A capela submersa da catedral de Palma
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 174

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Catedral de Palma, Foto A.A.Bispo 2018, Copyright

Catedral de Palma, Foto A.A.Bispo 2018, Copyright

Catedral de Palma, Foto A.A.Bispo 2018, Copyright

Catedral de Palma, Foto A.A.Bispo 2018, Copyright

Catedral de Palma, Foto A.A.Bispo 2018, Copyright

Fotos A.A.Bispo 2018©Arquivo A.B.E.

 


N° 174/10 (2018:4)




A capela submersa da catedral de Palma de Mallorca
Referências africanas e raízes mediterrâneas na linguagem de imagens
e na interpretação de relatos bíblicos
Hilemorfismo e o „milagre cerâmico“ dos pães e peixes


Reflexões na Capela do Santíssimo da Catedral de Palma, Mallorca
Estudos mediterrâneos pela celebração de Valletta como „Capital Européia da Cultural 2018“


 
Catedral de Palma, Foto A.A.Bispo 2018, Copyright

O mar e a simbólica marítima na linguagem visual de expressões culturais, na arquitetura, nas artes e na música constituiram um dos principais complexos temáticos que marcaram os trabalhos euro-brasileiros conduzidos no Mediterrâneo em 2018. (Veja)

Neles, por motivo das atualidade das atenções a essa e essa esfera devido à celebração de La Valletta como „Capital Européia da Cultura“, foram retomadas reflexões que desde a década de 1970 veem marcando os estudos de processos culturais, em particular daqueles relacionados com o Brasil e com Portugal.

A fundamental importância de estudos do „Mare Nostrum“ - as águas que separam e unem a Europa e o Norte da África, o Oriente e o Ocidente - já tinha sido reconhecidas há muito em várias áreas do conhecimento. (A.A.Bispo, „Zum Einstieg in die kulturwissenschaftliche bzw. -philosophische und volkspsychologische Betrachung: Mysterium Wasser (...)“„, Grundlagen christlicher Musikkultur in der außereuropäische Welt der Neuzeit I, Musices Aptatio 1987/88, Roma/Colonia: Consociatio Internationalis Musicae Sacrae, Luthe, 101 ss.)

Uma nova fase dessas atenções iniciou-se com impulsos decorrentes de estudos realizados no Brasil desde meados dos anos de 1960.

Sobretudo a consideração de práticas religiosas em fontes, rios, mar e praias em São Paulo no Rio de Janeiro e observações em viagens de estudos à Bahia e ao Nordeste do Brasil no início da década de 1970 despertaram à consciência da necessidade de uma atualização de perspectivas, de revisão de interpretações e explicações de origens, assim como de um direcionamento da atenção a processualidades, tanto relativamente a processos históricos de difusão, recepção, conservação e adaptação de antigas concepções e práticas, como de processos sistêmicos do próprio edifício cultural.

Tendo sido considerada sob o aspecto etnomusicológico no âmbito de cursos superiores de música da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo, em particular em simpósio dedicado a estudos de Umbanda e Candomblé, em 1973/1974, a problemática passou a mesma a ser tratada em cooperação com pesquisadores europeus e teólogos interdisciplinarmente em encontros na Alemanha.

Com a criação do Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos da organização pontifícia de música sacra (Consociatio Internationalis Musicae Sacrae, Roma), em 1977, esses estudos intensificaram-se devido à natureza fundamental de concepções relacionadas com o mar sob o aspecto dos estudos de tradições católicas, na teologia e sobretudo na hagiografia, salientando-se aqui sobretudo aquelas do culto mariano.

Considerou-se em várias ocasiões, sobretudo em encontros em Roma, a impossibilidade de estudos de mariologia e de expressões culturais hiperdúlicas em geral sem a consideração filosófica, arqueológico-cultural e empírica de concepções relacionadas com o mar.

Yemanja, Salvador. Foto A.A.Bispo 1980. Copyright
Para a atualização de conhecimentos, com o apoio de institutos universitários da Alemanha e do Vaticano, promoveu-se uma viagem de estudos ao Brasil em 1980, considerando-se em particular expressões relacionadas com Iemanjá em Salvador e em concentrações de umbanda na Praia Grande, SP.

Esses trabalhos deram impulsos aos estudos na década de 1980,  sendo estes desenvolvidos em com a cooperação de estudiosos da Antiguidade e em visita a sítios arqueológicos e museus em diferentes países e regiões da Europa e do Oriente Próximo.

Esse desenvolvimento dos estudos confirmou a exigência
Umbanda, Praia Grande. Foto A.A.Bispo 1980. Copyright
de renovação de interpretações e explicações de origens já constatada no Brasil.

Essa necessária revisão de conceitos e aproximações dizia e diz respeito, do ponto de vista teórico, em particular a concepções de sincretismo, tanto em expressões observáveis no presente como no tratamento da Antiguidade tardia e em permanências através dos séculos.

Para a discussão dessa problemática e de suas implicações nas ciências e nas relações entre estudiosos, realizou-se, em 1989, o simpósio „Tradições Cristãs e Sincretismo“ em Bonn, então capital da Alemanha, evento que contou com a cooperação de várias universidades e institutos de pesquisa europeus e brasileiros.(Veja)

Nesse contexto, compreende-se a renovada atenção a essa discussão teórica no âmbito dos estudos mediterrâneos de 2018, uma vez que o conceito de sincretismo e concepções similares de síntese, simbiose e misturas adquirem atualidade e marcam estudos culturais, da arquitetura e da arte.

Após ter sido considerada a questionabilidade desses conceitos no caso da arte normano-árabe-bizantina na Sicília da Idade Média em Monreale, (Veja) recordou-se a discussão levada a efeito na década de 1980 referente à esfera balear na catedral de Palma de Mallorca.

Catedral de Palma, Foto A.A.Bispo 2018, Copyright

A configuração da capela do Santíssimo da catedral de Palma por Miquel Barceló

O projeto que levou à reconfiguração da capela do Santíssimo Sacramento da catedral de Palma de Mallorca remonta ao início do corrente século. Em janeiro de 2000, a Universidad de las Islas Baleares propôs conceder ao pintor mallorquino Miquel Barceló o título de doutor honoris causa, uma honra que o artista aceitou sob a condição de realizar uma obra de dimensões emblemáticas para a ilha de Mallorca.

O projeto foi aprovado em dezembro de 2001, prevendo a criação de um revestimento de cerâmica de ca. de 300 metros quadrados, recobrindo praticamente toda a superfície da capela gótica. Esta, situada ao lado direito do coro do altar, é, pelas suas funções de adoração do Santissimo Sacramento e pelas missas diárias que ali se celebram, um dos principais espaços da catedral.

O contrato foi fechado em agosto de 2002 entre Barceló e a Fundação Art a la Seu, promotora da obra. Através dessa fundação, co-participaram, como nela integrados, a Diocese, o Govêrno das Ilhas Baleares, o Conselho de Mallorca e o Ayuntamento de Palma, assim como o capítulo da catedral.

Completando a obra na sua integralidade, o artista projetou o altar e outras partes do mobiliário, entre elas os assentos do celebrante e dos participantes de atos litúrgicos. Inserindo-se no projeto geral, o artista repintou os cinco vitrais da capela, respectivamente de 12 metros de altura.  A obra foi inaugurada com a presença dos reis da Espanha.


Polêmica - posições positivas e negativas na avaliação da obra

Toda a obra, em particular os vitrais, causou polêmica, continuando ainda hoje a dividir opiniões de visitantes, estudiosos e dos próprios membros do capítulo.

Os seus defensores lembram que a catedral de Palma não só recebeu contribuições artísticas de diferentes épocas, caracterizando-se por uma diversidade de estilos, do gótico ao gótico tardio, ao plateresco manierista e ao classicismo, como também do Modernismo catalão com os aportes reconfiguradores de Antoni Gaudi (1852-1926) e Josep Maria Jujol (1879-1949) no início do século XX. 


A catedral surge para esses defensores da obra sobretudo com essas intervenções do século XX como um exemplo excepcional de diálogos de um monumento histórico com o contemporâneo e suas tendências estético-culturais. A reconfiguração da capela do Santíssimo inscreve-se assim numa corrente secular de processos de interações criativas e, compreensivelmente, reinterpretativas, sempre porém em coerência interna.

Nessa visão positiva, salienta-se também o programa teológico da obra, centralizado na imagem do Cristo ressucitado acima do sacrário e ladeado por referências aos episódios da multiplicação dos peixes e pães das bodas de Cana e do milagre da transformação da água em vinho nas suas relações com o ato eucarístico celebrado na capela.

Com essa obra, criada por um artista conhecido por sua distância relativamente ao clero e à Igreja, que se identifica até mesmo como sendo agnóstico, a Igreja demonstraria nessa argumentação o seu respeito e a importância que empresta à obra de arte, desde que esta, nos seus fundamentos e no seu todo não contrarie concepções teológicas.

A contratação dessa obra e a sua realização representariam nessa apologia uma expressão dessa abertura e um ato único de intervenção patrimonial de significado transcendente, global: nenhum monumento de tal importância histórica, nenhuma catedral gótica teria sido alvo de uma intervenção artística de tal porte do que aquela da Sé de Palma.

Os críticos da obra, entre outros aspectos, manifestam a sua estranheza pelo fato do artista, com a representação do mundo aquático, de peixes e plantas submarinas, ter colocado a capela sob o mar. Celebrantes e fiéis são posicionados sob as águas e, assim praticamente toda a catedral é submersa.

Criticados são sobretudo os vitrais, uma vez que, escurecidos, deixam apenas transparecer pouca luz, o que contrariaria o significado da luz no Cristianismo. Esse tratamento dos vitrais não teria sido aprovado pelo Capítulo, tendo sido um „fato feito“, premido pela vinda dos reis para a inauguração da capela.

A intenção desses vitrais, porém, é evidente, pois acentua a atmosfera submarina do espaço. A pouca luz que os transpassa corresponde àquela de um homem mergulhado que, do fundo do mar, da escuridão em que se encontra, dirige o seu olhar ao alto, desvendando apenas a luminosidade que atravessa as águas.

Programa teológico e linguagem visual - diferenças e convergências

Essa polêmica mallorquina revela problemas referentes à leitura de programa teológico e à leitura da linguagem visual sob diversos aspectos e em diferentes níveis.

Os membros capitulares, as autoridades eclesiásticas e aqueles marcados por formação teológica tendem a considerar a obra a partir de suas referências às Escrituras, mesmo concedendo liberdade criadora ao artista. Este, porém, procede por caminho oposto, integrando essas referências em contexto imagológico marcado por uma visão do mundo, da existência e de mistérios intendidos por aqueles que o contrataram a partir de um ponto de perspectiva nos fundos das águas.

Trata-se aqui de questões de leitura da linguagem visual - e da obra na sua integralidade - que conferem a essa intervenção na catedral de Palma um significado que ultrapassa a esfera local e regional.

Influência africana? Concepções de remotas origens e raízes mediterrâneas

Nas aproximações à compreensão da linguagem visual do artista, encontra-se repetidamente referências a seu interesse pela natureza e aos impulsos que recebeu de suas viagens em diferentes regiões.

Salienta-se sobretudo uma influência da arte e de concepções africanas, mencionando-se até mesmo explicitamente determinadas regiões da África Ocidental, em particular aquela do rio Niger. Neste sentido, a capela reconfigurada surgiria como uma das mais significativas expressões de interações culturais, estéticas e mentais entre tradições africanas e afro-americanas e a cultura européia. Representaria uma espécie de recepção cultural africana no Velho Mundo, e isso na Capela do Santíssimo de uma de suas mais representativas catedrais do Ocidente.

Por outro lado, lembra-se do interesse e mesmo fascínio do artista pela natureza, em particular aquela da esfera mediterrânea. Não só a água e a terra do espaço maiorquino, mas também o mundo natural de todo o Mar Mediterraneo teriam constituído sempre o alvo principal de sua atenção, reflexões, marcando a sua obra criadora. Significativamente, um papel importante na sua trajetória como artista plástico desempenhou a sua cooperação com artistas da esfera sul-italiana.

Esse interesse pela natureza dessa região do globo explicaria relações entre concepções e imagens atribuídas como sendo africanas com um substrato cultural de remotas origens, chegando-se a lembrar de representações pré-históricas de Altamira. A obra poderia ser compreendida como uma ressonância arqueológico-cultural ou reatamento de raízes mediterrâneas.

O processo plástico, tatuagem e concepções de hilemorfismo da antiga Filosofia Natural

Um aspecto que merece particular atenção na consideração da obra reconfiguradora da capela de Miguel Barceló é aquele referente ao processo plástico que a fundamente e que nela se reflete.

Não se trata primordialmente de uma obra pictórica, mas sim de plástica, vindo neste sentido ao encontro da tradição de cerâmica de tanta importância para a cultura maiorquina.

Essa referência à cerâmica tem sentidos profundos, uma vez que diz respeito a antigos conceitos de forma e matéria, à materialização da forma e à conformação da matéria. A matéria - a terra ou argila na sua mistura com a água, solidifica-se e toma forma. Como vasos ou panelas de cerâmica indicam, torna-se a terra assim conformada ela própria receptáculo e forma. Trata-se da concepção da de matéria amorfa, de caos, e que é ordenada pela ação de um agente formal, surgindo a configuração natural do mundo perceptível pelos sentidos.

Na tradição da Gênesis, esse processo, relatado nos dias da Criação, tem o seu antecedente numa perda original da forma da matéria, um processo por assim dizer de entropia que leva à situação de trevas na qual a luz se fêz.

Na interpretação da obra, menciona-se as experiências ganhas por Miquel Barceló juntamente com artista da região de Nápoles com a terra úmida que, em estado liquefeito, escorre e toma forma em processo de solidificação.

Em associações mais complexas, que nos seus significados ultrapassam sentidos meramente literários ou poéticos, estabelecem-se pontes entre esse processo configurador e a tatuagem, surgindo a terra ou a argila com as suas texturas como pele marcada pela interação da forma com a matéria.

Sob esse amplo pano de fundo de concepções filosófico-naturais de antigas origens compreende-se uma aproximação ao relato bíblico dos pães e dos peixes representado na capela como a de um „milagre cerâmico“.

De ciclo de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „ A capela submersa da catedral de Palma de Mallorca. Referências africanas e raízes mediterrâneas na linguagem de imagens e na interpretação de relatos bíblicos. Hilemorfismo e o „milagre cerâmico“ dos pães e peixes“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 174/10(2018:4).http://revista.brasil-europa.eu/174/Catedral_de_Palma_Miguel_Barcelo.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller,
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