçando a pilhagem da cidade e demonstrando a debilidade dos portugueses.

A atual Mossel Bay, a „Diaz Strand“ e o Museu Bartolomeu Dias

Também a configuração urbana da atual Mossel Bay põe obstáculos ao reconhecimento do seu significado histórico mais remoto. Para além de indústrias e usinas de gás e petróleo na região, a cidade é marcada por moderna urbanização e edifícios residenciais e de veraneio que a ela imprimem uma feição sem maiores características identificadoras.

Mossel Bay. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

A memória dos vultos da história da portugueses que por ali passaram - em especial de Bartolomeu Dias - é porém presente e principal fator da atração de visitantes dos mais diferentes países.


O nome de Bartolomeu Dias designa a mais bela praia local - a „Diaz Strand“ - e a cidade orgulha-se de abrigar desde um museu marítimo que traz o seu nome: o Bartolomeu Dias museum, aberto em 1989, o ano comemorativo do navegador.

Significativamente, escolheu-se como data de sua inauguração o dia 3 de fevereiro, ou seja, o dia da festa de São Brás no calendário católico. Foi essa a data da chegada do navegador e razão pela qual designou o local como „Aguada de São Brás“.

A história do museu local remonta aos anos de 1960, tendo sido primeiramente voltado á indústria, conhecido a seguir como Post Tree museum e, por fim, acentuando a sua função como museu marítimo, redenominado segundo Bartolomeu Dias.

Trata-se de um complexo museal próximo à praia, com posto de informações turísticas, bares, restaurantes, casas comerciais e serviços vários, marcando o nome de Bartolomeu Dias a imagem e a vida urbana da cidade.

O complexo parte da natureza mostrando exemplares de plantas da região (The Granary) e a quantidade de conchas dos seus mares (Shell Museum). Este, instalado em construção de 1902 como anexo a um antigo moinho é também conhecido segundo um antigo proprietário de oficina ali instalada como Shirley Building.

O complexo possui um jardim botânico que permite o conhecimento do ambiente natural da região. Este abrange jarduns no vale e na praia adjacentes ao museu na baia conhecida hoje como de Munro. Uma fonte lembra o significado da água fresca no abastecimento de naves e o fato de ter Bartolomeu Dias ter designado o local como Aguada de S. Brás.

Para além dessas seções, o complexo museal inclui as Munrohoek Cottages, primeiramente levantadas por um escocês de nome Munro ao redor de 1830, e, como significativos relitos das relações holandesas com o Sudeste Asiático, abrange também sepulturas malaias descobertas em 1968

A lembrança de navegadores que também estiveram no Brasil

No Post Tree Museum, conserva-se a mermória de Pedro de Ataíde (?-1503), comandante de uma das naves - São Pedro - da frota de Pedro Álvares Cabral (1467/8-1520) e posteriormente participante de viagem à Índia de Vasco da Gama em 1502. Na exposição, é lembrado um episódio transmitido pela tradição segundo o qual, no retorno de viagem do Oriente, ali teria deixado uma carta em sapato ou vasilha metálica enterrada junto a uma grande árvore.

Com a lembrança de Ataíde e Cabral, o museu traz à luz elos que unem essa localidade sul-africana com o Brasil e que remontam ao prosseguimento da viagem da frota de Cabral após o descobrimento da nova terra em 1500.

Bartolomeu Dias e a Angra ou Praia dos Vaqueiros - significado para a Etnologia

Bartolomeu Dias, após ter avistado o Cabo das Tormentas/Boa Esperança, viu-se arrastado em direção ao sul, ao mar aberto, sentindo a temperatura cair. Redirigindo a nave em direção norte, atingiu novamente terra, encontrando uma baía habitada.

Pelo gado que ali existia e pela atividade de seus moradores denominou-a de Angra ou Praia dos Vaqueiros.

Essa designação é que merece maior atenção sob a perspectiva cultural, não aquela da profusão de muxilhões sugeridas pela atual denominação. Ela registra a prática pecuária e do pastoreio de povos nativos sul-africanos, nômades, em dimensões que surpreenderam os europeus.

Essa menção adquire significado histórico-etnográfico, documentando uma atividade que marcou a vida, modos de trabalho e expressões culturais dos povos encontrados. Ela marcou também a imagem dessas populações e da região na percepção européia.

A população encontrada pelos navegantes era a de um grupo Khoikhoi, que praticava a pecuária com gado em migrações à procura de pastos. Diferenciavam-se dos San, que viviam da coleta e da caça. Os portugueses não avistaram estes últimos. A diferença entre os dois grupos - considerados conjuntamente sob a denominação de Khoisan, dar-se ia posteriormente, quando os „vaqueiros“ de Bartolomeu Dias passaram a ser conhecidos como hotentotes e os San como homens do mato („Buschmänner“)


Lusíadas: Bucolismo virgiliano projetado na África do Sul

Em Os Lusíadas, decanta-se a região na segunda descida à terra dos homens de Vasco da Gama.

Seguindo a terra montanhosa na qual se havia convertido o grande gigante que personalicava o Cabo das Tormentas (Veja), e já em águas que indicavam provir do Leste, os navegantes sob Vasco da Gama atingiram terra, sendo recebidos com expressões de alegria pelos habitantes.

Estes diferenciavam-se daqueles outros africanos pela cordialidade do recebimento com danças e festas, vindo recepcioná-los na praia, com mulheres e com as rese que criavam. O poeta indica, em termos poéticos, um grau mais elevado quanto à prosperidade e ao desenvolvimento humano e cultural que posteriormente se reconheceria nos Khoikhoi em relação aos San.

Já Flégon e Piróis vinham tirando,/Co‘ops outros dous, o carro radiante,/Quando a terra alta se nos foi mostrando/Em que foi convertido o grão Gigante./Ao longo desta costa, começando/Já de cortar as ondas do Levante,/ Por ela abaixo um pouco navegámos,/Onde segunda vez terra tomámos.“

„A gente que esta terra possuía,/Posto que todos Etiopes eram,/Mais humana no trato parecia/Que os outros que tão mal nos receberam;/ Com bailes e com festas de alegria/Pela praia arenosa a nós vieram,/As mulheres consigo e o manso gado/Que apascentavam, gordo e bem criado.“

Camões oferece um quadro expressivo dessa recepção, descrevendo que as mulheres se aproximaram sentadas sobre bois e, em coerência com essa cena bucólica oferecida, refere-se a cantigas, prosas e rimas de cunho pastoril, cantadas em várias vozes e acompanhadas por flautas pastorís rústicas:

„As mulheres, queimadas, vêm em cima/Dos vagarosos bois, ali sentadas,/Animais que eles tem erm mais estima/Que todo o outro gado das manadas./Cantigas pastoris, ou prosa ou rima,/Na sua língua cantam, concertadas/Co‘o doce som das rústicas avenas,/Imitando de Títiro as Camenas.“ (LXIII)

O  episódio aqui retratado corresponde à narração em João Barros (1496-1570) e Fernão Lopes de Castanheda (ca.1480-1559):

"porque algũs boies, mochos, que os nossos virão andavão gordos & limpos, & vinhão as molheres sobre elles com hũa albardas da tabua [d'atabua]" (Barros, I.IV.III).

"Cantigas pastoris, ou prosa ou rima, / Na sua língua cantam, concertadas":" & como os nossos forão a terra começarão eles de tanger quatro frautas acordadas a quatro vozes da musica, q[~] pera negros cõcertavão bẽ " (Castanheda, I.III)

Após as tormentas: o idílio pastoril que deixa entrevir o porvir esperançoso

Com a menção a Títiro, o poeta revela projetar a Égloga I de Virgílio ao sul da África. Ao contrário dos desterrados, o pastor Titiro, descansando à sombra, acompanhando o verso pastoril com o instrumento, cantava a pastora alegre, e o vale e o monte ressoavam. O pastor responde dizendo que esse descanço tão ditoso fora-lhe concedido por Deus, sendo por ele respeitado. O cordeiro dos seus rebanhos banharia com seu sangue o sagrado altar - uma expressão claramente indicadora da imagologia cristã. Era pela sua graça que era vaqueiro e cantava, de forma pastoril, o que lhe dava alegria e o que era o que queria.

Essa mesma visão bucólica marca a descrição do povo da região, registrando o poeta a sua hospitalidade e as trocas realizadas:

„Estes como na vista prazenteiros/Fossem, humanamente nos trataram,/Trazendo-nos galinhas e carneiros/A troco doutras peças que levaram.“ (LXIV)

Entre as peças que os portugueses trocavam encontravam-se guizos de metal, os cascavéis repetidamente mencionadas nos encontros de portugueses (e de espanhóis) com nativos.

No contexto da vinda de Bartolomeu Dias, esse procedimento é mencionado em Esmeraldo de Situ Orbis de Duarte Pacheco Pereira: „...bacias de latão e campainhas e panos vermelhos“.

O cunho bucólico que marca a descrição sugere uma relação com a época do ano do calendário religioso. Tendo ali chegado em fins de novembro, partem a 8 de Dezembro, festa da Imaculada Conceição, em direção do rio do Infante. Tratava-se assim já de época adventícia, marcada na linguagem visual por tradições pastorís. Ela antecede e prepara imediatamente a meia-noite do ano, o ponto de mudança de orientação, o início do dia e da ascendência.



De ciclo de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „ A „Praia dos Vaqueiros“ na Angra de São Brás - Mossel Bay. Primeiros registros de nativos sulafricanos de portugueses sob o signo do bucolismo pastoril de Virgilio no seu significado para a história da etnografia dos Khoikhoi: „hotentotes“ em Os Lusíadas“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 173/11(2018:3).http://revista.brasil-europa.eu/173/A_Praia_dos_Vaqueiros.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller,
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