Separações raciais: África do Sul em paralelos
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 173

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

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Fotos A.A.Bispo 2018©Arquivo A.B.E.

 


N° 173/18 (2018:3)





Superação de separações raciais na atualidade
nos seus pressupostos histórico-culturais - o papel das missões
no exemplo do tratamento de africanos por bures e ingleses na África do Sul
em paralelos com a América e o Caribe


Estudos por motivo das celebrações de O.R.Tambo (1917-1993) e de Nelson Mandela (1918-2013). Johannesburg

 

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Os trabalhos euro-brasileiros levados a efeito na África do Sul, em 2018, decorreram em época na qual se celebra Oliver Tambo, uma vez que o seu centenário de nascimento foi comemorado em 2017 e a sua morte há 25 anos é rememorada em 2018. Com isso, todo aquele que visite Johannesburg é confrontado com uma das mais destacadas personalidades da luta anti-Apartheid de épocas recentes e do African National Congress.

É um nome celebrado ao lado daquele sempre presente de Nelson Mandela (1918-2013), falecido há cinco anos e cujo centenário de nascimento é celebrado em 2018.

Imagens condutoras: Êxodo, Terra da Promissão, Moisés, Redenção

A frase que mais é lembrada de O. Tambo, e que é marcada pelo conceito de „terra de promissão“, revela a formação cristã que obteve, tanto metodista como anglicana, assim como uma auto-consciência orientada segundo o modêlo de Moisés:

„Perhaps  I shall not reach the Promised Land, but my people shall have reached it“.

Essa frase traz à mente a necessidade de consideração de seus anelos e empenhos à luz de processos culturais em que se inscreveu e que foram determinados pela história missionária do sul da África.

Apartheid, Anti-Apartheid e suas consequências nos seus pressupostos histórico-culturais

O reconhecimento das convicções cristãs de O. Tambo evidencia também a exigência de que se considere não só sistema de separação racial do Apartheid nos seus pressupostos e desenvolvimentos históricos como também o movimento anti-Apartheid e a permanência de seus ímpetos no presente sob a perspectiva dos estudos de processos culturais.

Muito mais intensamente do que no Brasil, questões raciais, nos seus múltiplos aspectos e sentidos, continuam a marcar no presente o pensamento e as ações político-culturais da África do Sul. Entre os seus mais evidentes sinais destacam-se não só aqueles celebrativos de personalidades atuantes na luta anti-Apartheid, como também no afastamento de monumentos, na substituição de nomes e datas do passado colonial e em muitas outras iniciativas de-europeização e africanização de visões históricas e da vida cultural do presente. (Veja)

A África do Sul da era anti-Apartheid oferece um exemplo das dimensões e implicações de esforços de revisão e reconstrução historiográfica na tentativa de superação de visões coloniais, de posicionamentos europeus - e assim, „eurocêntricos“ -, tratados primordialmente sob a perspectiva racial como sendo a do homem branco.

Anelos de re-africanização surgem no discurso e nas ações político-culturais acoplados àqueles de revalorização não só do africano „negro“, mas do homem de cor em geral (coloured), de diferentes origens também discriminados nas décadas da separação racial.

A necessidade de análises mais diferenciadas para que não haja mal-entendidos em paralelos com o Brasil resulta do fato de que na situação da África do Sul, a re-africanização corresponde a uma re-indigenização - uma vez  que os africanos eram nativos do continente -  distinguindo-a assim da situação brasileira, do continente americano e do Caribe.

A transposição da situação sul-africana ao Brasil representaria colocar não o afro-americano, mas o indígena em primeiro lugar nas reflexões e nos debates, revalorizando-o e dele partindo as discussões e as iniciativas político-culturais e de natureza anti-discriminatória em geral.

Essa complexa situação, marcada por mistura indiferenciada e interações de critérios, argumentos e anelos, assim como de projeções anacrônicas de desenvolvimentos posteriores a anteriores acarreta dificuldades aos estudos da história, em particular também daquela da escravidão e da abolição.

Desenvolvimentos sul-africanos e estudos da escravidão/abolição em relações globais


A escravidão constitui um complexo temático que marca - e necessariamente deve marcar - os estudos culturais relacionados com o Brasil, uma vez que determinou a sua história econômica, demográfica, social e cultural e levou a situações vigentes no presente.

Ao mesmo tempo, representa campo de preocupações e pesquisas indispensável para a consideração do passado e do presente de países africanos, em particular também nas suas relações com o Brasil.

Os trabalhos euro-brasileiros que vem sendo desenvolvidos são orientados segundo a convicção de que estudos cientificamente adequados dessa problemática devem ser conduzidos de forma abrangente e diferenciada, em dimensões mais amplas e mesmo globais, transpassadoras do contexto especificamente brasileiro, considerando-se os seus múltiplos aspectos e perspectivas.

Com esse escopo, tem-se realizado estudos, observações e encontros em centros de estudos, memoriais, museus e locais de relevância histórica e cultural de diferentes países  sobretudo naqueles que foram marcados pelo trabalho escravo no passado, em particular nos Estados Unidos (Veja), no Caribe (Veja), nas Américas Central e do Sul (Veja)

A consideração desses diferentes contextos fornecem subsídios para o esclarecimento de processos globais nos quais se inseriu o Brasil e trazem à luz, com a interação de conhecimentos e visões, aspectos pouco ou menos presentes no tratamento do tema.

Também nos estudos levados a efeito na África do Sul, em 2018, a história e as consequências da escravidão constituiram um dos principais focos de preocupações.

A emancipação de escravos como fator de êxodo e da marcha ao interior de bures

Nos diálogos, tratou-se com especial atenção as relações entre a história da escravidão e sua emancipação com a história colonial. Considerou-se, em particular, o fator da libertação dos escrevos na eclosão do grande trekk do século XIX: o êxodo de bures da Cidade do Cabo em direção ao interior que levou à tomada de posse de grande parte território sul-africano. (Veja)

A emancipação dos escravos e as diferentes situações e atitudes de bures de ascendência holandesa e ingleses para com o trabalho escravo disseram respeito à própria sociedade colonial nas suas relações com a Europa e desenvolvimentos internacionais.

As diferenças de posições, pontos de vista e de tratamento de africanos subalternos, nativos, escravos e libertos relacionaram-se estreitamente com processos histórico-políticos marcados por conflitos e pelas guerras dos bures, assim como por tentativas de paz e união.

Para a consideração adequada, não anacrõnica dessa problemática que foi causa de tensões, conflitos e cisões das própria sociedade dominante e de suas consequências militares e políticas, partiu-se da releitura de fontes históricas do passado, em geral não mais consideradas ou mesmo silenciadas no debate atual.

A consideração dos desenvolvimentos sul-africanos pode contribuir a elucidações mais justas de decorrências brasileiras relacionadas com o movimento emancipatório e que levaram à proclamação da República.

Paralelos em desenvolvimentos e na historiografia: África do Sul e América

Um livro hoje caído no esquecimento mas que oferece subsídios para estudos de decorrências marcadas por tensões do século XIX é „A luta pela liberdade dos bures e a história de seu país“ do major Justus Scheibert (1831-1903), publicada na Alemanha no início do século XX. (J. Scheibert, Der Freiheitskampf der Buren und die Geschichte ihres Landes, Berlin: A. Schröder, 1903).

Trata-se de uma das publicações de Justus Scheibert, um engenheiro oficial prussiano e historiador militar, e que estudou, entre outros contextos, a história da guerra entre o sul e o norte dos EUA, onde toma partido do sul.

Também a sua obra sobre a a „luta pela liberdade“ dos bures revela claramente uma visão e interpretação de acontecimentos a partir do seu posicionamento político. O partido que toma pelos bures corresponde à simpatia pela confederação dos estados do sul dos EUA na guerra de secessão norte-americana, também esta estreitamente vinculada à questão da escravidão. Diferentemente de sua obra sobre a guerra civil norte-americana, os seus conhecimentos das decorrências militares e suas causas no sul africano basearam-se sobretudo nas fontes por êle compiladas.

Os desenvolvimento sul-africanos são assim interpretados sob o pano de fundo de sua visão da situação nos Estados Unidos, podendo-se dizer que se trata de um posicionamento sulista-norteamericano de autor alemão na consideração das guerras de bures e ingleses, assim como dos estados bures, do Transvaal e da República Sul-Africana

A liberdade como ímpeto condutor do trekk dos bures - paradoxos de um conceito

Já o título da obra de Scheibert fornece motivos para o início das discussões, uma vez que tematiza explicitamente a liberdade na luta e na história dos bures. Esse conceito merece particular atenção, uma vez que surge à primeira vista como paradoxal.

Como explicar-se-ia que esses bures - como o próprio conceito indica, homens do campo, lavradores, agricultores, agro-pecuaristas - a quem se atribuiu uma imagem de avessos à libertação de escravos,  tenham visto a própria história como sendo a de uma luta pela liberdade?

Essa questão assume interesse atual, uma vez que também no presente constata-se o emprêgo do conceito de liberdade por empreendedores agro-pecuários e seus representantes políticos na fundamentação de intuitos e ações. Estes sentem-se, como conhecido também da atualidade dos EUA, no direito, em nome da liberdade de ação, de ocupação e uso de territórios e reservas indígenas.

O papel britânico emancipação de escravos em contextos globais - o outro lado

A discussão na África do Sul revelou um ponto de vista na avaliação do papel da Inglaterra no processo de emancipação de escravos nas suas possessões e no mundo em geral que difere das perspectivas valorativas que até hoje marcaram os estudos.

Em colóquios e em trabalhos levados a efeito em diferentes contextos, por último no Caribe (Veja), o movimento de combate ao tráfico e de abolição da escravidão partido da Grã-Bretanha tem sido tratado compreensivelmente de forma acentuadamente positiva nas suas intenções e no seu significado.

Surpreende, assim, constatar, relativamente à África do Sul, a existência de uma visão histórica negativa as iniciativas e das medidas britânicas que, já na primeira metade no século XIX levaram à proibição do trabalho escravo. Ainda hoje, em meio de descendentes de antigos holandeses da África do Sul pôde-se perceber resquícios de uma antipatia para com ingleses que, à primeira vista, surge como surpreendente.

Deve-se ter porém cuidado em não chegar-se a conclusões precipitadas e indiferenciadas na consideração dos bures e de suas relações com africanos, escravos ou não. Na sua obra, HJ. Scheibert cita uma carta de Pierre Jacobus Joubert (1831-1900) escrita à rainha da Inglaterra, em 1899, onde esse militar bure e comandante geral da República Sul-Africana procura elucidar situações, posições e corrigir a imagem dos bures relativamente à escravidão. (op.cit. 174).

Nessa carta, publicada no jornal The Star, em Johannesburg, P.J. Joubert salienta que os bures não eram desumanos e nem fundamentalmente contrários à libertação dos escravos, o que seria impensável devido à sua formação profundamente religiosa. Eles tnham, porém, desejado que a emancipação tivesse sido feita de forma controlada e gradual em defesa de seus interesses, da agricultura e da economia em geral. J

á em 1816 e em 1829 o govêrno inglês tinha tomado medidas coibitivas do comércio de escravos e que eram orientadas no sentido de uma libertação geral. Os bures tinham-se reunido em Graaf-Reinet e haviam declarado ser a emancipação desejável; o govêrno inglês mostrara-se concorde com o processo sugerido.

Os agro-pecuaristas inham esperado, primeiramente, que tivesse havido uma emancipação de mulheres e de crianças nascidas na África do Sul, a seguir a dos mais velhos e, por fim, a emancipação geral, porém de forma gradual e com indenizações.

Esse processo emancipatório que os bures teriam esperado corresponde em grandes linhas àquele ocorrido no Brasil com a Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenários. Diferentemente do Brasil, porém, a libertação dos escravos foi abrupta.

Também a indenização dos bures foi por estes vista como insuficiente e complexa na sua obtenção. Como agricultores, dependiam da existência de mão de obra para o trabalho na lavoura. Essa mão de obra não era aquela de africanos nativos na própria região, mas sim de africanos de outras partes do continente e, em particular, do vizinho Moçambique, então colonia portuguesa, assim como da África Ocidental.

Já no passado a Companhia Holandesa tinha dado início à compra de escravos. Estes eram primeiramente oferecidos pelos portugueses e, a seguir, pelos ingleses. Como apenas navios ingleses podiam transportá-los para o porto do Cabo, deles dependiam os agricultores. Com essa mão de obra, alcançaram relativa prosperidade, sobretudo pelo fato de levarem uma vida sóbria e simples, correspondente à sua formação puritana.

Os produtos da lavoura eram, por sua vez, vendidos a comerciantes ingleses por taxas estabelecidas e por eles revendidos em outras regiões por preços mais altos. Aqueles que verdadeiramente lucravam com o sistema eram assim os ingleses.

Para a aquisição de braços de trabalho, os bures tinham investido economias e levantado empréstimos, havendo assim dívidas. Era costume não de levantar créditos para a compra de terras ou imóveis, mas sim para a aquisição de mão de obra. Como o crédito oferecido a agricultores orientava-se segundo o número de escravos, muitos se encontravam individados. A perda de braços de trabalho levou muitas famílias á miséria.

Com a vitória dos „filantropistas“ no parlamento inglês sob a liderança, entrre outros de Fowell Buxton (1786-1845), e a proibição do trabalho escravo em todas as colonias com fixação da data da libertação geral no dia 1 de dezembro de 1834, esses agricultores foram surpreendidos e confrontraram-se com a perda de suas bases e recursos. As indenizações previstas eram baixas - um terço dos valores - e foram ainda mais desvalorizadas em 1835.

Além do mais, elas privilegiavam determinados casos de maior porte em detrimento dos pequenos agricultores, sendo que o dinheiro correspondente às cartas promissórias expedidas necessitava ser levantado em Londres. Só a viagem da África do Sul a Londres, para além dos perigos, era por vezes mais cara do que o valor das indenizações. Poder-se-ia imaginar - dizia-se na carta à rainha - que os bures fossem à Inglaterra com os seus carros de boi ou a cavalo?

Nada mais restava aos bures do que vender direitos de indenização aos próprios comerciantes ingleses dos quais tinha adquirido a alto preço os escravos.

Teria sido essa situação a principal causa das tensões e dos ressentimentos dos bures contra o sistema estabelecido pelos ingleses. Sentiram-se presos em sistema que os prendiam em dívidas e os levavam à penúria, tolhendo-os também quanto à liberdade de trabalho da terra por falta de mão-de-obra.

O governador inglês, por sua vez, exclamando que se não estivessem satisfeitos com a situação que deixassem a colonia, levou-os ao êxodo, à imigração ao interior à procura de regiões não ocupadas onde pudessem atuar mais longe do contrôle inglês. Esta seria não só a causa dos ressentimentos e mesmo do ódio para com os ingleses que levou a guerras.

Um ponto que merece atenção nas tentativas de esclarecimento da visão dos bures perante a rainha da Inglaterra por Joubert é a relativação do tratamento desumano que teria sido dado aos escravos. Lembrava-se que já pelo próprio interesse dos senhores cuidava-se de manter em boas condições de alimentação e saúde os trabalhadores nos quais tinham investido. Pessoas brutais existiriam por todo lado, mas os próprios filantropos ingleses não teriam podido constatar muitos casos de abusos e mal-tratamentos, do lado dos bures, porém, a perda de meios teria levado a uma situação geral de miséria, fato registrado também por observadores de outros países.

A emancipação como momento crucial em processo de desentendimentos

Segundo Scheibert, o início dos desentendimentos entre holandeses e ingleses remontava a acontecimentos anteriores à emancipação dos escravos, não sendo, assim, as decorrencias posteriores resultantes por último dessa problemática. Assim, a „questão da escravidão“ dera o impulso final ao movimento bure, as tensões, porém, tinham origens anteriores.

Um primeiro motivo remontava a 1799, quando o govêrno inglês deu ordem de prisão ao comandade Adriaan van Jaarsveld (1745-1801) e os bures se negaram a prestar juramento de lealdade para o rei inglês.

O segundo motivo de desentendimentos teria tido como causa a filantropia dos ingleses e que contrariava a percepção de desenvolvimentos de bures. Os nativos tinham vendido as suas terras aos holandeses e, enquanto o número de colonos era pequeno, tinham-se bem entendido. Quando os europeus começaram a querer maior espaço, surgiram tensões e aumento de roubos de reses, o que levou a que os bures passassem a ver os africanos negativamente.

Para Scheibert, essa situação teria sido agravada com a vinda de africanos fugidos de comerciantes de escravos de regiões sob portugueses e que traziam ressentimentos e ódios para com os europeus, o que os levava a cometer represálias e roubos.

O tratamento a êles concedido pelos bures passou a ser rígido, perseguindo sem penas suspeitos de roubos, matando-os a balas e usando do açoite na sua disciplinação. (op.cit. 171 Na interpretação de Scheibert, poder-se-ia ver assim, com outras palavras, uma culpa dos portugueses na mudança para pior das relações entre bures e nativos.

Para agravar a situação, os missionários, tanto de evangélicos livres (Veja) como anglicanos, pregavam, diferentemente da Igreja Reformada Holandesa, aos homens de cor que perante Deus todos os homens eram iguais, tanto o „hotentote“ quanto o bure. Assim instruídos, os nativos tornaram-se mais auto-conscientes e passaram a procurar uma vida livre, também abandonando as estações missionárias. Os missionários comunicavam à Inglaterra excessos no uso do açoite para fins disciplinadores, o que levou, em 1812, ao envio de uma comissão para o exame da situação.

Os bures não conseguiam entender e aceitar essa pregação, uma vez que nas suas convicções de desenvolvimento cultural/civilizacional, também fundamentadas biblicamente em leitura literal de textos, não haveria igualdade das duas raças.

O resultado desses desenvolvimentos teria sido, segundo Scheibert, que enraizara-se um grande ressentimento do lado dos bures e uma intensificação da atitude de auto-consciência dos nativos. Essa situação intensificou-se com a criação de um regimento de soldados nativos pelos ingleses que não apenas servia para dominar revoltas, como também prestava serviços policiais entre os brancos, uma medida que levou à revolta de Slchtersnet.

Diferentes tratamentos de africanos por bures e ingleses e suas consequências

O livro de Scheibert, apesar do partidarismo de suas interpretações, adquire interesse para estudos culturais relativos a questões raciais e da história laborial por considerar diferenças entre o tratamento de africanos pelos descendentes de holandeses e pelos ingleses no sul da África. Com as devidas ressalvas, as suas considerações podem oferecer subsídios a análises também em contextos brasileiros.

Em ítem de título „Os bures e os nativos“, o autor tece considerações sobre „a arte“ dos bures em tratar corretamente os africanos. Essa arte consistia em mantê-los sempre em apropriada distância e, ao mesmo tempo, tratá-los de forma justa e humana. Essa „arte“ estaria em completa oposição àquela do procedimento inglês. Estes colocavam os nativos à sua altura politicamente, não hesitando, porém, em
massacrá-los em massa quando necessário. A compreensão dessa diferença quanto à atitude perante os africanos seria fundamental para o entendimento das razões das guerras sul-africanas.

Para Scheibert, os negros encontravam-se em atraso de gerações sob o ponto de vista cultural/civilizacional e nenhum artifício poderia colocá-los de repente à altura dos brancos. A sua posição natural seria a de servidor. Sentia-se bem nesse papel que lhe era adequado. A igualação oficial que ocorrera na união norteamericana tinha efeitos desastrosos e era acompanhada por um profundo desprezo e mau-trato daqueles que a defendiam.

Mencionando relatos de visitantes de fazendas de bures, Scheibert afirma que o senhor bure era severo, mas justo no tratamento de serviçais. Por todo lado reinava um sistema patriarcal, onde, porém, o bure bastante acentuava a sua posição de senhorio. Uma pessoa de cor não podia jamais entrar na Voorhuis, tomando a sua refeição no Komphuis, ou seja, na cozinha. Na presença do senhor, o subalterno apenas podia falar se fosse perguntado. As ordens eram dadas de forma determinante, e cada frase era acompanhada da indagação: entendeu? A pessoa de cor precisava então responder incondicionalmente com „Sim, Senhor“ e, se não o fizesse, choviam imprecações ou tapas.

Quem chegava ao Transvall vindo de colonias inglesas, onde os nativos eram „tão livres que podiam comprar tanta aguardente quanto quisessem“, surpreendia-se em encontrar uma situação tão marcada pelo partenalismo e pela submissão pacífica de africanos.

Em regiões sob o domínio inglês, o „cafre“ era um indivíduo bêbado, mal-humorado, rude e sem comportamento, avesso ao trabalho, naquelas dos bures era de uma alegria ingenuamente infantil, amável, - ainda que por vezes por demais rastejante -., sendo sobretudo diligente. Nessas condições, apenas sabia que o bure era o seu senhor, um senhor severo, mas justo. Não o amava, mas também estava longe de odiá-lo, uma vez que correspondia a um desejo natural seu de ser governado (!). Assim, brancos e negros viviam em paz no Transvaal.

Ao contrário, nos territórios ingleses, viam-se hordas de „cafres“ perambulando e acampando livremente, dezenas de homens e mulheres com incontáveis crianças, algumas cabras e cães esfomeados e magros, todos esfarrapados, um povo que não trabalhava, que „tinha direito à preguiça“.  (op.cit. 27-28).

Essa descrição de autores citados por Scheibert correspondia à situação que êle mesmo vivenciara na América. Enquanto que os africanos que viviam e trabalhavam nas fazendas dos estados do sul eram segundo êle alegres, bem vestidos e bem alimentados, os que viviam nas periferias das cidades do norte davam uma impressão desoladora: bebida, vagabundagem, doenças venéreas e outras doença era o que dominava.

Todos aqueles que descreviam com cores tão negras as condições dos trabalhadores nas fazendas do sul - difundidas em livros de ampla divulgação como no Onkel Toms Hütte de Harriet Beecher Stowe (1811-1896) - não conheciam de fato a vida nessas fazendas.

A mesma situação observada nas periferias de cidades do norte dos Estados Unidos também podia ser observada nas colonias inglesas do Caribe, ou seja, por todo o lado desleixo, pobreza, alcoolismo, letargia e pouca vontade de trabalhar. (op.cit. 29)



De ciclo de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „ Superação de separações raciais na atualidade nos seus pressupostos histórico-culturais - o papel das missões no exemplo do tratamento de africanos por bures e ingleses na África do Sul
em paralelos com a América e o Caribe“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 173/18(2018:3).http://revista.brasil-europa.eu/173/Apartheid_e_pos-Apartheid.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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