Anjos violeiros e violeiros da terra
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 175

Correspondência Euro-Brasileira©

 




Igreja do Topo, S. Jorge. Foto A.Bispo 2018, Copyright

Igreja do Topo, S. Jorge. Foto A.Bispo 2018, Copyright

Igreja do Topo, S. Jorge. Foto A.Bispo 2018, Copyright


Igreja do Topo, S. Jorge. Foto A.Bispo 2018, Copyright

Igreja do Topo, S. Jorge. Foto A.Bispo 2018, Copyright

Ponta Delgada e Topo.
Fotos A.A.Bispo 2018©Arquivo A.B.E.

 


N° 175/7 (2018:5)




Linguagem visual e instrumentos musicais nos Açores e no Brasil:
o anjo violeiro na „Coroação da Virgem“
na Igreja de Todos os Santos do Colégio dos Jesuítas de Ponta Delgada, ilha de São Miguel
e os violeiros da terra em altar da matriz do Topo, ilha de São Jorge

Ciclo de estudos pelos 50 anos da Sociedade Nova Difusão Musical
e 85 anos do musicólogo Dr. Armindo Borges, Vice-Presidente do ISMPS
Núcleo de Arte Sacra do Museu Carlos Machado, Ponta Delgada
Igreja de Nossa Sra. do Rosário do Topo e Museu de Arte Sacra da Matriz de Vela, São Jorge

 

Os Açores merecem uma particular atenção nos estudos musicológicos de orientação cultural, em particular também naqueles relacionados com o Brasil.

O reconhecimento desse significado da música e dos instrumentos musicais dos Açores não é recente na corrente de pensamento e de pesquisas que remontam ao Brasil.

O contato com músicos de ascendência açoriana em São Paulo levou já à época da constituição da Sociedade Nova Difusão, em 1968, ao despertar da atenção à música e à dança sob o aspecto de processos culturais, em particular também naqueles de contextos da imigração.

Se o cultivo de danças tradicionais em comunidades de ilhéus e seus descendentes constituiu ponto de partida pela evidência de elos culturais que manifestam em nomes, formas, melodias, trajes e atributos, logo passou-se a considerar processos de difusão e adaptação em expressões musicais e instrumentos já não especificamente identificados como açorianos.

Esses intentos puderam basear-se em trabalhos de pesquisadores de Folclore que já de longa data consideravam não só permanências, como também interações, assimilações, adaptações e transformações culturais remontantes a um passado mais remoto da história da imigração e colonização e que, já integrados num patrimônio compreendido como nacional, já não mais surgiam como específicas de um grupo populacional de origem imigratória.Essa preocupação disse respeito sobretudo a questões organológicas e, entre elas à viola, viola da terra ou „viola de arame“ açoriana nas suas relações com a viola no Brasil.

Já há muito havia literatura voltada à viola na sua prática no Brasil, em particular na área de estudos do Folclore. As designações do instrumento, de instrumentistas, da música e de diferentes situações de seu uso como „capira“ ou „sertanejo“ levaram ao reconhecimnento de seus elos de sentidos com o interior, o rural, o campo e a terra.

De início, essas designações foram entendidas como sinais da necessidade de aproximações de natureza sociológica e de reflexões sobre relações cidade/campo, do urbano e rural e, consequentemente, com o direcionamento da atenção a processsos, àquele da  urbanização e o da difusão da música e do instrumento „caipira“ em contextos urbanos. Logo a atenção passou a ser dirigida ao fato da designação referir-se ao homem caipira, ao homem interiorano, ao homem da terra, ao sertanejo como homem de regiões rústicas, ou seja, a seus sentidos antropológicos e suas implicações na conceituação de cultura e civilização.

No âmbito das discussões sobre a adequabilidade ou não do violão ser aceito como instrumento apto a ser integrado em currículos de conservatórios e escolas superiores de música, a discussão  ampliou-se, passando a incluir outros instrumentos de cordas dedilhadas. Essa discussão, então particularmente atual, era já de longa data, revelando também ela contextos sociais e conotações relativas ao homem e a conceituaçõess de cultura e civilização.

O violão surgia como „instrumento de rua“, e aqueles que se empenhavam na sua aceitação em concertos ou em cursos de nível superior entendiam e valorizavam esses esforços como atos ousados e quase heróicos de nobilitação de um instrumento popular. Essa compreensão deixava entrever um sentido de elevação, do subir, do levar o baixo ao alto, o que se ampliava à introdução da música popular no meio erudito, um intento que sinalizava ideais e posições político-culturais.

No âmbito desse debate quanto à introdução do instrumento nos cursos superiores de música, os cordofones dedilhados em geral passaram a ser considerados com especial atenção quando da introdução da área Etnomusicologia na Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo em 1972. O intento de englobar os vários instrumentos de cordas dedilhadas nos estudos à procura de novos conhecimentos e perspectivas de interpretações levou à realização de respectivos trabalhos de graduação em Licenciatura em Educação Musical/Artística, salientando-se, entre êles, aqueles de Therezinha Rosa Menduni.

A cooperação interdisciplinar entre áreas de natureza histórica, sistemática e empírica - História da Música, Estruturação e Análise, Folclore e Etnomusicologia - revelava a insuficiência de usuais classificações de instrumentos, em particular daquelas mais divulgadas relacionadas com dois renomados representantes da Musicologia Comparada/Etnomusicologia: Erich von Hornbostel (1877-1935) e Curt Sachs (1881-1959).

Reconheceu-se que, se distinções como aquelas entre instrumentos de corda, sopro ou percussão - cordofones, aerofones e membranofones - podiam ser úteis sob determinados aspectos, eram porém por demais superficiais para a compreensão de sentidos, funções e emprêgo de instrumentos em expressões culturais, suas interações e transformações.

Aproximações sistemáticas baseadas no modo de execução - de teclas, sôpro, cordas pinçadas ou friccionadas, assim como de percussão - ou nas características físicas da produção de som revelavam-se como primárias, podendo até mesmo colocar obstáculos a leituras de sentidos de expressões culturais, entre outros, a estudos de mecanismos explicativos de substituições de instrumentos registradas em processsos de mudanças culturais.

A necesssidade de reconsiderações da organologia marcada por procedimentos sistematizadores e categorizadoress no sentido de uma orientação mais propriamente cultural segundo processsos passou a ser discutida internacionalmente a partir de encontros levados a efeito no Museu de Instrumentos de Berlim, em 1975. (Veja)

Desde então, a preocupação pelo estudo mais aprofundado dos instrumentos levou a estudos em diferentes contextos. Sob o ponto de vista histórico, os trabalhos foram desenvolvidosno Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia em cooperação com Heinrich Hüschen (1915-1993), especialista em tratados medievais, quando então se estudou sentidos e significados de instrumentos nas suas antigas origens e na sua resignificação cristã.

A consideração dos sentidos de instrumentos sob o aspecto teológico tornou-se alvo de particular atenção quando da fundação do instituto de pesquisas da organização pontifícia de música sacra (CIMS) em 1977. Estando a área da Etnomusicologia sob a direção do editor, os estudos voltaram-se aos sentidos dos instrumentos que explicam o seu uso em tradições cristãs medievais, a sua propagação em regiões extra-européias e o seu emprêgo em procedimentos de cristianização e consequente transformação cultural promovidos pelos missionários.

Para além de estudos desenvolvidos nesse contexto institucional e assim acompanhados por considerações teológicas e histórico-missionárias, a atenção foi cada vez mais dirigida aos fundamentos de concepções organológicas em sistema cultural de remota proveniência e estreitamente relacionado com conceitos filosófico-naturais. Retomou-se, assim sob novos aspectos, a preocupação por estudos de linguagem visual iniciados muitos anos antes na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

A renovação de concepções organológicas - e sistemáticas em geral - desempenhou importante papel nos debates referentes ao desenvolvimento e à institucionalização de um estudo científico da música de orientação segundo processos culturais em países de língua portuguesa. Essa atenção resultou em grande parte do significado de instrumentos como viola, guitarra, violão e congêneres em Portugal, no Brasil e em outras regiões marcadas historicamente pelos contatos e pela colonização e imigração portuguesa.

Compreende-se, assim, que a viola tenha sido considerada em sessão inaugural do Primeiro Simpósio „Música Sacra e Cultura Brasileira“ levado a efeito em São Paulo, em 1981, quando então se constituiu a Sociedade Brasileira de Musicologia. (Veja)

A viola nos Açores e no Brasil em encontro internacional da imigração em Colonia

A cooperação luso-brasileira nesses intentos muito deveu a Maria Augusta Alves Barbosa, pesquisadora então empenhada na institucionalização das Ciências Musicais em Portugal. (Veja) Nesses trabalhos, que precederam e prepararam a fundação do ISMPS - Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa -, em 1985, salientou o significado da personalidade e das pesquisas de Artur Santos (1914-1987) e a importância de conquistar a sua cooperação nos estudos. Não só as suas publicações referentes a Angola, antes consideradas na Etnomusicologia, mas também as suas pesquisas nos Açores mereceriam maior atenção.

O desideratum de sua integração no ISMPS não pôde ser alcançado devido a seu falecimento, em 1987, sendo o significado de uma atenta consideração de sua obra referente aos Açores salientada no encontro de pesquisadores brasileiros com representantes da imigração portuguesa na Europa dirigido pelo musicólogo açoriano Dr. Armindo Borges em 1988. Em particular salientou-se então o significado de suas pesquisas no arquipélago para os estudos da viola de arame, também sob a perspectiva do Brasil.

Matriz de Vela, S.Jorge. Foto A.A.Bispo 2018. Copyright
A atenção que dispensou a esse instrumento manifesta-se em fotografias de executantes de viola reproduzidas da documentação do espólio de Artur Santos conservada no Museu de Angra do Heroísmo e publicadas pela Direção Regional da Cultura do Govêrno Regional dos Açores com textos de Cristina Brito e Cunha e Miguel Costa em 2007. (Semblantes e Rumores, Angra do Heroísmo: DRC, 2007, ISBN 978-972-647-209-4).

Como salientado pelo Presidente do Govêrno Regional dos Açores em palavras introdutórias, as imagens que complementam gravações do folclore açoriano adquirem importância para estudos referentes a uma identidade açoriana, a uma „açorianidade“. (op.cit. 5)

Esta menção traz à consciência as interações entre os estudos organológicos e um debate político-cultural sobre conceitos e expressões que adquire renovada atualiade e gravidade no presente.

Já as preocupações voltadas à superação de categorização do objeto através de uma orientação a processsos que há 50 anos marcou o início de estudos implicaram no reconhecimento da questionabilidade de acepções não só de esferas culturais como „compartimentos estanques“ como também de adjetivações da cultura em posições nacionalistas. Com esse debate relacionou-se estreitamente aquele voltado à renovação da organologia através da superação das classificações convencionais, abrindo perspectivas para estudos de transformações e sentidos.

No âmbito internacional, o primeiro forum de estudos culturais euro-brasileiros realizado na Alemanha, em 1982, tematizou-se justamente a transformabilidade da cultura e mesmo da imagem e da auto-imagem de países e, assim, de identificações culturais e de compreensões de conceitos similares àqueles de „brasilidade“. (Veja)

Perante a revitalização de conceitos já supostos como ultrapassados em movimentos políticos nacionalistas, povistas e „identitários“ em vários países da atualidade, essa problemática agrava-se, exigindo particular atenção e cuidado diferenciador, o que vale também para o estudo de instrumentos, evitando-se instrumentalizações de conhecimentos para fins outros.

A revaloritzação da viola no Brasil nas últimas décadas e nos Açores da atualidade

Marco significativo na procura de valorização da viola no Brasil deu-se em 1981 com apresentação de obra de Ascendino Theodoro Nogueira, um dos principais representantes de intuitos de valorização da viola como instrumento erudito na abertura do simpósio internacional „Música Sacra e Cultura Brasileira“ em 1981.(Veja) Nas últmas décadas, esse movimento valorizador levou a iniciativas de formação de instrumentistas e constituição de conjuntos e mesmo orquestras do instrumento.

Esse desenvolvimento no Brasil tem a sua correspondência nos Açores. Em 2010, fundou-se, na ilha do Pico, a Associação de Juventude Violas da Terra com o objetivo de de se criar e promover, valorizar e inovar a prática da „viola da terra“. A associação, com os seus membros Bruno Bettencourt (Terceira), José João Mendonça (Graciosa), Manuel Canarinho (Pico), Rafael Carvalho (São Miguel) e Renato Bettencourt (São Jorge),  realiza eventos como a Orquestra de Violas da Terra, Conversas à Viola, Violas do Atlântico, A Viola que nos Toca e Encontro de Violas Açorianas, evento anual que congrega tocadores de cinco ilhas.

Especial menção deve ser feita ao Cordas World Music Festival, que abrange uma semana de eventos em setembro com e sobre instrumentos de corda na vila da Madalena. Entre os grupos participantes, contam-se o Grupo de Cordas Ilha Negra, Fado Ilhéu e Grupo de Violas. A Casa de Música dessa cidade é aberta a interessados em aprender instrumentos de corda.

No movimento valorizador da viola nos Açores destaca-se Rafael Carvalho, que no seu texto „9 ilhas 2 corações“ no programa do Cordas World Music Festival de 2018 de Miratecarts,  Ano Europeu do Patrimônio Cultural, (Veja), expõe algumas idéias condutoras do seu trabalho. Menciona as diferenças do ver e viver a viola nas nove ilhas açorianas:

„De 12 cordas, de 15 cordas, com 2 ou 3 corações, abertura circular, abertura em forma de sinos, cravelhas de madeira, cravelhas metálicas, cabeça em leque, com espelho, sem espelho, toque com polegar, toque rasgado, toque com indicador, com embudios em contorno de lira, flor-de-lis, pássaros, coroa do Espírito Santo, Açor...O Limite para a nossa diveerssidade só existirá quando deixarmos de sonhar, quando deixarmos de criar.“

Os Açores na história da viola em contextos globais - um vulto histórico: o Tangedor

Nas reflexões encetadas na ilha de São Miguel, em 2018, lembrou-se que o significado do instrumento para os Açores pode ser fundamentad historicamente pela sua menção na mais importante fonte de conhecimentos do arquipélago e da esfera insular atlântica do século XVI, as Saudades das Terra de Gaspar Frutuoso (ca. 1522 - 1591).  Esse registro representa um marco na história da viola em contextos e processos globais, emprestando aos Açores um significado de particular relêvo nos estudos organológicos.

As Saudades das Terra menciona João Gonçalves, natural da Biscaia, que passou a ser conhecido na ilha de São Miguel sob a alcunha de Tangedor pela sua aptidão musical e pelo fato de bem tanger viola. Sendo o seu nome muito comum na ilha, passou a ser tratado através da qualidade que mais o distinguia, ou seja a de ser tangedor - „o Tangedor“.

Os dados transmitidos indicam o contexto social da prática da viola na sua época e no qual se integrou. Os traços oferecidos de sua história de vida indica provir de família de posses da Biscaia e ter atuado no Norte da África à época do marquesado de Vila Real, cujo primeiro marquês foi Dom Pedro de Menezes (1425-1499), governador de Ceuta.

Segundo a fonte, João Gonçalves teria servido durante muitos anos na África. Acompanhara o marquês custeando com meios próprios armas, cavalo e criados colocados á disposição por seu pai, residente na Biscaia. Essas menções indicam portanto que a prática do instrumento através do qual tornou-se conhecido não era prerrogativa de camponeses ou pesssoas da população sem maiores meios, o que, porém, não implica que, nos seus sentidos, não estivesse relacionado com processos de elevação, também sociais.

Como foi transferido pelo marquês ao arquipélago, trazendo família e meios, cabe asssim ao então marquês de Vila Real o papel de ter sido introdutor de um exímio executante da viola em São Miguel. O Tangedor desenvolveu intensas atividades na ilha, alcançando cargos de importância na política, tendo sido o primeiro vereador de Ponta Delgada.

O fato do seu filho primogênito, Gaspar Gonçalves, ter-se tornado religioso da Ordem dos Pregadores, pode ser visto como indicativo de um contexto marcado por religiosidade da vida familiar do Tangedor. Assim considerando, poder-se-ia refletir sobre um papel do saber, dos conhecimentos, da ciência e da erudição que marcavam o pensamento na tradição dominicana no extraordinário significado que o instrumento possuiu na vida dessa personalidade histórica.(Veja)

O anjo violeiro na „Coroação da Virgem“ na igreja do Colégio em Ponta Delgada

Para os estudos culturais relacionados com instrumentos musicais, em particular com a viola, a pintura em óleo sobre madeira da „Coroação da Virgem“ na antiga igreja do Colégio de Ponta Delgada merece ser considerada com atenção. Por essa razão escolheu-se essa obra, intregada na coleção de arte sacra do Museu Carlos Machado como foco de análises de sentidos de instrumentos no âmbito dos estudos euro-brasileiros.

Essa pintura é um dos principais bens da época dos Jesuítas ali conservados. O descobrimento do original representou uma surprêsa por ocasião da restauração de obras quando da doação da igreja de Todos os Santos à Câmara Municipal de Ponta Delgada, em 1973. Ela foi uma das quatro obras selecionadas das 27 pinturas conservadas e que foram enviadas para Lisboa para serem restauradas.

Uma especialista do Instituto de José Figueiredo, Constança Pinheiro da Fonseca, encarregada de proteger as obras e preparar o seu envio, ao retirar o quadro da parede, constatou que o original, pintado em madeira, encontrava-se oculto por detrás de uma tela que apresentava uma cópia sem maior valor artístico. Descobriu-se assim o nome do artista inscrito na parte inferior da pintura: o pintor português Vasco Pereira Lusitano (1535-1609), renomado artista que a executou em Sevilha, em Fevereiro de 1604.

A obra representa a coroação da Virgem em conjunto determinado pela Santíssima Trindade. Ao redor de Maria com o Menino encontram-se representados anjos, arcanjs, querubins e serafins, cantando ou tocando instrumentos musicais.

Após a sua apresentação na exposição „A pintura maneirista em Portugal - arte no tempo de Camões“, coordenada por Viitor Serrão no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, em 1995, a obra deu ensejo a estudos que salientaram o seu significado para a História da Arte.

Entre outros, lembrou-se no museu de Juan Miguel Serreira („A Virgem com o Menino e os Anjos Músicos de Vasco Pereira Lusitano, 1604“, n.1967, 136-237, 1994; „Vasco Pereira, um Pintor Portugues en la Sevilla del ultimo del siglo XVI“, Separata do Archivo Hispalense), e do pesquisador Juan Gil. que ttratou de Vasco Pereira Lusitano em Sevilla como discípulo do renomado Luís de Vargas (1502-1568), artista considerado como representante do Renascentismo tardio que, após estadia em Roma, foi marcado por tendências manieristas.

Nascido em Lisboa, em 1536 e com laços familiares com o meio de Évora, Vasco Pereira Lusitano transferiu-se ao redor de 1555 para Sevilha. No atelier de Vargas, completou a sua formação em 1559, ali atuando até a sua morte.

Uma menção especial merece o fato de parte de sua produção ter sido destinada ao Novo Mundo e ao arquipélago dos Açores.

Vasco Pereira Lusitano é visto como tendo sido um dos três pintores mais renomados de Sevilha da sua época. Teria passado por uma transformação quanto à linguagem estilística, revelando um maneirismo que demonstra a sua inscrição em correntes italianas do pensamento. Prova de sua grande erudição foi a grande biblioteca que formou.

Sevilha constituia à época da transição ao Barroco um centro de arte e de formação artística, o que explica que a ela se dirigissem autoridades e artistas de ilhas do Atlântico. Entre 1603 e 1605, Madeira para ali enviou o jovem Domingos Nunes Teixeira para realizar estudos. Assim como os Jesuítas dos Açores dirigiram-se a Sevilla e a Vasco Pereira, o mesmo deu-se com o cabido da Catedral de Gran Canaria, que encomendou à época uma pintura a Juan de Ruela (1558-1625)

Sob a perspectiva da História da Arte, cumpre salientar estudo de Vitor Serrão do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. (El Naturalismo Sevillano en las Azores: Una Pintura de Vasco Pereira Lusitano, AEA, LXXXIII, 331, 2010, 287-302, trad. J. León Acost).

O autor lembra de início que Lusitano trabalhou pelo menos em três ocasiões para os Jesuítas sevilhanos. Os contatos dos Jesuítas de Ponta Delgada com os de Sevilha explicariam a criação de sua obra. Português de nascimento, identificou-se de tal forma com Sevilha que passou a ser conhecido como „sevilhano“.

A obra esteve provavelmente de início na primeira igreja, passando posteriormente para aquela edificada entre 1657 e 1670. É uma das mais tardias do artista. O seu desenvolvimento não teria sido linear, e os condicionamentos aos quais a sua obra estiveram submentidos poderiam ser registrados também nesta obra, cuja composição remeteria a gravuras e pinturas flamengas ou obras sevilhanas.

Na obra dos Açores se detectaria um incipiente naturismo, dificilmente explicável sem a presença em Sevilha desde 1603 de Juan de Ruela (1558-1625), um pintor de origem flamenga. Como a maioria dos pintores sevilhanos, esses pintores deixavam-se fascinar pela riqueza de colorido e intenso dinamismo da zona da glória. A partir da representação da Circuncisão de Ruela na igreja dos Jesuitas, os anjos de Pereira mostrariam atitudes mais naturais e vestimentas mais luxuosas. A obra refletiria tendências então dominantes na pintura sevilhana e apesar do tardo maneirismo, revelaria traços naturalistas. (op,.cit. 86)

Leituras de sentidos da representação de anjos instrumentistas na obra

Na leitura da „Coroação da Virgem“ com a sua profusão de anjos com instrumentos, lembrou-se a tradição desse tipo de representação em iluminuras e na plástica catedralícia de Portugal e de outras regiões da Europa na Idade Média.

Retomou-se, nos Açores, reflexões encetadas neste sentido no Mosteiro da Batalha em diversas ocasiões, por último durante o Simpósio Internacional „Cultura Musical e Espírito“, em 1988, um projeto do ISMPS realizado em cooperação com a Comissão dos Descobrimentos de Lagos e a seção de Etnomusicologia do instituto de pesquisas da organização pontifícia de música sacra (CIMS). 

A representação de anjos instrumentistas no pórtico principal da  Batalha, uma das mais valiosas obras plástico-arquitetônicas para estudos organológicos, já havia sido considerada em obras anteriores, salientando-se os Instrumentos Musicais Populares Portugueses de Ernesto Veiga de Oliveira, do Centro de Estudos de Etnologia Peninsular/Centro de Estudos de Antropologia Cultural (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1966, ilustrações 122 a 127).

Nessa obra, o autor apresenta e estuda várias representações da viola em documentos e obras, entre elas na Cronica de D. Afonso Enriques de Duarte Galvão (Frontespício), Códice da Biblioteca Municipal do Porto, do século XVI e o anjo com viola na representação da Natividade atribuída ao mestre de Abrantes na Igreja da Misericórdia, Abrantes, também do século XVI.

Outros anjos com viola são documentados com figura da capela de Nossa Senhora do Cardal, altar atribuído a Juan de Ruela, em Pombal, a escultura de madeira policromada da capela de Nossa Senhora da Pastorisa ao lado de anjos com viola, rabeca e flauta do século XVIII em Melgaço e o anjo com viola na talha do órgão da Igreja da Graça de Torres Vedras, do século XVIII.

Como já considerado na Batalha, deve-se salientar, na análise de sentidos das representações de anjos instrumentistas, o contexto mariano nos quais se inscreve.

Em primeiro lugar, registram-se anjos músicos em representações do nascimento, e assim do presépio, como, o da adoração dos pastores na igreja de Santa Maria da Alcáçova de Elvas do século XVII ou XVIII considerado por Ernesto Veiga de Oliveira na mencionada obra (il.115). Explica-se, neste contexto, o cunho pastoril de representações na tradição bucólica da veneração mariana, da forma mais evidente naquela que cognomina Maria explicitamente como Pastora.

A Coroação da Virgem de Ponta Delgada revela porém elos com outro complexo das concepções marianas, a da Assunção, demonstrando assim os estreitos, inseparáveis elos com aquelas da Natividade.

Interações de concepções musicais e de luz na leitura de sentidos

Um aspecto que marcou as reflexões disse respeito ao fato de, nessas representações, tratar-se de anjos que tocam os instrumentos. A consideração de concepções teológicas respectivas torna-se assim indispensável. Entre outras, cumpre lembrar a tradição de pensamento na qual as criaturas angelicais são consideradas em referências ao intelecto como „substâncias intelectuais“.

Lembrado foi sobretudo os fundamentos de concepções angelicais na Gênese que, segundo colocações patrísticas, remontariam à criação da luz no primeiro dia da Criação e sua separação das trevas, sendo designados como dia e noite.

Conceitos de luz nas suas relações com intelecto merecem ser vistos como idéias condutoras na leitura da obra da Coroação da Virgem: música e luz se interagem na representação.

A obra pictórica não é apenas musical devido à representação dos muitos anjos instrumentistas, mas sim uma obra que manifesta que a música produzida pelos instrumentos - que não é ouvida - é, na realidade, uma sonoridade de luz.

Essas reflexões abrem caminhos para a compreensão de definições de instrumentos em tratados medievais e de seus fundamentos na antiga cultura. Todos os instrumentos considerados - sejam de corda, de sópro ou de percussão, devem ser considerados nas suas dimensões mais amplas com referência ao Espírito que pairou sobre as águas e à criação da luz nas trevas e sua separação.

A essa separação deve-se emprestar particular atenção, uma vez que diz respeito a um processo de superação de uma situação do material que explica conceitos de caixa de ressonância. Como lembrado nas reflexões em Ponta Delgada, se essas concepções podem e devem ser consideradas a partir das Escrituras, os seus fundamentos imagológicos encontram-se da forma mais evidente na antiga mitologia.

Como tratado em diferentes contextos e ocasiões, o principal contexto a ser considerado é aquele da „invenção“ da lira por Hermes/Mercúrio logo após o seu nascimento da ninfa Maia. Matando e retirando a carne do animal, Hermes utilizou a sua carapaça como caixa de resssonância para as cordas formadas pelos seus nervos, podendo assim entoar um canto de louvor a seu pai, a divindade suprema, Zeus.

Essa linguagem visual, que se  manteve através dos séculos e que pode ser constatada no uso de cascos para a construção de violas e instrumentos afins em diferentes regiões, tem sido considerada pelo seu significado sob diversos aspectos nos estudos de processos culturais das últimas décadas.

A imagem se relaciona estreitamente com aquela da concha que, no fundo do mar, fechada, é frutificada pelo raio, fazendo nascer a pérola, uma concepção e uma imagem que adquiriram significado particularmente relevante no Barroco.

Os violeiros na obra de talha em altar da matriz do Topo, Ilha de São Jorge

Uma das mais significativas representações do instrumento encontra-se em trabalho de talha de altar da igreja matriz do Topo, cidade na ponta sudeste da ilha de São Jorge.

A vila e freguesia do Topo (Nossa Senhora do Rosário) é localidade de extraordinário interesse histórico, uma vez que segundo a tradição foi a primeira povoação fundada na ilha de São Jorge, com um assentamento de flamengos ocorrido entre 1480 e 1490. Destruída por terremoto em 1757, a igreja foi reconstruída, sendo as obras terminadas em 1761.

As representações de figuras de instrumentistas num de seus altares amplia de muito o significado de São Jorge para os estudos músico-culturais. A importância dessas representações deriva do fato dos instrumentistas representados trazerem atributos de trabalhadores do campo.

Ao lado a outras figuras com cestos e instrumentos de trabalho, evidenciam-se sentidos de um todo caracterizado por uma profusão vegetal, por uma dinâmica ascencional da terra, um crescimento e transformação.

É significativo que embora representando figuras humanas, a temática angelical esteja presente por ser o altar dedicado ao Arcanjo S. Miguel. Diferentemente dos anjos músicos da Coroação da Virgem em Ponta Delgada, o conjunto apresenta um cunho pastoril, uma vez que representa homens das terra, no caso, em particular, da cultura vinícula. O significado dessas representações reside sobretudo no fato de trazer luz à designação „viola da terra“ e àquelas conotações do instrumento que, no Brasil, derivam das denominações de „viola caipira“ ou „viola sertaneja“.

Considerações finais no Museu de Arte Sacra e Etnografia Religiosa em Velas, S. Jorge

As reflexões encetadas em Ponta Delgada e em Topos foram a seguir consideradas e discutidas no Museu de Arte Sacra de São Jorge instalado em dependências da matriz de Velas.

Ali reconsiderou-se os fundamentos teológicos da linguagem visual sob a perspectiva da inserção das concepções em edifício cultural de antigas proveniências nas suas relações com o mundo natural e com processos internos do homem.

Considerou-se a coerência das relações das imagens com anjos, com concepções marianas e do homem. Haveria uma lógica nessas relações e que se relacionariam com a luz resultante do louvor à causa primeira dos anjos e, no homem, do intelecto.

Essa luz no seu interior relacionar-se-ia com o seu esvaziar-se íntimo permitindo a vibração de suas fibras e nervos tais cordas em acompanhamento do seu canto de louvor. Essa transformação do homem em instrumento teria o seu modêlo máximo em Maria, a „cítara do Espírito Santo“ em antiga tradição. Ter-se-ia, assim, por fim, uma relação estreita e indissolúvel com a adoração do Espírito Santo que tanto marca e caracteriza a vida religioso-cultural dos Açores.

De ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „ Linguagem visual e instrumentos musicais nos Açores e no Brasil: o anjo violeiro na „Coroação da Virgem“ na Igreja de Todos os Santos do Colégio dos Jesuítas de Ponta Delgada, ilha de São Miguel e os violeiros da terra em altar da matriz do Topo, ilha de São Jorge“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 175/7 (2018:5).http://revista.brasil-europa.eu/175/Viola_e_Teologia.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
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