Práticas tradicionais e processos dirigidos
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 174

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Museu de Folclore, Malta. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

Museu de Folclore, Malta. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

Museu de Folclore, Malta. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

Museu de Folclore, Malta. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright


Museu de Folclore, Malta. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright

Fotos A.A.Bispo 2018©Arquivo A.B.E.

 


N° 174/4 (2018:4)




Práticas tradicionais como resultado de processos dirigidos:
o papel de ações missionárias do passado e seus efeitos demopsicológicos
no exemplo de figuras de Semana Santa e suas miniaturas em Malta

Indoutrinações e tradições populares - Malta e Brasil I


Museu de Folclore no Palácio do Inquisidor, Vittoriosa. Pela celebração de La Valletta como „Capital Européia da Cultura“

 

Em ano em que a capital de Malta é celebrada como „Capital Européia da Cultura“ não pode deixar de ser considerada nos estudos de processos culturais em relações internacionais a pesquisa local de expressões culturais vistas como próprias e assim elementos da identidade maltesa.

Trata-se aqui sobretudo da área do Folclore, um campo de estudos no qual Malta se destaca por trabalhos de seus pesquisadores e pelas cooperações com estudiosos de outros países.

Já na década de 1980, quando da realização de encontros e estudos em Malta, expressões de música, dança e representações tradicionais maltesas foram observadas e discutidas com pesquisadores locais em cotejos com o Brasil. (Veja)

Nesses colóquios, reconheceu-se o significado de considerações conjuntas, uma vez que, devido aos estreitos elos das expressões tradicionais maltesas com o ciclo do ano do calendário católico, constatam-se sentidos comuns e similaridades com muitas daquelas do Brasil.

A extraordinária importância do Catolicismo em Malta, explicável sobretudo pelo seu passado marcado pela atuação da Ordem dos Joanitas no campo de tensões do confronto entre o Islão e o Cristianismo, pela ação missionária de várias ordens e também pela Inquisição, abre perspectivas para a compreensão de contextos que contribuem para a análise de expressões tradicionais brasileiras e ao debate teórico respectivo.

Estudos da Inquisição e Folclore: museus no Palácio do Inquisidor em Birgu

A esse significado de Malta para o tratamento de expressões culturais do Catolicismo já foi dedicada uma série de estudos desenvolvidos na capital e no interior da ilha em outras ocasiões. No corrente ano, por motivo da celebração de Valletta como „Capital Européia da Cultura“, esses trabalhos foram retomados, considerando-se em especial as iniciativas e a orientação do Museu de Folclore - seção de Etnografia do servico do Patrimônio de Malta - em Birgu/Vittoriosa.

Instalado significativamente no antigo palácio do inquisidor, hoje Museu da Inquisição (Veja), já por essa proximidade institucional esse museu favorece reflexões sobre relações entre as expressões tradicionais religiosas estudadas sob o conceito de folk-lore e as ações eclesiásticas de um passado inquisitório. Essas ações são tratadas no museu nos seus intuitos de cunho missionário, re-catolizadores e educativos do povo na tradição do combate a heresias provinda da Idade Média, do Islão que marcou a história da Ordem de S. João e da reforma eclesiástica dos séculos XVI e XVII segundo as normas do Concílio de Trento.

A presença do Museu de Folclore no palácio do inquisidor de Vittoriosa não deve ser vista como de secundária importância, uma vez que os estudiosos malteses salientam um aspecto pouco considerado nos estudos das Inquisição: o da sua função missionária, sobretudo entre as camadas mais simples da população.

Não se pode suficientemente salientar que não só jesuítas e religiosos das diferentes ordens devem ser considerados quanto à sua atuação na formação religioso-cultural popular, como também os inquisidores.

Esse fato permite o prosseguimento relacionado de estudos que por último foram desenvolvidos no contexto latino-americano em 2017: tanto aqueles no museu do antigo Tribunal da Inquisição de Cartagena de Indias (Veja), como no dos presépios na igreja do Oratório da Cidade do Panamá. (Veja)

Ações de intuitos missionários ida Reforma católica e o estudo de tradições populares

O direcionamento da atenção ao papel desempenhado por ações eclesiásticas de cunho missionário interno de séculos marcado por intentos de reforma católica na configuração de expressões culturais que, transmitidas pela tradição, hoje são objetos de estudos contribui ao debate teórico relativo à conceituação da área de pesquisas designada por Folclore que vem sendo há muito desenvolvido.

No Museu de Folclore no Palácio do Inquisidor revela-se de forma particularmente expressiva a discutida problemática de divisões entre „cultura espontânea“ e aquela dirigida, resultante de ensino ou de outros meios, uma vez que o que pode se apresentar como espontâneo no presente foi resultado da ação dirigida no passado da época da reforma interna do Catolicismo com o seu cunho educativo e formativo religioso-cultural.

O intuito missionário não se dirigiu apenas a povos não-cristãos, mas sim e, no caso de Malta, sobretudo a camadas menos instruídas da população, a camponeses, cuja vida religiosa e festiva era marcada por tradições provenientes da Idade Média, em parte resultantes de antigos procedimentos pastorais e cuja linguagem visual já parecia não ser compreensível.

Vendo-se como falha a ação das paróquias, os agentes missionários, inquisitores e religiosos de ordens, no seu intuito de combater o que viam como ignorância, fomentaram expressões que não mais partiam de uma linguagem de imagens decorrentes de antiga hermenêutica mas sim de representações realistas de vultos da história bíblica e eclesiástica.

É significativo que Malta não apresente a diversidade de imagens de sentido hoje visto como de difícil interpretação transmitido por colonos europeus à América Latina. Nesse sentido, as expressões religiosas de Malta são por assim dizer mais recentes do que muitas daquelas de países como o Brasil, apesar da riqueza e da intensidade de representações em procissões e festas religiosas.

O significado da estatuária religiosa em Malta como indicativo de ação dirigida

Museu de Folclore, Malta. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright
Um dos aspectos que mereceram particular atenção nos estudos até hoje realizados em Malta foi o do significado de representações de figuras bíblicas e de santos em procissões e festas religiosas.

Muito mais do que no Brasil, Malta impressiona o observador pela quantidade e qualidade artística da estatuária religiosa. Para além de procissões, grandes figuras de personagens bíblicos e santos são levantadas em ruas e praças por ocasião de festas do calendário religioso.

O museu de Folclore instalado no Palácio dos Inquisidores permite que se reconheça algumas tendências do pensamento de pesquisadores malteses, de novos desenvolvimentos no presente e de iniciativas voltadas à preservação e valorizações dessa tradição de representações realistas.

Justamente esse significado da estatuária demonstra a intensidade com que, no passado, procurou-se instruir o povo relativamente a fatos e personagens da história religiosa de forma a causar impressão e causar comoções.

A estatuária processional em Malta - relações com a Espanha, com Nápoles e Sicília

Considerando-se a rica estatuária processional da Semana Santa, salienta-se no museu de Vittoriosa em primeiro lugar a influência da Espanha, remontante sobretudo à época dos intensos elos com o reino de Nápoles e Duas Sicílias.

Esses mais antigos exemplares são manequins cobertos com vestimentas, tendo cabeças, mãos e pés esculpidos e artisticamente pintados. Essas representações podem ainda ser encontradas em uso em Vittoriosa, onde, porém, em algumas paróquias, já são substituídas por figuras completas, ou de madeira, ou de papel mâché.

Figuras de madeira foram criadas por artistas de renome como Mariano Gerada (1770-1831) e seus discípulos, entre eles Alessandro Farrugia (1791-1871), Pietro Paolo Azzopardi (1791-1875) e Salvatore Psaila (1798-1871).

As figuras em papier-mâché foram introduzidas em meados do século XVIII a partir da Sicília.

Na expressividade do tratamento artístico em papier-mâché, essas imagens surgem como de significado para a história da arte maltesa, nela se destacando nomes de artistas como Saverio Laferia (+1761), Antonio Mifsud (1760-1830), Giuseppe Vella (1802-1865), Carlo Darmanin (1825-1909), Abram Gatt (18631944), Vincenzo Cremona (1851-1912), Carmelo Mallia (1880-1931) e, mais recentemente, Agostino Camilleri (1885-1979). Nos anos de 1960 e 1970, destacou-se Gerolamno Dingli.


Para além da produção local, lembra-se no museu que houve importação de figuras do Exterior.

Já no início do século XVIII trouxeram-se figuras da Sicília que hoje se encontram na catedral de Gozo.

Em 1914, foram encomendados oito grupos de estátuas da firma Luigi Gaucci de Lecco. Esses elos com outras regiões italianas e com o norte da Itália também se manifestam em aquisições mais recentes. Assim, nas décadas de 1960 e 1970, foram adquiridos figuras de Salvatore Bruno de Bari e 70 grupos de figuras de Angelo Capoccia em Lecco e de artistas de Bolzano.

Esses elos com a Lombardia e o Tirol do Sul revelam vínculos com a arte escultórica austríaca e bávara. Estabelecem-se, assim, pontes com a arte religiosa de uma região que também foi intensamente marcada pelo movimento contra-reformatório em séculos passados e cujas consequências se manifestam ainda hoje na arquitetura, nas artes e na vida religiosa e festiva.

Vultos e episódios representados: repertório tradicional e adendos

As principais representações plásticas na Semana Santa de Malta são aquelas baseadas nos mistérios do Rosário, estandartizadas segundo oito episódios: a agonia de Cristo no horto, o pilar, o da coroa de espinhos, a queda sob a cruz, a Verônica, a crucificação, o enterro de Jesus e Nossa Sra. das Dores.

Discutiu-se, no museu, se nessas representações, vistas pelos pesquisadores como baseadas nos mistérios dolorosos, poder-se-ia ver uma extensão da prática do rosário promovida pelos Dominicanos e, assim, relacionadas direta ou indiretamente com a Inquisição.

Digno de atenção é o fato de registrar-se, no museu, que essa tradição de representação figurativa modificou-se e ampliou-se no decorrer do tempo. Uma importante inovação deu-se quando uma paróquia encomendou uma representação da traição de Judas, um tema que deu origem a várias versões.

Entre outros episódios acrescentados, lembra-se no museu que nas décadas de 1960, 70 e 80 podia-se via-se nas ruas de Malta grupos de figuras representando a última ceia, o encontro de Pedro com os soldados, Cristo com a sua mãe ou Simão de Cirene. Na atualidade, as procissões de Sexta Feira Santa incluem de 7 a12 figuras.


Efeitos na mentalidade e psique do povo - reelaborações criativas em miniaturas

O efeito dessa tradição na psique do povo é exemplificada na vida e na obra de Alfred Cauchiu. Lembra-se que desde a sua infância esse artista impressionou-se profundamente pelas representações da Semana Santa a ponto de colecionar miniaturas de figuras processionais vendidas no comércio da cidade de Paola.

Em 1989, Cauchiu começou a criar modêlos em pequena escala de decorações de igrejas. Sob encomenda, criou, em 1992, um conjunto de 12 miniaturas de igrejas ornamentadas que alcançou reconhecimento do povo e das autoridades.

Expôs esta sua obra na sua própria casa, em Taxien, que abria aos passantes durante a Semana Santa. Em 1993, o modêlo foi exibido no Palazzo Costanzo em Mdina e, em 1994, na capela de Santa Agatha, onde permaneceeu até 2007. Adquirido pelo serviço de Patrimônio, passou a ser objeto de exposição permanente no museu instalado no palácio do inquisidor.

Entre as figuras da obra de Cauchiu, atenção particular merece a da figura da Verônica desvendando o lenço com a efígie de Jesus, uma vez que representa, em miniatura, a Verônica que entoa o seu canto nas procissões.


De ciclo de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „Práticas tradicionais como resultado de processos dirigidos: o papel de ações missionárias do passado e seus efeitos demopsicológicos no exemplo de figuras de Semana Santa e suas miniaturas em Malta“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 174/4(2018:4).http://revista.brasil-europa.eu/174/Semana_Santa_em_Malta.html



Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller,
N. Carvalho, S. Hahne









 

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