Doc. N° 2083
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
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Ultrapassar de fronteiras no passado Resgate de escravos islamizados e processo conversor de identidades na esfera luso-atlântica Reflexões em Funchal
Os estudos culturais concernentes ao relacionamento Ocidente/Oriente, que estão sendo repensados sob o prisma postcolonial sob a influência do pensamento de Edward Said, dirigem a atenção, no contexto transatlântico, sobretudo à zona de fronteiras no encontro de culturas representada pelo Norte da África continental, islâmico, e o mundo insular atlântico. As ilhas atlânticas representaram postos avançados da Europa ocidental no período das Descobertas e criaram pontes para a cristianização e colonização de regiões distantes, entre elas o Brasil. Nesse contexto, a ilha da Madeira pareceria estar destinada a ocupar uma posição chave nos estudos respectivos pela sua localização geográfica, situada à frente da esfera dos "mouros". Entretanto, mais do que qualquer outra ilha do universo atlântico, a ilha da Madeira se apresenta como um privilegiado prolongamento da Europa, e os estudos madeirenses se salientam pela sua marcante lusitanidade, apesar de todos os indícios de procura de diferenças caracterizadoras de uma identidade própria. Como no caso de outras ilhas atlânticas, também os estudos culturais madeirenses não podem olvidar o fato da imigração, e somente aqueles que não esquecem que o universo cultural da Madeira é muito mais amplo do que a própria ilha é que fazem jus à sua qualificação. O estudo da relevância da Madeira para os estudos culturais euro-brasileiros somente pode ser feita sob essa perspectiva. A contribuição da Madeira para a cultura do Brasil é muito mais profunda do que as extensões culturais das levas mais recentes de imigrantes, fato discutido no primeiro colóquio internacional de estudos culturais euro-brasileiros, em 1989. Ela remonta ao século do Descobrimento, uma vez que a Madeira como então primeiro grande região da produção de açúcar foi o modêlo irradiador de um tipo de economia que, com todas as suas implicações sociais e culturais, marcou profundamente o Nordeste do Brasil e, sobretudo, a Capitania de São Vicente. Nessa época, porém, a Madeira não apresentava a feição absolutamente européia que hoje ostenta, de costas para a África, aparentemente isenta de contactos com o universo islâmico. As fontes documentais indicam a importância da escravatura na ilha, fato reconhecido já há muito pelos estudiosos, como se pode constatar no Elucidário Madeirense do Pe. Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Menezes, obra já clássica dos estudos regionais, publicada em 1946 (2 vol). Nessa obra, os seus autores citam, a respeito, um artigode Alberto Artur Sarmento (págs. 408-409). Entre os escravos, viviam na ilha negros, canários e mouros, sabendo-se que grande número de mouros trabalhavam forçadamente em certas localidades tais como Machico, Ponta do Sol, Curral das Freiras e Funchal, onde até hoje uma das ruas ainda lembra no seu nome a antiga Mouraria. O mouro seria, segundo os historiadores citados, mais apto ao trabalho árduo do que o escravo da Guiné e da Mina, e por isso teriam sido preferidos a eles pelos proprietários das terras de cultivo. Um verdadeiro comércio de escravos ter-se-ia desenvolvido, sendo os mouros capturados em entradas empreendidas por governadores lusos de praças norte-africanas. Na Madeira, os mouros exerceram também atividades comerciais em certas localidades, por exemplo em Santa Cruz e Ponta do Sol. Teriam até mesmo influenciado certas tradições narrativas, de cantoria e determinado a origem dos trajes hoje considerados típicos do vilão e da camponesa da Madeira, presentes nos costumes e nas danças que retratam a rusticidade do homem. A influência moura fêz-se não diretamente, mas os seus traços atravessaram os séculos pela sua integração numa ordem simbólica determinada pelo sistema anti-tipológico da cultura cristã, passando a fazer parte, na lúdica, da representação do rústico e do grotesco da humanidade carnal. Esse vínculo com o grotesco ficou imortalizado na imagem de um africano tocando tambor esculpida no coro da catedral de Funchal. Essa figura pode ser considerada como de extraordinário significado para o estudo das relações interculturais, um estudo que necessita, porém, de contínuas revisões e diferenciações. Já foi considerada e difundida nos anos 80 em trabalhos desenvolvidos pelo Instituto de Estudos da Cultura Musical de Língua Portuguesa (I.S.M.P.S. e.V.), foi alvo, agora, de mais aprofundadas reflexões a partir dos aportes teóricos e analíticos de estudos posteriores. Quanto à interpretação hermenêutica dessa figura parece não haver possibilidades de dúvida, uma vez que surge ao lado de representações de animais e de outras figuras grotescas. A questão que se coloca é se a imagem representa um mouro norte-africano ou um negro africano proveniente de regiões não-islâmicas mais ao sul. Uma possibilidade de leitura, ainda não tentada, foi a de ver nessa figura a representação de um escravo negro islamizado, ou seja, de um africano proveniente da África subsaariana possivelmente escravizado pelos mouros e então "resgatado" pelos comerciantes da Madeira. Uma vez que - como se demonstrou nos estudos realizados no Marrocos - também na esfera islâmica parecem ter validade similares mecanismos no processo de mudança de identidades através da integração dos conversos na nova ordem simbólica no âmbito do repertório de expressões grotescas, tudo indica que a imagem representa um desses escravos islamizados. Ter-se-ia aqui, neste caso, não apenas um antigo documento de interesse superficialmente etnográfico ou de relevância para a etnomusicologia da África, mas sim um documento de extraordinário significado para os estudos das relações transculturais. dos processos performativos de identidade e de comunicação interna de ordenações simbólicas entre o Islamismo e o Cristianismo. Ter-se-ia aqui talvez um documento histórico de valor também para os estudos norte-africanos, uma vez que corresponderia às expressões culturais ainda hoje existentes na lúdica local, de identificação negro-africana e cultivada por descendentes de antigos escravos organizados em confrarias (por exemplo Gnawa). Organologicamente, o tambor da imagem apresenta similaridade com o Tabilat (tbila, tobla), utilizado em pares afinados em intervalo de quarta ou quinta e documentado em descrição européia do século XVIII (Georg Hoest, Nachrichten von Marokos und Fes, im Lande selbst gesammlet, in den Jahren 1760 bis 1768, Kopenhagen 1781). Os resultados dos estudos e das reflexões deverão ser aprofundados em futuras sessões de estudos e publicados.
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Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).