Do Cabo das Tormentas ao da Boa Esperança
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 173

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Cabo. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

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Fotos A.A.Bispo 2018©Arquivo A.B.E.

 


N° 173/9 (2018:3)




Do Cabo das Tormentas ao da Boa Esperança
Dimensões de sentidos de uma redenominação
e as personificações do Cabo na linguagem das imagens:
o gigante Adamastor e a metamorfose de Tétis em
Os Lusíadas



Pelos 30 anos do „Ano Bartolomeu Dias“ e 20 anos de simpósio pelo „Ano Vasco da Gama“ da ABE/ISMPS

 

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Poucos são os acidentes geográficos que sejam tão conhecidos quanto a seu significado para a história em contextos globais do que o Cabo da Boa Esperança no sul da África.

O dobramento do Cabo inicalmente visto como „das tormentas“ na procura do caminho da Índia constitui um marco crucial no vir-a-ser dos Descobrimentos. Esse feito é lembrado no ensino da História em todo o mundo, naturalmente também no Brasil.

Compreende-se, assim, o número de visitantes das mais diferentes países que procuram o Cabo, situado a não longa distância da Cidade do Cabo - ca. de 44 kms -, um dos mais importantes pontos de atração da África do Sul.

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Não constituindo propriamente o ponto mais a sul da África, que é o Cabo das Agulhas, o interesse pelo Cabo da Boa Esperança deriva sobretudo do seu significado histórico-cultural: do papel que desempenhou na história da navegação e das relações entre o Ocidente e o Oriente.

O complexo paisagístico-cultural do Parque Nacional Tafelberg

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Situando-se hoje no Parque Nacional Tafelberg, marcado pela espetacularidade da configuração de suas altas montanhas e abruptos cortes junto ao mar, o Cabo da Boa Esperança, em dimensões e formas em si mais modesto, é antes considerado do ponto mais alto de observação do Cape Point com o seu farol nas proximidades.
Ali, na plataforma ao alto, um mastro com setas indica a distância do cabo a principais cidades do mundo, entre elas ao Rio de
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Janeiro.

Aquele que contempla a ampla paisagem que ali se descortina compenetra-se que se encontra na divisória entre o Oeste e o Leste, onde a linha do litoral passa a dirigir-se ao Leste.

O observador toma consciência que se encontra em ponto crucial de mudança de orientação na navegação que, contornando a África, através dos séculos estabeleceu
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vínculos entre a esfera do Atlântico e a do Índico.

É o local onde a visão se dirige à longínqua Índia procurada pelos navegadores portugueses, imbuída ainda do anelo da expectativa em alcançá-la.

Pela história de seu descobrimento e transpassagem, compreende-se que Portugal esteja ali presente de forma
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predominante.

Padrões portugueses - marcos de transpassagens

Padrões que lembram os feitos de Bartolomeu Dias (1450-1500) e de Vasco da Gama (ca.1469-1524) estabelecem marcos que atribuem à paisagem um conteúdo de significados que fazem com que a região adquira particular interesse para estudos de relações Cultura/Natureza.

Lembram continuamente que foi Bartolomeu Dias que, em abril de 1488, avistou pela primeira vez de longe essa costa da África do
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Sul, contornando-a, realcançou-a no seu retorno, ali levantando um padrão no dia 1 de maio de 1488.

O observador toma consciência dos paralelos com o cabo Horn no sul  da América do Sul, posteriormente transpassado por Fernando de Magalhães (1480-1521).

Também este representou uma passagem entre o Ocidente e o Oriente, porém em outra direção, a ocidental, contornando o continente americano. Como no „cabo das tormentas“, também nesse Estreito ao sul da
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América do Sul as condições naturais surgem como adversas e de risco.

Esses dois pontos de transpasse da esfera do Atlantico à de outros mares - a do Índico e do Pacífico - mantiveram-se durante séculos a sua posição crucial nas viagens que vincularam a Europa às regiões extra-européias nas duas partes do globo. Por esses pontos passaram navios das mais diversas nações, determinando rêdes de contatos e intercâmbios entre cidades portuárias.

Essa situação estratégica modificou-se apenas com a abertura do canal de Suez em 1869 e, a seguir, com o canal do Panamá, que, reduzindo significativamente  distâncias, trouxeram uma perda de significado do contorno de continentes na comunicação por mar entre as esferas do globo.

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Da experiência da natureza, da existência às designações: Tormentas e Esperança

Ao confrontar-se com a paisagem árida e rochosa da costa, com o chão coberto de pedras que se estende pelas águas, com o ímpeto das vagas do mar, movidas por fortes ventos, o observador compreende que os primeiros navegadores tenham ali temido os perigos dessas condições naturais e atribuído ao cabo a designação de tormentoso.


As tormentas, os temporais e vendavais experimentados pelos navegantes marcou a imagem e os sentidos dessa região do globo e do trajeto que a ela levava e a ela saía. O caminho em direção ao sul daqueles que desciam a costa da África levava-os a uma região de perigos, inóspita, de conotações sinistras, do frio constatado pelos marinheiros na corrente de Benguela.

Compreende-se que os homens do mar, nas condições precárias da navegação da época, vissem nesse caminho em direção ao sul um rumo de crescentes perigos e que intensificava os seus temores.

No ponto crítico do cabo e no seu contorno experimentavam então sinais de uma mudança de direcionamento, e a corrente marítima do cabo Agulhas, no ponto mais sul do continente, com as suas águas mais cálidas, indicavam uma reorientação em direção ao norte, abrindo perspectivas de alcance da terra visualizada, de sucesso da viagem e de sobrevivência.

A experiência existencial de marinheiros perante as condições naturais do trajeto interagia com expectativas e anelos, e a mudança de direcionamento alimentava as esperanças de alcance do porto final desejado.

Compreende-se, nesse contexto, que o cabo, tormentoso ou das tormentas, surgisse ao mesmo tempo como o da Boa Esperança, tanto no sentido existencial dos navegantes como no do sucesso no alcance do término final da viagem, do porto que prometia segurança e da compleição do objetivo do empreendimento marcado por tantas inseguranças e perigos.

Se o conceito de tormentas exprime antes a experiência existencial daqueles que navegavam perante a natureza, a designação de Boa Esperança, que tornou-se predominante, revela a intenção da viagem, o plano político-cultural, compreendendo-se que tenha sido atribuída ao próprio rei D. João II (1455-1495).

Tormentas e Esperança no edificio cultural de concepções e imagens

Ambas as denominações devem ser compreendidas nas suas inscrições no sistema mais amplo das concepções do mundo e do homem da época.

O navegante que se dirigia ao sul descendo a costa africana - e também aquele que, posteriormente, vindo da Índia, contornava o cabo para subir a costa ocidental do continente - constatava, nas condições naturais dessa região crucial de mudança de rumos a vigência de conhecimentos relacionados com o sul de um edifício de conhecimentos do mundo natural nas suas múltiplas dimensões e que se expressava na linguagem estelar da esfera celestial.

Essa linguagem de sinais correspondia, no ano natural do hemisfério norte, ao caminho descendente em direção à época de crescente escurecimento e esfriamento do inverno.

Assim como no solstício muda-se a direção desse processo descendente, iniciando-se a subida, visualizando-se o alto como promessa e expectativa nessa parte mais inferior do ano, também o extremo sul africano na tormentosa experiência dos marinheiros era imbuída de esperança de bom trajeto e término feliz da viagem na „subida“ à Índia.

Múltiplas são as dimensões dessa visão integral do mundo e do homem que partia da percepção do mundo natural do hemisfério norte e que se via confirmada na vivência prática dos navegantes, representando também o referencial para a atribuição de sentidos ao que descobriam.

Tormentas e esperanças diziam respeito ao homem no complexo de interações entre o que percebe e conhece pelos sentidos do mundo exterior e a sua orientação interior. Não os ventos dessa região tormentosa do sul da África ou das tormentas no interior do homem surgem então como decisivas, mas aquelas da certeza do objetivo visado.

O amarrar-se ao mastro na viagem repleta de riscos nas tormentas: a cruz

Segundo a linguagem visual de remotas origens, trata-se aqui metaforicamente do amarrar-se ao mastro central da barca na viagem repleta de perigos no mar da vida, imagem não só conhecida da Antiguidade na figura de Ulisses como na tradição bíblica e eclesiástica.

É esse mastro da linguagem imagológica que parece explicar os sentidos mais profundos do levantamento de padrões encimados pela cruz nas terras alcançadas pelos portugueses e, assim, também, naqueles plantados no sul da África.

Sob esse pano de fundo, surgem como altamente significativos as datas de levantamento dos padrões, em particular, aquele levantado no dia 1 de maio de 1488, ou seja no contexto da festa do descobrimento da cruz (Inventio Crucis).

A esperança nas concepções de virtudes teologais, o tormentoso e o cosmos

O conceito da esperança deve ser considerado segundo os pressupostos culturais daqueles que o empregaram e, assim, na tradição das concepções de virtudes da Teologia e de seus fundamentos nos conhecimentos e na filosofia da Antiguidade.

Nos seus fundamentos paulinos, trata-se de uma das virtudes do conjunto trino da fé, esperança e caridade, no qual esta última, e assim o amor, é a maior. (Cor. 13,13)

Essas qualidades do homem espiritual da tradição cristã - e que indicam sentidos mais profundos da designação de cabo da Boa Esperança - contrapõem-se às características do homem carnal que se orienta segundo o percebido do mundo exterior e que é, assim marcado pela falta dessas virtudes.

Para esse homem - na lógica do sistema elucidado em tradição paulina -, as forças naturais surgem como dominadoras, como tiranos que o submetem, oprimem e tiranizam, compreendendo-se a sua personalização como tipos identificados com figuras das antiga mitologia e da tradição escrita do Velho Testamento.

O problema do reconhecimento dessa linguagem de imagens de remotas origens na parte mais inferior do sul da esfera do mundo é que essa região, desconhecida de antigos navegantes, surgia como encoberta, misteriosa, pouco representada na linguagem das constelações. O reconhecimento de seus tipos resulta necessariamente antes de conclusões a partir de uma lógica de desenvolvimentos da parte descendente do ano e da esfera do globo tanto na tradição mitológica quanto na bíblica.

Compreende-se, neste contexto, que, nas Lusíadas, L. de Camões (1524/5-1580) tenha criado uma personificação do cabo do sul da África na tradição da antiga mitologia e em coerência  de decorrências nela expressas.

Personificações do Cabo das Tormentas em Os Lusíadas: Adamastor e Tétis


No canto  V do epos camoniano, o leitor depara-se na sequência da leitura com uma imagem inigmática, dificilmente reconhecida na tradição mitológica e que apenas posteriormente, no canto 50 se revela como personificação das Tormentas e do Cabo Tormentoso.

Nesse canto, o poeta coloca nas próprias palavras da personificação o fato de não ter sido conhecido ou registrado pelos antigos geógrafos. O vulto identifica-se como término da costa africana e voltado ao polo inferior do globo terráqueo, o antártico:

„Eu sou aquele oculto e grande Cabo/A quem chamais vós outros Tormentório, /Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo, Plínio, e quantos passaram, fui notório.-/Aqui toda a africana costa acabo/Neste meu nunca visto promontório/Que para o pólo antárctico se estende,/A quem vossa ousadia tanto ofende“. (Canto V, L.)

Essa revelação é resultado da pergunta formulada pelo poeta a essa visão monstruosa:

„Mais ia por diante o monstro horrendo/Dizendo nossos fados, quando, alçado,/Lhe diesse eu: - ‚Quem és tu? que esse estupendo/Corpo, certo, me tem maravilhado!‘/A boca e os olhos negros retorcendo/E dando um espantoso e grande brado,/Me respondeu com voz pesada e amara,/Como quem da pergunta lhe pesara: (Canto V, XLIX)

É a partir da revelação do monstro como personificação do cabo que a sua descrição nos cantos anteriores torna-se inteligível e significativa.

Compreende-se que a figura surja como ameaçadora, predizendo ventos e tormentas para todas as naus que por ali passassem.

„Sabe que quantas naus, esta viagem/Que tu fazes, fizerem, de atrevidas, Inimiga terão esta paragem/Com ventos e tormentas desmedidas; /E  da primeira armada, que passagem/Fizer por estas ondas insofridas;/Eu farei d‘improviso tal castigo,/Que seja mor o dano que o perigo.“ (Canto V, XLIII)

A personificação manifesta-se como uma entidade vingativa daqueles que a descobrem, agindo maleficamente nas naus com perdições de todo o tipo:

„Aqui espero tomar (se não me engano)/De quem me descobriu suma vingança;/E não se acabará só nisto o dano/De vossa pertinace confiança,/Antes em vossas naus vereis cada ano/(Se é verdade o que meu juízo alcança)/Naufrágios, perdições de toda sorte,/Que o menor mal de todos seja a morte.“ (Canto V, XLIV)

Sistema imagológico e Etnografia: relações com a imagem do nativo - os „cafres“

É a partir da revelação que se compreende retrospectivamente a menção de ser o seu terreno „duro e irado“e dos „cafres“ na história infeliz de amor prevista:

„Outro também virá, de honrada fama,/Liberal, cavaleiro, enamorado,/E consigo trará a fermosa dama/Que Amor por grã mercê lhe terá dado./Triste ventura e negro fado os chama/Neste terreno meu, qiue, duro e irado,/Os deixará dum cru naufrágio vivos,/Para verem trabalhos excessivos.“ (V, XLKVI)

„Verão morrer com fome os filhos caros,/Em tanto amor gerados e nascidos;/Verão os Cafres ásperos e avaros/Tirar à linda dama seus vestidos;/Os cristalinos membros e preclaros,/A calma, ao frio, ao ar verão despidos,/Depois de ter pisada, longamente,/Co‘os delicados pés a areia ardente.“ (V, XLVIII)

„E verão mais os oilhos que escaparem/De tanto mal, de tanta desventura,,/Os dous amantes míseros ficarem/Na férvidas e implacábil espessura;/Ali, depois que as pedras abrandarem/Com lágrimas de dor, de mágoa pura,/Abraçados, as almas soltarão/Da fermosa e misérrima prisão.“ (V, XLVIII)

A revelação identificadora: referênciação pela antiga mitologia das concepções tipológicas

É a própria entidade que personifica o cabo que também elucida o seu nome e a sua inserção na tradição mitológica.

Ela presenta-se como espírito de Adamastor, que fora no passado um gigante, um dos filhos da Terra, um dos filhos de Gaia e de Urano, ao lado de titães e gigantes como Enceladus, Egeu e Centimano (Hekatoncheiros).

Trata-se assim de uma concepção de forças telúricas contrárias à tomada de poder de Zeus/Jupiter no domínio do mundo e atuantes no combate contra às divindades olímpicas. O nome poderia derivar-se de Damasos, gigante mencionado por Nonnos (Dionysiaka 25, 85),

„Fui dos folhos aspérrimos da Terra,/Qual Encélado, Egeu e o Centimano;/Chamei-me Adamastor, e fui na guerra/Contra o que vibra os raios de Vulcano;/Não que pusesse serra sobre serra,/Mas conquistando as ondas do Oceano,/Fui capitão do mar, por onde andava/A armada de Neptuno, que eu buscava.“ (L, LI)

„Amores da alta esposa de Peleu/Me fizeram tomar tamanha empresa;/Todas as Deusas desprezei do Céu,/ Só por amar das águas a Princesa./Um dia a vi, co‘as filhas de Nereu/, Sair nua na praia, e logo presa/A vontade senti de tal maneira,/Que inda não sinto cousa que mais queira./ (L. LII)

„Como fosse impossívil alcançá-la /Pela grandeza feia de meu gesto,/ Determinei por armas de tomá-la,/E a Dóris este caso manifesto./De mndo a Deusa então por mi lhe fala;/Mas ela, c‘um fermoso riso honesto,‘Respondeu: ‚Qual será o amor bastante/De Ninfa que sustente o dum Gigante?“ (L, LIII)

„Contudo, por livrarmos o Oceano/De tanta guerra, eu buscarei maneira/Com que, com minha honra, escuse o dano‘/ Tal resposta me torna a mensageira. Eu, que casar não pude neste engano/(Que é grande dos amantes a cegueira),/Encheram-me, com grandes abondanças,/O peito de desejos e esperanças.“ (L, LIV)

A transformação de Tétis em duro monte e o estarrecimento do gigante em penedo

„Já néscio, já da guerra desistindo,/Uma noite, de Dóris prometida,/Me aparece de longe o gesto lindo/Da branca Tétis, única, despida./Como doudo corri, de longe abrindo/Os braços para aquela que era vida/Deste corpo, e começo os olhos belos/A lhe beijar, as faces e os cabelos.“ (L, LV)

„Oh, que não sei de nojo como o conte!../Que, crendo ter nos braços quem amava,/Abraçado me achei c‘um duro monte/De áspero mato e de espessura brava./Estando c‘um penedo fronte a fronte, Qu‘eu pelo rosto angélico apertava,/Não fiquei homem, não, mas mudo e quedo,/E junto dum penedo outro penedo!“ (L, LVI)

Afastando-se em mágoa e desonrado, foi buscar um mundo onde ninguém visse o seu pranto e o se risse do que lhe acontecera. (LVII) Após terem sido os gigantes vencidos sob a ordem olímpica, o gigante passou a sentir o castigo pelos seus atos:

„Converte-se-me a carne em terra dura,/Em penedos os ossos se fizeram;/Estes membros que vês e esta figura/Por estas longas águas se estenderam; Enfim, minha grandíssima estatura/Neste remoto cabo converteram/Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,/Me anda Tétis cercando destas águas.“ (LIX)

A nuvem negra de atormentada e previsor de tormentas, os anjos e a Esperança

A entidade personificadora das tormentas é apresentada pelo poeta como ao mesmo tempo sofredora, atormentada e maléfica, vista em forma de nuvem negra:

Porém já cinco sóis eram passados/ Que dali nos partíramos, cortando/Os mares nunca doutrem navegados,/Prosperamente os ventos assoprando,/Quando uma noite, estando descuidados/Na cortadora proa vigiando,/Uma nuvem, que os ares escurece/Sobre nossas cabeças aparece.“


Tão temerosa vinha e carregada,/Que pôs nos corações um grande medo;/Bramindo, o negro mar de longe brada,/Como se desse em vão nalgum rochedo./"Ó Potestade (disse) sublimada:/Que ameaço divino ou que segredo/Este clima e este mar nos apresenta,/Que mor cousa parece que tormenta?"


Tão grande era de membros, que bem posso/Certificar-te que este era o segundo/De Rodes estranhíssimo Colosso,/Que um dos sete milagres foi do mundo./Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,/Que pareceu sair do mar profundo./Arrepiam-se as carnes e o cabelo,/A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!


A nuvem por fim se desfaz e o pedido aos anjos-guias que as profecias não se realizem:

„Assi contava, e, c‘um medonho choro,/Súbito d‘ante os olhos se apartou./Desfez-se a nuvem negra, e c‘um sonoro/Bramido muito longe o mar soou./Eu, levantando as mãos ao santo coro/Dos Anjos, que tão longe nos guiou,/A Deus pedi que removesse os duros/Casos que Adamastor contou futuros.“ (LX)

Trata-se assim, da esperança de que os casos previstos por Adamastor não se realizassem, formuladas significativamente em hora da aurora, quando o navegante avistava, ao alvorecer, o Cabo, onde, porém, não aporta, mas sim em local não muito distante. (Veja)

Significados da linguagem visual no estudo de condicionamentos culturais

As reflexões encetadas no Cabo da Boa Esperança a partir de Os Lusiadas trouxeram à consciência o significado das suas personificações mitológicas no sistema de concepções e imagens marcado pelas tensões entrre tipos e anti-tpos da cultura cristã e assim não só para análises do condicionamento cultural dos navegantes como do homem do Ocidente e seus descendentes em geral.

Reconhece-se na linguagem poética uma configuração básica representada pela personificação da beleza irresistivel e tentadora do desejado na imagem de uma filha dos mares e do anelo daquele que, tormentoso, a procura, mas que, ao abraçá-la, vê-se perante um monte duro, caindo êle próprio em estarrecimento, transformando-se em penedo. O objeto da atração do homem atormentado, em si sinistro e horrendo, transforma-se em montanha pedregosa, árida e sem valor.

Não revelar-se-ia aqui uma referência de implicações criticas ao homem que - sobretudo à era dos Descobrimentos - procurava os tentadores bens das Índias, vendo-se, ao tentar abraçá-los confrontados com um monte rochoso? Não haveria aqui um sentido muito mais abrangente, referente ao homem em geral e assim de permanente atualidade?

Essas reflexões chamara a atenção às terriveis expectativas da grande nuvem negra: a previsão dos tormentos dos navegantes e das infelicidades ao abraçar o escopo almejado, o que, mais do que uma previsão do destino histórico que vivenciaram os portugueses, representaria um risco existencial para o homem em geral. Importante foco das atenções deve ser dado à mènção dos anjos como guias, uma vez que, com ela, a nuvem negra tormentosa surge em tensão com aquela das criaturas celestiais.

Com essa referência, em tradição do pensamento teológico, a atenção é dirigida às substâncias intelectuais. Neste sentido, seria uma questão do intelecto, na imaterialidade de pensamentos, concepções e imagens, a orientação do homem na viagem da existência para que as nuvens negras se aclarem e êle, de atormentado, seja imbuído de esperança.



De ciclo de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „ Do Cabo das Tormentas ao da Boa Esperança. Dimensões de sentidos de uma redenominação e as personificações do Cabo na linguagem das imagens: o gigante Adamastor e a metamorfose de Tétis em Os Lusíadas“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 173/9(2018:3).http://revista.brasil-europa.eu/173/Cabo_da_Boa_Esperanca.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
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