Townships na África do Sul e favelas
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 173

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Township Knysna. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

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Fotos A.A.Bispo 2018©Arquivo A.B.E.

 


N° 173/19 (2018:3)





Falências urbanas em diferentes contextos:
concentrações étnicas de grupos populacionais,
segregações, separações e suas superações
- questões de coerência em intentos de reconstrução de identidades culturais diferenciadas -

Townships na África do Sul em paralelos com favelas e bairros precários do Brasil

Reflexões na Library Masifunde em Knysna

 

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Township Knysna. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

A existência e o aumento de favelas e de bairros periféricos que nascem e crescem sem planejamento, sem infraestrura, com construções precárias e a má qualidade de vida de seus moradores representam um dos mais graves problemas urbanos, sociais, humanos e ambientais do Brasil e de muitos outros países.

Township Knysna. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright
Nas suas dimensões e gravidade, o mau uso do espaço com a destruição permanente do meio ambiente e as deficitárias condições de vida de seus moradores representam uma das maiores falências da civilização nos séculos XX e XXI.

Um tragédia ambiental e humana que exige estudos interdisciplinares

É no confronto com imensas áreas que em muitos países se alastram como formações cancerosas em cidades e em zonas periféricas que se maniffestam com maior evidência a destruição da terra pela mão do homem e as indignas condições de vida de parte considerável da Humanidade.

É uma realidade à qual não se pode e não se deve acostumar ou perante à qual não se deve resignar, em particular também cientistas e pesquisadores das mais diferentes áreas do saber.

Essa situação, que se agrava continuamente, representa e deve representar sobretudo uma falha insuportável e vergonhosa para administradores, planejadores, urbanistas e arquitetos.

É a área do Planejamento, do Urbanismo e da Arquitetura aquela que mais evidentemente é atingida e aquela da qual se requer as maiores preocupações, reflexões e procura de soluções.

Toda e qualquer medida a ser tomada no sentido de melhoramento dessas situações calamitosas sob o aspecto ambiental e humano tem como pressuposto conhecimentos de suas razões, de seu vir-a-ser, de seus mecanismos inerentes e de muitos aspectos referentes ao meio ambiente e ao homem que apenas podem ser adquiridos através de estudos interdisciplinares.

Township Knysna. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright
Planejamentos e diretrizes tomadas apenas sob pontos de vista particulares de determinadas áreas de conhecimento mostram-se  insuficientes. Intentos de melhoria de situações que partem apenas de aspectos básicos de construções de moradias, arruamentos, de instalação a posteriori de infra-estrutura - água, luz, esgotos - ou de criação de centros sociais, de atendimento e escolas apenas mitigam um desenvolvimento que exige um tratamento mais abrangente.

Modos de ver e pensar de políticos, administradores, de engenheiros civís, de assistentes sociais, educadores e representantes de outras áreas de ações, profissões e formação necessitam relacionar-se entre si. Os mais diferentes fatores, entre êles psicológicos e culturais, de formação e transformação de comunidades exigem ser considerados.

Essas interações teem como pré-condição análises e reflexões que permitam ações coordenadas e coerentes. Visões a partir de posicionamentos particulares condicionados pela formação e pela profissão de agentes levam a incoerências em diretrizes e iniciativas e à ineficácia.

A falta de coerência e mesmo a incompatibilidade de medidas e ações apresenta-se como um dos maiores problemas no confronto com a tragédia urbana e humana desses conglomerações de moradias no presente.

Assentamentos urbanos precários - análise de processos em contextos globais

Essa realidade demonstra a necessidade de uma consideração atenta dos processos que levaram à situação atual e que continuam nela atuantes.

Essa orientação a processos tem consequências teóricas para os estudos culturais nos seus múltiplos aspectos, em particular para aqueles que focalizam com maior atenção desenvolvimentos urbanos.

A atenção não pode, neste sentido, restringir-se a obras representativas ou exemplares da criação de arquitetos e urbanistas, a obras de arte ou exemplos excepcionais da criatividade de determinadas personalidades da arquitetura e do urbanismo, uma vez que estas surgem como insignificantes perante as dimensões da problemática revelada nos catastrofais desenvolvimentos que levaram ao alastramento de complexos de moradia que desrespeitam a dignidade do homem e levam à destruição de imensas áreas.

Já o fato de não se tratar de um fenômeno restrito a determinadas cidades ou países - não só o Brasil possui favelas e bairros precários - mas constatável em muitos outros contextos, é um demonstrativo que aqui se trata de um fenomeno processual de dimensões globais e que, portanto, exige ser considerado em estudos culturais em relações internacionais.

Paralelos no tratamento da problemática - similaridades para além de fronteiras

É a realidade da ocupação e uso de espaços e de construções precárias dessas aglomerações e dispersões, nas similaridades e mesmo uniformidades percebidas já visualmente entre os mais diversos contextos que demonstra a necessidade de aproximações e análises sob perspectivas globais. Uma fotografia à distância de slums ou bairros periféricos de uma cidade de um  país da América Latina ou mesmo de outros continentes pode fazer supor tratar-se de alguma favela ou bairro precário do Brasil.

Apesar dessa uniformização niveladora, torna-se necessário atentar às diferenças nos vá´ríos contextos. Neles manifestam-se a ação de diferentes fatores, de processos que podem ter sido desencadeados de forma não-dirigida, de uma dinâmica desencadeada pelas circunstâncias, mas também de resultados de medidas político-administrativas tomadas para a solução de problemas.

Se os processos não-dirigidos, „espontâneos“, devem ser estudados nas suas causas históricas, sociais e culturais, também as ações institucionais devem ser consideradas quanto às diretrizes que as fundamentaram, a sua eficiencia e as consequências que trouxeram.

Não só a visão de observadores externos, mas sim também aquela „de dentro“ dos próprios moradores que vivem nesses conglomerados urbanos e que experimentam situações surgidas ou criadas devem relacionar-se na consideração desses processos.

Consideração de visões nascidas da experiência existencial e iniciativas diferenciadoras

A análise cultural não pode deixar de dar atenção a iniciativas e a tendências nascidas e que decorrem a partir da própria experiência de vida nesses espaços nas suas interações com intervenções externas.

Modos de ver, pensar e agir a partir dessas condições existenciais contribuem, a partir do particular ao geral, da consideração de problemas do contexto respectivo àquela de outros contextos. Anelos, esperanças, iniciativas nascidas das comunidades surgem como fatores diferenciadores na uniformidade da aparência visual de slums e assentamentos precários nas mais diversas partes do mundo.

No estudo de natureza urbanológica no seu sentido mais amplo, os Townships da África do Sul merecem uma atenção especial. Como em poucos outros casos, esses complexos urbanos oferecem condições para análises mais profundas não só de desenvolvimentos processuais não dirigidos como daqueles que resultaram de medidas do Estado.

Como em poucos outros casos, esses conglomerados urbanos deram e dão motivo a debates sobre diretrizes, a discussões políticas e a movimentos de agentes externos e daqueles neles envolvidos em conflitos e lutas que assumiram dimensões internacionais.

É impossível considerar a África do Sul nos estudos culturais - também sob a perspectiva dos estudos relacionados com o Brasil - sem que se focalize a problemática dos Townships nas suas relações com o sistema do Apartheid, suas implicações e consequências.

O Township de Knysna considerado em relações com o Brasil

Township Knysna. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright
Knysna é uma localidade litorânea situada em condições naturais privilegiadas e, por isso, procurada por visitantes do país e do Exterior. Às margens de uma grande laguna, que se abre ao Oceano Índico por uma estreita passagem, a cidade possui uma marinha com instalações modernas para esportes aquáticos, pesca e atividades turísticas.
As qualidades paisagísticas de Knysna são salientadas pela moldura que representam
as montanhas da cadeia de Outeniqua com a sua exuberante cobertura vegetal.

Essas florestas, que marcavam a paisagem da região, sofreram porém com as graves delapidações causadas pelo corte da mata nativa e sua substituição por eucaliptos, um desenvolvimento que é apenas revertido com dificuldades no presente.

Essas destruições do patrimônio vegetal pela ação do homem tem consequências para as vida animal. Knysna foi no passado - e a sua imagem ainda é no presente - pelos elefantes que ali viviam em grande número.

Contrastando com essa faixa marítima aprazível, marcada pelo bem-estar material, higiene e por considerável vida social e cultural, estende-se, nas encostas dos morros que a rodeiam, o bairro popular do Township.

Em imediata proximidade da cidade, logo após bairro de moradias de alto padrão construtivo, dele separado por faixa de terrenos baldios, alcançável por uma ladeira, estende-se o Township de Knysna que, na sua aparência, muito lembra bairros periféricos de cidades brasileiras. Ao lado de ruas, vielas e construções que demonstram ter surgidos de assentamentos não dirigidos, constata-se a ação administrativa na existência de ruas largas implantadas de forma retilínea e em xadrez.

Iniciativas nacionais e internacionais de formação de novas gerações em Townships


O principal centro cultural que se encontra na área da Township de Knysna é a Biblioteca Masifunde da Administração do Sudoeste da África do Sul. È orientada segundo critérios gerais de bibliotecas sul-africanas como um centro de estudos para adultos e crianças.

O nome de Masifunde é conhecido internacionalmente pelo trabalho da associação Masifunde Bildungsförderung e.V., uma entidade de utilidade pública na Alemanha que se dedica a formação de crianças de círculos sociais desprivilegiados de Townships sul-africanos. Financiado por doações da Alemanha, a sociedade desenvolve vários programas em Port Elizabeth.

Atenção recente despertou a criação de um centro no bairro Walmer dessa cidade que, com a aquisição de partes das biblioteca da escola Walmer High School. adquiriu características de um „oáse“ de aprendizado e motivação.

Esse estabelecimento foi resultado do empenho e de interações entre idealistas alemães, representantes e estudantes locais. O objetivo é o de oferecer um espaço de formação visitados por crianças e jovens após o horário escolar, onde recebem alimentação e onde podem cumprir as suas tarefas escolares. Ali podem então participar de programas extra-escolares, de coro ou de teatro, de artes e obter ensino em computadores.

O conceito de „oáse“- e não de jardim da infância -  explica-se pelo fato de ali procurar oferecer-se um ambiente onde as crianças podem ser crianças, permitindo que escapem temporariamente da vida  marcada por preocupações, miséria, riscos, conflitos e violências da sociedade em que vivem


Na Biblioteca Pública de Knysna, os frequentadores podem tomar livros e periódicos em empréstimo, assim como videos, CDS, CD-Roms e jornais.

O seu escopo é o de encorajar à leitura e promover a instrução. Com essa finalidade, também promove apresentações de videos, eventos vários, entre outros programas para tempo livre de trabalhadores e estudantes.

Em espaços reservados, algumas dessas bibliotecas oferecem materiais de interesse para empresários.

A organização temática do acervo de livros da Biblioteca Masifunde oferece uma visão geral do material existente e dos pesos dados às diferentes áreas do saber. Estas são distribuídas segundo as categorias Generalidades, Filosofia e Psicologia, Religião, Ciências Sociais, Linguas, Ciencia, Tecnologia, Artes e Recreação, Literatura, Geografia, História e Biografia.

A Biblioteca empenha-se também em campanhas de esclarecimento público, entre elas engajando-se na campanha de combate à violentação de mulheres e crianças, oference publicações destinadas a pais e jovens e na campanha preventiva de doenças venéreas.

Uma particular atenção é dada à transmissão de conhecimentos que contribuem à consciência cultural auto-valorizadora de grupos étnicos no sentido de democratização. Procura-se, assim corresponder à superação de situações que perpetuam o sistema do Apartheid

Iniciativas da própria comunidade de amparo e formação infantil

Não apenas instituições de órgãos governamentais e iniciativas de organizações internacionais devem ser consideradas quanto ao oferecimento de abrigo, de educação e ensino a crianças dos Townships.

Uma particular atenção deve ser dada às iniciativas nascidas nas próprias comunidades e que levam à criação, ainda que em condições precárias, de berçáríos.

No „jardim da infância“ de Knysna, instalado em pobre barraco de dois compartimentos, as crianças aprendem de forma lúdicas conceitos e atividades das várias esferas da vida do quotidiano através de „Educational
toys“, em particular naqueles brinquedos „de casinha“. Neles existe também um „Fantasy corner“.

Essas iniciativas surgem da própria necessidade de abrigar crianças durante o trabalho de seus pais e familiares, uma situação que se agrava com o crescimento populacional desenfreado.

No clima marcado por necessidades e desesperanças, delinquências, drogas e violências, também essas iniciativas possibilitam um espaço resguardado onde as crianças podem receber atenção e cuidados. Elas substituem em grande parte a ausência maternal e, neste sentido, é significativo o papel que exercem mulheres nos Townships.

O papel da mulher na vida dos Townships e na ultrapassagem de separações

Como observado em Knysna, as mulheres não são só o esteio de famílias - os homens são muitas vezes ausentes na situação de não-rigidez monogâmica que parece predominar - como também responsáveis por iniciativas voltadas ao abrigo e à formação de crianças. É possível que nesse papel predominante exercido por mulheres sob diversos aspectos mantenha-se condicionamentos culturais remontantes a contextos nativos de remota proveniência e de cunho matriarcal.
Mulheres são não só as instrutoras de crianças, como são os principais motores da vida social, entre outros através de atividades das „venda“ local ou de atividades
artísticas. Com essas atividades criadoras, que explicam também uma acentuada auto-consciência e determinação de personalidades femininas, estabelecem-se elos com o mundo exterior. É significativo assim, que uma artista de Knysna mantenha uma sala de exposições no centro da cidade, onde oferece a turistas objetos criados com motivos e técnicas tradicionais.

Esse espaço é dividido com outros artistas, também em parte provenientes de círculos desprivilegiados, e que apresentam pinturas e obras artesanais com motivos folclóricos africanos em geral, não só locais ou regionais, mas também referentes a outros países mais distantes. Registra-se uma relação entre uma pintura e um artesanato com características folclóricas - exóticas para os europeus - com as atividades de „nativos“ que vivem nesses Townships e usam desse meio para a superação de separações e auto-afirmação na sociedade que surge como externa.

O conceito de Township e diferenciações de configurações urbanas deficientes

Na consideração das problemática dos complexos de moradia precários sul-africanos, refletidas na Biblioteca de Knysna, partiu-se de reflexões conceituais, sobretudo a de Township nas suas relações com as de reservas, locations e outras.

Em decorrência sobretudo da política de separação de raças do século XX, o conceito de Township, em princípio referente à cidade, e assim de cunho urbanológico, adquire um sentido sobretudo demográfico, o da população desses complexos de moradia, de modo que o aspecto étnico passa a primeiro plano nas considerações.

As dificuldades desse conceito resultam dos diferentes tipos de assentamentos e bairros assim denominados. Alguns deles são menores, variando na sua aparência de povoados tradicionais a slums, outros assumem grandes proporções, como é o caso mais conhecido do Townships do Sudoeste - Soweto -, um bairro de Johannesburg.

Segundo as concepções de Estado marcado pela separação de raças, esses grupos populacionais deviam viver separados entre si por terrenos livres ou outras formas de separações ou barreiras, como vias de tráfego ou instalações industriais.

Essa concepção urbana traz à consciência uma diferença significativa relativamente a desenvolvimentos urbanos que levaram ao surgimento de favelas e a bairros periféricos no Brasil, uma vez aqui que tais separações  ou barreiras, se existentes, não foram em geral determinadas por medidas administrativas com fundamentação ideológica.

Os Townships trazem, neste sentido, o estigma de não refletirem primordialmente desenvolvimentos resultantes de ocupações ou expansões pouco controladas, mas sim de planejamento de fundamentação ideológica baseado no critério de diferenças étnicas de grupos populacionais.

O cunho „racional“ de estruturações implantadas - arruamentos e divisão de terrenos - conferem a um Township como a de Knysna antes a aparência de algum bairro mais afastado de cidades brasileiras originado de loteamentos de terras em fase inicial de desenvolvimento.

A vivência do espaço, porém, é outra, e assim o sentido dos Townships, uma vez que, diferentemente de casos brasileiros, corresponderam a uma política explícita e fundamentada ideológicamente de separação de grupos populacionais segundo critérios de raça. Esse fato tem consequências para a identidade comunitária, suas as expressões culturais e iniciativas.

Aspectos das reflexões: o argumento sanitário nos desenvolvimentos urbanos

Nas reflexões encetadas na Biblioteca, os jovens basearam-se em informações obtidas pela Internet, colocada à disposição dos leitores por determinado espaço de tempo diário.

Através dessas informações, procurou-se considerar paralelos com desenvolvimentos brasileiros. Esses paralelos podem ser reconhecidos antes em desenvolvimentos anteriores àqueles da política do Apartheid oficializada em 1948.

No passado, em várias cidades sul-africanas, havia bairros nos quais viviam preponderantemente grupos populacionais não-europeus; trabalhadores de porto, do comércio, de fábricas e empregados domésticos dessas cidades viviam em determinados quarteirões, zonas ou em bairros mais afastados, uma situação também conhecida no Brasil.

Também na África do Sul as autoridades procuraram intervir no desenvolvimento urbano e, entre as medidas que mais afetaram esses quarteirões e bairros habitados por pessoas de menor poder aquisitivo, salientaram-se aquelas tomadas em nome da saúde pública e da higiene, do evitar e combater epidemias.

Correspondentemente a preocupações e medidas no Brasil pela passagem do século - como aquelas que levaram à transformação urbana do Rio de Janeiro -, também na Cidade do Cabo houve medidas de higiene pública em 1897.

A legislação passou a conter regulamentos quanto a direitos de moradia e à manutenção da higiene e da ordem pública. Procurou-se evitar concentrações maiores populacionais e impedir moradias em cabanas e casebres para a garantia da saúde pública. 

Entre a legislação e sua prática: o problema do laissez-faire administrativo

Em geral, esse passado foi marcado na prática por uma atitude pouco rígida quanto a controles, de modo que, em certas regiões, desenvolveu-se a construção de habitações precárias e de moradias sem condições sanitárias.

Já uma lei de 1902 da Cidade do Cabo procurou modificar essa situação e melhorar a qualidade de vida dos seus moradores com a reforma de estruturas urbanas e oferecendo áreas de moradia em periferias das cidades maiores.

Essas renovações urbanas levaram a deslocamentos de grupos populacionais não-europeus, praticamente obrigados a abandonar os seus bairros degradados, uma situação que também se conhece do passado do Rio de Janeiro. Como exemplo dessas traslocações, cumpre lembrar aquela que entrou na história da Cidade do Cabo: as de moradores do District Six à Location Uitvlugt (Ndabeni) e, posteriormente, à Langa location.

Também nessas mudanças, o argumento oficial foi primordialmente o sanitário: o da saúde pública, da higiene e da precaução de epidemias. Significativo neste sentido é o fato de que no período de uma epidemia de peste ter-se criado o Ginsberg location; o mesmo procedimento deu-se com a epidemia de Gripe de 1918.

Diferença com a situação brasileira: os „nativos“ correspondem aos índios

O fato do debate sobre o Apartheid ter focalizado a questão das cor de pela, de negros e brancos, corre-se o risco de estabelecer-se paralelos inadequados entre os Townships e as favelas, assentamentos e bairros precários no Brasil. Já a consideração da história da legislação sul-africana relativas aos nativos indica que é esse o conceito que foi condutor durante décadas e que se refere primordialmente a grupos populacionais remontantes àqueles que viviam no território antes da chegada dos europeus.

Trata-se, assim, de um conceito que exige a consideração da expansão colonial e das relações entre colonizadores e nativos que, no caso da colonia do Cabo, basearam-se em contrato com os „hotentotes“. Ordens coloniais holandesas proibiam a escravização de nativos, o que levou à vinda de escravos de outras regiões da África.

A problemática urbana representada pelos Townships não deve ser assim relacionada de forma indiferenciada com aquela da escravidão. Sendo o desenvolvimento histórico das legislação orientado segundo a problemática dos nativos, apenas poderia ser comparado, no caso do Brasil, com aquele referente a diretrizes concernentes a indígenas - não a africanos e seus descendentes.

O traçar paralelos com favelas como as do Rio de Janeiro não parece ser assim adequado, uma vez que nelas não se trata primordialmente da problemática indígena, merecendo tentativas de cotejos antes assentamentos de moradias precárias em regiões amazônicas, podendo-se pensar em bairros periféricos de Manaus, Santarém ou Belém.

A problemática do Apartheid na África do Sul não deve ser assim amalgamada de forma indiferenciada com aquela dos africanos e seus descendentes no Brasil e, em geral, com a da discriminação de negros. Ela diz respeito antes à problemática indígena, a das relações entre a sociedade resultante de processos coloniais com a vinda de grupos humanos de fora e os índios.

Significativo para a compreensão dessa legislação relativa aos nativos foi o ato da criação do Native Affairs Commission em 1920. Esse ato, uma consequência da epidemia de gripe, teve como escopo melhorar a qualidade de moradia para a população nativa com o seu assentamento em bairros separados da estrutura urbana. Com esse planejamento regional urbano, procurou-se também controlar a migração da população nativa de reservas do interior às cidades.

Em novo ato sobre os nativos, de 1923 (Natives Act Nr. 21), previu-se a criação de espaços urbanos com características próprias para essas populações, um documento que é visto como marco de desenvolvimentos de cruciais consequências. Ele previa o assentamento da população nativa em forma de locations separados, prevendo estruturas administrativas locais. Essa solução parecia vir ao encontro de necessidades de procura de mão de obra,  encontrou resistência por parte de empregadores europeus e seus descendentes.

Nos anos de 1930, a tendência geral foi a de criação de Reservas para nativos.

Em 1936 e 1937, com o Native Laws Amendment Act, Nr. 46, abriu-se novas possibilidades de controle e influência na política de moradia, sendo que a administração municipal obteve novos meios para a autorização da vinda de nativos às cidades.

O crescimento da população nas áreas reservadas e a atração dos centros pelas possibilidades que ofereciam de ocupação, levou a uma intensificação de saídas de reservas e de emigrações do interior às cidades. Os centrops urbanos tornaram-se superpovoados, não havendo suficientes moradias para os recém-chegados.

O sistema do Apartheid - argumentos auto-justificadores e consequências

As principais medidas que levaram ao Apartheid ocorreram após a Segunda Guerra Mundial. Já esse fato demonstra que são inadequadas comparações dos assentamentos sul-africanos com os campos de concentração dos nazistas das décadas de 1930 e 1940.

Em 1945, a lei Natives (Urban Areas) Consolidation Act (Act Nr. 25) mandava que as instâncias locais criassem áreas de moradia para a população não-branca em forma de locations ou Native villages, fossem estas com cabanas tradicionais ou casas.

Em 1947, o Primeiro Minisro chegou à conclusão que não apenas se devia pensar em reservas no interior do país, mas também paralelamente na criação de cidades e povoados às portas das grandes cidades e de fábricas, um pensamento movido sobretudo por conjecturas laboriais.

Nos anos cinquenta, a legislação passou a entrar em maiores detalhes quanto à separação dessas áreas no tecido urbano. Assim, em 1954, o Department of Native Affairs decide que as locations deveriam manter uma distância mínima (457 metros) relativamente a bairros vizinhos habitados por outros grupos étnicos. Com relação a outras áreas, a distância era de 183 metros. As locations deveriam ter ruas próprias de entrada e não poderiam ser criadas em estradas e rodovias. Os novos povoados deveriam ser planejados no sentido de que favorecessem a separação de grupos da população africana segundo idiomas para que se pudessem criar escolas elementares nas línguas nativas e facilitar a auto-administração.

Sendo todo o debate e a respectiva legislação voltada à problemática dos nativos, as „cidades“ para a sua moradia, os Townships, foram previstas como temporárias, não criadas para a presença definitiva de seus moradores.

Ainda em 1967, a Bantu Administration lembrava que uma área de moradia Bantu urbana não era uma aldeia nativa, um contexto natal, mas sim uma parte de território da sociedade não-nativa, oferecendo apenas uma possibilidade temporária de vida. Ela não devia assim favorecer a presença definitiva de seus moradores, mas sim o seu retorno às reservas do interior. Por isso, não deviam oferecer condições atrativas que tentassem os seus moradores a um estabelecimento permanente. Não deviam oferecer nenhum luxo, não oferecendo condições melhores do que aquelas que tinham na sua terra natal. A manutenção de condições precárias de moradia surgia assim como proposital para que a população não se radicasse e não retornasse a suas áreas reservadas no interior.

Dinâmica der processos e mudanças de idéias condutoras - planejamento urbano

Contrariamente às intenções de diretrizes que previam uma temporariedade de permanência de nativos em „cidades“ junto a centros urbanos, tornaram-se aquelas locais definitivos de moradia para aqueles que não retornaram às suas terras. Com o extraordinário crescimento populacional, intensificaram-se problemas sociais.

Na década de 1980, os problemas surgidos levaram à procura de reformas e de modificação do planejamento regional e territorial. As diretrizes da época já demonstram que o pensamento e o debate já não se orientavam mais segundo o nativo, um conceito qiue dá lugar ao de planejamento urbano. Assim, em 1986, i Town Planning and Townships Ordinance estabeleceu bases de planejamento que em parte continuam ainda vigentes no presente.

A idéia condutora de décadas, que partia antes da concepção de área reservada para nativos, continuou porém a manifestar-se na atenção dada a que uma área autorizada para o estabelecimento de um Township devia ser delimitada e separadas da estrutura urbana, dele separado e a êle ligado por uma via de entrada e saídas. Perante os problemas sociais, econômicos e técnicos resultantes do crescimento desenfreado de cidades, promulgou-se em 1986, a partir de recomendações do Committee for Constitutional Affairs of the President‘s Council, o White Paper on Urbanisation.

Nos anos de 1990, a situação social agravou-se de tal forma que, nos Townships intensificaram-se protestos e revoltas que, pelas suas dimensões, despertaram a atenção internacional. Para encontrar soluções, o Presidente Frederik Willem de Klerk em 1994, criou o Katorus Task Group.

Em 1994, em iniciativa do Presidente Nelson Mandela (1918-2013), teve início o processo transformatório dos Townships com o escopo de renovação e desenvolvimento urbanos; essas medidas foram acompanhadas por consideráveis investimentos em 13 Townships. Em 2001, os Urban Renewal Programmes, paralelamente aos Integrated Sustainable Rural Development Programmes previu medidas contra a pobreza e a segregação social.


Um problema do passado e do presente: o descontrolado aumento populacional

Na visita, constatou-se o principal problema do passado e sobretudo da atualidade: o crescimento populacional devido ao grande número de nascimentos. O excesso populacional leva a situações indignas quanto a moradia, higiene e qualidade de vida dos moradores dos Townships. Em visitas a algumas dessas moradias, constatou-se que dezenas de pessoas - familiares e agregados - vivem numa mesma casa de dois pequenos quartos, cozinha e banheiro, prevista para uma família constituída por casal e um ou dois filhos.

Embora sob Nelson Mandela tivesse ocorrido uma melhoria quanto às dimensões de uma casa padrão, esta não comporta o número de seus moradores, sendo estes obrigados a revezarem-se para que possam encontrar um espaço para dormir. Essa superpopulação tem graves consequências sanitárias.

Mantém-se, assim, os problemas de higiene e de riscos à saúde que marcaram desde fins do século XIX as preocupações relativas a moradias precárias.

Esse fato, além de aspectos culturais, tornaram ineficazes também planos bem intencionados de planejadores. Assim, uma nova casa-padrão deveria ter uma área livre para a criação de uma horta ou jardim, o que não é concretizado. As casas passam assim a ser rodeadas de um espaço não cultivado e poluído, lamacento por ocasião de chuvas.

Questões de coerência: superação de separações e acentuação de diferenças

Em grandes cartazes ilustrados de uma série denominada de „A Cultural Image of South Africa“, os usuários da biblioteca são informados a respeito da história e das características culturais de diferentes grupos populacionais nativos.

Entre êles, por exemplo, jovens leitores recebem informações sobre povo de fala SiSwati que vive sobretudo na Swzaziland, Província Gauteng e Mpmalonga, assim como do povo de fala Setsivana, bem como sobre os Zulu e os Xhosa. O estilo desses cartazes é ilustrativo, lembrando as suas imagens revistas de quadrinhos, os textos simples e em linguagem popular, também nas línguas nativas.

Esse intento de recuperar a auto-consciência histórica e étnica de grupos culturais, salientando assim características diferenciadoras, surge como paradoxal e levanta questões quanto à coerência de princípios condutores de ação.

Se por um lado combate-se o sistema do Apartheid, que, entre outros aspectos, foi guiado segundo o argumento de que as crianças de cada grupo étnico deveriam receber formação na
lingua e segundo os costumes do respectivo grupo, por outro mantém-se esse mesmo intento em época que procura superar relitos e consequências do sistem de separação de grupos culturais.

Como discutido, corre-se aqui o risco de que estes intentos não se voltem a uma fundamental transformação da interação dos vários segmentos da população, mas sim simplesmente a uma inversão quanto a situações de poder.

Tudo indica a necessidade de reflexões teóricas mais profundas sobre relações entre diversidade e unidade, sobre integração e diferenciação para que os intentos não repitam desenvolvimentos do passado e situações conhecidas de outros contextos, entre outros de permanência de concepções ideológicas de raças, ainda que agora sob novo signo.







De ciclo de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „ Falências urbanas em diferentes contextos: concentrações étnicas de grupos populacionais,
segregações, separações e suas superações- questões de coerência em intentos de reconstrução de identidades culturais diferenciadas -Townships na África do Sul em paralelos com favelas e bairros precários do Brasil“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 173/19(2018:3).http://revista.brasil-europa.eu/173/Townships_e_favelas.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller,
N. Carvalho, S. Hahne