Ultrapassagens de fronteiras e esferas
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 173

Correspondência Euro-Brasileira©

 



























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Fotos A.A.Bispo 2018©Arquivo A.B.E.

 


N° 173/1 (2018:3)

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África do Sul & Brasil:
ultrapassagens de fronteiras e transpassagens de esferas em dois continentes nos seus diferentes sentidos e na sua problemática


Pelos 50 anos de fundação da Sociedade Nova Difusão Musical em São Paulo










 

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A.A.Bispo 2018
Este número da Revista Brasil-Europa apresenta relatos de observações, contatos e estudos realizados na África do Sul em março de 2018.

Estes trabalhos desenvolveram-se sob o signo da passagem dos 50 anos de fundação de sociedade voltada a estudos de processos culturais em São Paulo (Sociedade Nova Difusão).

Essa sociedade constituiu o marco inicial do desenvolvimento do pensamento das décadas que se seguiram. Ela originou-se de um movimento de renovação dos estudos culturais que reconhecia a necessidade de transpassagem de fronteiras em diferentes sentidos: entre esferas culturais, sociais, de áreas disciplinares tanto na pesquisa como na vida musical e na criação. Reconhecia-se a necessidade de uma orientação da atenção a processualidades na procura de conhecimentos, em análises e na prática cultural.

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O significado da África do Sul para estudos de processos culturais no  presente


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Poucos são os países, no presente, onde essa preocupação pela superação de divisões nos seus múltiplos sentidos adquira tanto atualidade do que a África do Sul.

Esse país oferece-se assim de modo particularmente favorável para relembrar as reflexões do movimento brasileiro em relações internacionais nas suas expressões atuais como o país africano.

Devido a seu passado relativamente recente da política do Apartheid, o foco primordial na discussão e nas iniciativas voltadas a superações de divisões reside na questão da separação de
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grupos populacionais segundo critérios raciais.

Pós-Apartheid, Direitos Humanos e Minorias

É a partir de um posicionamento marcado pelo combate à segregação étnico-cultural, cujas consequências se fazem sentir até hoje que são abertas perspectivas para a consideração de outros aspectos da ultrapassagem de divisões, limites e esferas. Iniciativa que representa exemplarmente esse posicionamento e as perspectivas e novas fronteiras que dele se abrem é o Cape Cultural Collective (CCC), uma organização que celebrou os seus dez anos de existência em 2017.

O evento Voices for Human Rights realizado no museu na antiga „igreja dos escravos“ da Cidade do Cabo, no dia 17 de março de 2018, e que teve como objetivo focalizar os Direitos Humanos através de expressões de música, dança e poesia, foi ocasião de vivenciar expressões criativas que visam a superação de separações, segregações e discriminações de grupos populacionais e que, partindo da problemática étnica, procuram transpassagens de linhas divisórias sob outros aspectos.

Com essas ações, o CCC procura abrir novas fronteiras sobretudo a jovens que, provindos de círculos antes marginalizados, enfrentam problemas de
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desemprêgo e de falta de perspectivas para o futuro. (Veja)

O empenho pela superação de separações de grupos populacionais em ultrapassagem de barreiras que marca tão intensamente o pensamento e a vida cultural da África do Sul da atualidade parte também de outras preocupações primordiais que não aquela do foco étnico-racial determinado pela luta anti-Apartheid.

Entre elas destaca-se aquelas relativas a questões de Gênero, em particular de direitos da mulher e de minoriais quanto à orientação e ao comportamento sexual.

O principal exemplo de movimento que, a partir desse empenho também amplia o leque dos múltiplos aspectos de ações voltadas ao questionamento e ultrapassagem de barreiras que também restringem a liberdade é a Good Hope Metropolitan Church (GHMC), entidade afliada, institucionalização de um movimento que se afiliou à Universal Fellowship of Metropolitan Community Churches (UFMCC) e tem o seu  centro de atividades numa das mais tradicionais igrejas do centro da Cidade do Cabo, agora também centro de atividades culturais.

Sob o moto „transforming ourselves as we transform the world“, estas ações procuram contribuir à mudança de mentalidades para a superação de segregações e, concomitantemente, à inclusão de grupos silenciados ou marginalizados. Também aqui a superação de obstáculos e muros no pensamento e na vida tem como objetivo abrir novas perspectivas e caminhos. Compreende-se, assim, que esse empenho se desenvolva sob o signo da expressão „Boa Esperança“ que designa o Cabo. (Veja)

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Pressuspostos religioso-culturais: Protestantismo na história colonial e missões

Tanto as atividades do CCC como as da GHMC revelam estreitos elos com a história do Protestantismo e das atividades missionárias na África do Sul. É significativo que o evento „Voices for Human Rights“ do CCC teve lugar em museu dedicado à ação de sociedades missionárias européias e da resultante South African Missionary Society entre pobres, nativos livres, escravos libertos e minorias étnicas do passado colonial.

É também significativo que a igreja Metodista abrigue na sua histórica igreja a GHMC. Com essa sede, esta entidade, apesar da particularidade de sua orientação insere-se em processo histórico também marcado por separações étnicas do Protestantismo do passado com as suas comunidades e igrejas separadas segundo o critério racial. Neste contexto, a consideraçã da Igreja Reformada Holandesa e, a seguir, a Igreja Anglicana, merece particular atenção. (Veja)


As atividades da congregação livre dos „irmãos“ na África do Sul junto aos „pagãos“ desenvolveram-se quase que concomitantemente com aquelas entre os indígenas na Guiana holandesa. (Veja) (Veja)

Os estudos da literatura missionária oferece importantes subsídios para a compreensão da prática de hinos evangélicos até hoje por indígenas no Brasil, em particular em Roraima, o que poderia ser explicado por contatos, difusões culturais e migrações.

Os estudos concernentes à história missionária da África do Sul contribui assim àqueles voltados às culturas indígenas promovidos no âmbito de programa internacional iniciado em congresso pelos 500 anos do Descobrimento da América no Rio de Janeiro, em 1992.

Huguenotes franceses no Brasil e na África do Sul

As tensões interno-européias confessionais e político-religiosas marcaram a história colonial e a consideração de desenvolvimentos na Europa podem justificar a consideração relacionada da África do Sul e do Brasil.

A perseguição dos huguenotes franceses no século XVI, que levou à tentativa de fundação da „França Antártica“ no Rio de Janeiro, teve como correspondência, no século XVII, o da nova pressão sobre os protestantes na França após a revogação do Edito de Nantes que garantira a tolerância religiosa.

Ultrapassando fronteiras à procura da liberdade do exercício religioso e de seus modos de vidas, desencaderam processos históricos de grandes consequencias em países protestantes da Europa, em particular na Alemanha. Exilando-se sobretudo nos Países Baixos, passaram dali à colonia do Cabo e, mais uma vez ultrapassando limites, assentaram-se em novas regiões a serem colonizadas.

Embora a integração quanto à lingua tenha sido bem sucedida após algumas gerações, a marca sul-francesa na paisagem e na cultura sul-africana continua presente. A consideração desses desenvolvimentos - e em particular a da procura da liberdade que leva à ultrapassagem de fronteiras e limites - pode abrir retroativamente perspectivas para a análise da presença francesa no Brasil do século XVI. (Veja)

A ação missionária evangélica dos „pagãos“ na África do Sul e na Guiana Holandesa

Na ação missionária junto aos nativos sul-africanos destacou-se a igreja da Morávia ou a comunidade de irmãos Herrnhuter (Unitas Fratrum), um movimento originado das Reforma na Boêmia.

As atividades desse movimento, marcado pela tradição de um anelo de retorno ao Cristianismo original dos primeiros séculos, da virtude da vida simples, da paz e da convicção da igualdade de todos os irmãos, extenderam-se cedo à África do Sul, antes da sua expansão na Dinamarca a partir de modêlos holandeses.

Na sua missão aos „pagãos“, os Herrnhuter enviaram Georg Schmidt ao Cabo com a tarefa de ali propagar o Cristianismo entre os nativos (Khoekhoen/Hottentotten) em Baviaanskloopf (posteriormente Genadental). Ali criaram uma pequena congregação e alcançaram sucessos quanto a conversões. Estas, porém, devido às características doutrinárias do movimento, em particular a concepção de igualdade de todos os cristãos despertaram receios nas autoridades do Cabo, o que levou à interrupção dos trabalhos. Schmidt deixou o país em 1744.Somente em 1792,  outrosmissionários dos Herrnhuter tiveram permissão de voltar a atuar em Baviaanskloopf. ((Veja)

Emancipação de escravos, fundamentos e consequências - o grande trakk dos bures

A história da escravidão - fundamental nos estudos de processos culturais em relações intercontinentais e internacionais - tem sido considerada, naqueles voltados à América Latina, sobretudo sob a perspectiva de contextos marcados pelo Catolicismo dos colonizadores e pelas missões católicas.

Essa perspectiva tem consequências também para a análise de decorrências na África. Tem também consequências para a consideração da ação católica no decorrer dos séculos, que surge em muitos casos negativizada pelos seus elos com uma sociedade que conheceu e foi marcada pelo trabalho escravo. Contrariamente, o Protestantismo, cuja expansão deu-se em épocas mais tardias, surge nessa otica como livre desse estigma.

Essa visão de desenvolvimentos necessita porém ser diferenciada tanto no concernente à história da escravidão como no da história religiosa e missionária.

Com a expansão de igrejas protestantes das mais diversas denominações em países latino-americanos, torna-se necessário considerar o Protestantismo e as missões protestantes nas suas extensões no mundo extra-europeu e nas suas relações com a escravidão. Os desenvolvimentos religiosos da atualidade passam a inscrever-se em contextos históricos mais adequados, o que possibilita outros referenciais e favorece auto-reflexões.

A emancipação dos escravos pelas autoridades britânicas foi um dos principais fatores que levaram ao êxodo dos descendentes dos campôneos holandeses (bures) que colonizaram a cidade do Cabo.

Perdendo trabalhadores, não sendo indenizados suficientemente e com dívidas contraídas, esses bures iniciaram uma longa marcha ao interior à procura de novas terras longe da administração inglesa, ultrapassando a área do território já ocupado, atravessando assim fronteiras e isso também em nome da liberdade.

A fundamentação religiosa da migração dos Voortrekker revela-se na existência de um grupo que pretendia chegar a Jerusalem, a terra da promissão, tal qual o povo de Israel na sua saída do Egito. (Veja)

O processo colonial e a transformação da natureza: transplantações

O processo colonial, tanto o da colonia inicial como o das colonizações delas partidas, seja a dirigida como a dos huguenotes, seja a aventureira em direção ao desconhecido dos Voortrekker,  foi movido pela procura da liberdade ainda que em diferentes sentidos e ao alcance de novas terras.

Esse processo foi estreitamente relacionado com a transformação do mundo natural.

Já no início do assentamento colonial no Cabo, trouxeram-se sementes e mudas dos Países Baixos para que verduras, legumes, ervas e árvores frutíferas, aclimatando-se, fornecessem alimentação e medicamentos para os colonos e para as tribulações dos navios no trajeto entre a Europa e o Oriente.

Com isso, desencadeou-se um processo de transplantação vegetal que ultrapassou limites de habitat e transformou a paisagem sul-africana. (Veja)

Também colonizações que partiram da colonia levaram a transformações da vida vegetal e animal, nem sempre de consequências positivas.

O caminho do homem à procura da ultrapassagem de limites e conquista de novas áreas em ímpeto de superar situações sentidas como delimitadoras, foi expansionista à custa da natureza.

A vida animal: reservas e parques. Barreiras e transpassagens na sua ambivalência

Em fins do século XIX e início do XX, a caça já levara a uma redução trágica da vida animal. A tomada de consciência dessa situação e da necessidade de delimitações de áreas protegidas foi um desenvolvimento gradual e nele destacou-se o vulto de James Stevenson-Hamilton (1867-1957), cujos 150 anos foram comemorados em 2017.

A criação de territórios delimitados, de reservas e a seguir de parques nacionais, dos quais o Parque Nacional Kruger é o principal exemplo, levou em parte a uma recuperação da vida animal em risco. Também aqui, porém, poder-se-ia considerar ultrapassagens de fronteiras. Situado em região limítrofe sul-africana, procurou-se aumentá-lo transnacionalmente, considerando que, para os animais, limites nacionais não existem.

A retirada de cercas, porém, leva na atualidade à entrada de caçadores criminosos que, sobretudo vindos de Moçambique, entram no parque à procura sobretudo de chifres de rinocerontes, valiosos devido à procura na Ásia, absolutamente sem sentido e que leva à extinção desses animais.

Como considerado com especialistas do parque, tem-se aqui fundamentalmente um problema de ultrapassagem de fronteiras: a abertura com a retirada das cercas, se bem intencionada, levou a problemas gravíssimos devido à transpassagem que possibilitou a bandidos sem escrúpulos. Impõe-se, aqui, a partir dessa situação, uma situação pouco ou mesmo não considerada nas reflexões teóricas concernentes a ultrapassagens e superação de limites e áreas em nome da liberdade: a colocação de limites e a restrição da liberdade - no caso da liberdade no exemplo da ação dos caçadores e homens sem princípios éticos, movidos apenas pela procura de ganho - surge como uma exigência para a conservação da natureza e que é pressuposto para a vida do homem. (Veja)


Separações de grupos populacionais, barreiras e transpassagens - Townships

A questão do estabelecimento de reservas ou áreas delimitadas e os intentos de superação de fronteiras e, assim, de delimitações, em suas ambivalências e sentidos transcendentes relativos ao conceito de liberdade, domina as preocupações na África do Sul. Ela surge como uma constante na história sul-africana, em particular naquela que, no século XX, levou à implantação de áreas para determinados grupos populacionais segundo critérios raciais e étnico-culturais.

Diferentes processos históricos que se interagem devem ser analisados na consideração dos Townships, tanto aqueles não-dirigidos e como aqueles implantados por determinações governamentais.

Entre os primeiros, pode-se lembrar a saída de nativos de áreas reservadas, assentando-se em periferias de cidades, o estabelecimento de escravos libertos no passado em regiões suburbanas ou afastadas de centros ou o estabelecimento de migrantes em determinados quarteirões de urbes.

Entre os segundos, há uma complexa história de concepções e medidas legislativas que levaram por fim ao sistema do Apartheid e que não pode ser considerada indiferenciadamente. Não houve, pelo que tudo indica, apenas más intenções, bastando lembrar aquela de possibilitar ensino escolar na língua e assim culturalmente adequada com a concentração de grupos.

As negativas consequências e as suas implicações ideólogicas, raciais, marcaram porém a história mais recente sul-africana e continua a determinar o seu presente. Após a supressão dessa política, diferentes tentativas teem sido feitas para melhorar a situação de vida dos habitantes desses Townships, mas todas eles são acompanhadas por problemas e levantam questões, sobretudo sob o ponto de vista do planejamento urbano.

Com essas diferenças, os Townships sul-africanos apresentam similaridades com situações urbanas brasileiras, tanto com assentamentos precários, com favelas de diferentes tipos e, sobretudo, com bairros surgidos de loteamentos e de forma descontrolada em periferias e que passam a receber a posteriori melhoramentos infra-estruturais.

Uma visita a biblioteca implantada pela administração num desses Townships de periferia que experimentam medidas sistematizadoras levanta questões fundamentais que dizem respeito à problemática mais abrangente referente à superação de limites nas suas ambivalências.

Se a indignação pela política de separação de grupos é sempre presente, se o pensamento e as iniciativas são imbuídos do espírito de combate à segregação e de liberdade de ação, de locomoção e moradia, surge como pouco coerente uma orientação educativa dirigida à formação de gerações acentuando-se características diferenciadoras segundo o idioma e uma intensificação da consciência étnica.

Nas reflexões ali encetadas, considerou-se essa incoerência em intentos e iniciativas, assim como a necessidade de tratamento da questão de delimitações e suas superações em dimensões mais abrangentes, teórico-culturais, teórico-educativas e mesmo filosóficas. (Veja)

Transpassagens e deescobrimentos: Cabo das Tormentas/Boa Esperança

É neste sentido mais abrangente que abrem-se novas perspectivas para a consideração do passado mais remoto dos contatos entre a Europa e o extremo sul do continente africano, aquele dos feitos portugueses do dobramento do Cabo e dos primeiros contatos com os nativos da época dos Descobrimentos.

Com isso, abrem-se também outras possibilidades de análises na consideração de contextos globais nos quais procedeu-se o descobrimento do Brasil. Pode-se retomar, nesse sentido, estudos e reflexões encetadas por ocasião das rememorações dos 500 anos de descobrimentos no „Ano Bartolomeu Dias“ de 1988 e do „Ano Vasco da Gama“ uma década mais tarde.

A memória de Bartolomeu Dias encontra-se presente sobretudo em Port Elisabeth, onde uma réplica do padrão reconstruído do descobridor levanta-se na sua praça central, colocando uma marco referencial dos feitos portugueses em contorno marcado pela presença britânica. Esse marco traz à consciência não apenas a prioridade portuguesa na história dos contatos, como também o universo cultural em que se inseriu e que sob muitos aspectos diferenciou-se daqueles das nações colonizadoras posteriores.

Transpassagens e condicionamento cultural - referências cristãs à cultura antiga

Um caminho para a percepção desse universo - difícil em geral devido à precariedade das fontes documentais - abre-se através da dedicação do padrão a S. Gregório e que indica a festa do dia do alcance da terra. Essa menção a Gregório Magno traz à mente o significado de sua veneração na Idade Média e as suas implicações conceituais.

A sua memória é relacionada com a expansão do Cristianismo na Europa através da missão nas ilhas britânicas e, assim, com a história de impulsos e concepções missionárias, de ultrapassagem de fronteiras e de universalidade católica. Ao mesmo tempo, é relacionada com a sistematização do culto e com a visão da „missa de S. Gregório“ e que traz à mente o significado da Cruz, do sofrimento e da redenção na mente e na psique daqueles que enfrentaram os maiores riscos no intento de ultrapassagem de fronteiras. (Veja)

A inserção dos navegantes portugueses em edifício de concepções e imagens de remotas origens evidencia-se na Mossey bay, onde hoje encontra-se um museu dedicado a Bartolomeu Dias. A menção aos vaqueiros que ali os europeus viram representa o primeiro documento dos Khoikhoi ou „hotentotes“ na historiografia, assumindo extraordinária relevância histórico-etnológica. Esse significado, porém, apenas pode ser adequadamente reconhecido considerando-se a sua percepção pelos europeus.

Não há fonte mais valiosa para esse reconhecimento do que o epos de Luís de Camões. Nos Lusíadas, esse encontro com os nativos sul-africanos é tratado sob o signo do bucolismo pastoril de Vigílio, transportando para o sul da África uma situação idílica de pastores que, nas suas reinterpretações cristãs, passando a ter conotações presepiais, são marcadas por expectativas do advenir, do futuro, do fim de uma descida e do início de uma subida no ano natural, de um dobramento de direções.

Já essas reflexões trazem à consciência o significado de um conceito que como poucos marcam a história e a geografia do sul da África: o da esperança. Também aqui abrem-se novas perspectivas interpretativas a consideração do edifício cultural de remotas origens atualizado na obra de Camões.

A personificação do Cabo na linguagem de imagens - Adamastor  e Tetis

O Cabo surge personalizado na figura do gigante Adamastor e, assim, todo o percurso descendente ao longo da costa africana até o tormentoso cabo passa a ser relacionado com a história descendente dos filhos de Gaia e com a luta com as divindades do movimento ascendente em direção da suserania olímpica sob Zeus. A singular mudança de nomes que tanto marca a história dos descobrimentos - de Cabo das Tormentas ao da Boa Esperança - perde o cunho prosaico de uma troca de denominações por motivos superficiais e adquire significados simbólico-antropológicos.

Não é apenas uma interpretação ousada ver nessa troca de conceitos referências a tormentos no interior do homem que dá lugar à esperança ou à esperança que permite o homem passar por tormentos. Revela-se, aqui um fator do homem interior pouco considerado nas reflexões concernentes ao ímpeto de ultrapassagem de limites - no caso o Cabo - , e que é estreitamente relacionado com a mudança de um direcionamento, do descendente ao ascendente, no caso o descendente da costa africana ocidental ao ascendente do oceano Índico em direção ao Oriente. (Veja)

A consideração da linguagem das imagens é fundamental não apenas no estudo dessa época mais remota da história dos contatos da Europa  com as regiões do extremo sul africano e na qual também o descobrimento do Brasil se insere. Ela surge como necessária também para estudos de épocas posteriores, o que revela o significado da leitura atenta de sentidos do edificado pelo homem. Entre os principais caminhos para a percepção de conteúdos da linguagem visual é a leitura atenta de monumentos e edifícios representativos.

Significado de Pretoria para estudos de processos culturais

A capital da África do Sul, Pretoria, adquire neste sentido particular significado. Não só os seus monumentos imbuídos de pathos que transmitem ímpetos enérgicos do caminhar, do ultrapassar fronteiras, do expandir, do conquistar, do vencer obstáculos e inimigos, como a própria arquitetura é impregnada de sentidos. A sua universidade a distingue como um dos principais centros de estudos universitários do continente.


Entre os edifícios de Pretoria destaca-se o o monumental Union Building (Uniegebou), residência do presidente do país e sede de gabinete presidencial. Não só a sua denominação, mas a própria arquitetura fala do intuito de união dos dois grupos populacionais de ascendência européia que marcaram a história colonial africana: aquele remontante ao passado colonial holandês dos bures e aquele do colonialismo britânico.

Trata-se de uma união de povos que procuraram ultrapassar fronteiras em diferentes sentidos e que nesse ímpeto se assentaram em território de africanos. Compreende-se, que como uma espécie de correção da unilateralidade dessa visão histórica tenha-se levantado um monumento no parque desse palácio a vulto que representa a superação de separações segundo critérios étnicos. (Veja)

A consideração da África do Sul adquire assim em diversos sentidos significado para reflexões relativas à transpassagem de fronteiras, à expansão a novos espaços, a complexas questões de delimitações e suas superações, de suas ambivalências e incoerências.Tem-se aqui uma problemática que também são de significado para reflexões concernentes ao Brasil, também marcado que é por processos expansivos de ultrapassagens.


A África do Sul, como terra do Cabo, que das Tormentas passou a ser o da Boa Esperança, traz à consciência  o significado de análises do edifício cultural de concepções e imagens que condiciona o homem nesse ímpeto eque não só apresenta as dimensões positivas de superação de restrições do pensar e agir no anelo de libertação de cadeias, mas também aquelas negativas que se manifestam sobretudo na destruição do mundo natural e que impõem tomada de consciência e controle.

O ímpeto de ultrapassagem de fronteiras adquire assim um outro sentido, a princípio inesperado, o esclarecedor: o da ultrapassagem de uma concepção que o homem fêz de si mesmo e de seus direitos, abrindo as fronteiras para o reconhecimento que pertence ao mundo dos viventes em geral. O que parece ser uma restrição com a determinação de limites para o seu agir é, na verdade, uma ampliação e libertação.




De ciclo de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „ África do Sul & Brasil: ultrapassagens de fronteiras e transpassagens de esferas em dois continentes nos seus diferentes sentidos e na sua problemática“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 173/1(2018:3).http://revista.brasil-europa.eu/173/Africa_do_Sul_e_Brasil.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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