Doc. N° 2079
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
100 - 2006/2
Comparações de mecanismos performativos Expressões "negro-africanas" na cultura islâmica sob a perspectiva dos estudos brasileiros Observações in loco no Marrocos
Realizou-se, em março de 2006, uma viagem de pesquisa ao Marrocos. Esse empreendimento inseriu-se na tradição de estudos das relações entre o Oriente e Ocidente, dos estudos de contextos do mundo do Mediterrâneo e das relações transatlânticas da organização Brasil-Europa. Foi preparado por estudos e discussões no âmbito de seminários dedicados à crítica postcolonial. Delinearam-se alguns complexos temáticos principais que foram considerados nas diversas estações da viagem. Procurou-se observar primordialmente expressões culturais que permitissem a análise de fenômenos e processos de interesse para o estudo de formação de identidades na sociedade islâmica, sobretudo na de grupos subalternos constituidos por descendentes de escravos negros, comparando-os com aqueles estudados no âmbito cristão da história colonial na América Latina. Outra questão particularmente considerada foi a do papel da mulher nas expressões culturais de grupos caracterizados pelo nomadismo. Entre as expressões culturais lúdicas do Marrocos deu-se atenção ao Gnawa, um grupo de homens e jovens que se apresentam em público em praças públicas, por exemplo na praça central de Marrakesh, Djemaa el-Fna, hoje também em festivais de folclore e em eventos especialmente organizados para turistas. Os músicos, também comediantes e atores-dançarinos, atuam com fins pecuniários, esperando receber gorjetas após as execuções. Apesar da aparência absolutamente profana, percebe-se a existência de um conteúdo profundo por detrás das narrativas entoadas e dramatizadas nas pantomimas. Embora não se conhecendo análises hermenêuticas desses textos, sabe-se que os membros desses grupos organizam-se em confrarias de cunho religioso. Do ponto de vista etnosociológico já foi observado que os protagonistas são em geral de pele escura, supondo-se a origem dessas tradições na cultura de escravos trazidos ao Marrocos de outros países africanos. Como Helmut Hoffmann-Burchardi salientou (in P. Collaer e J. Elsner, Nordafrika, Musikgeschichte in Bildern I/8, Leipzig 1983), essas apresentações já foram constatadas na primeira metade do século XIX pelo viajante alemão Ferdinand Freiherr von Augustin. Esse observador constatou o traje característico desses grupos, em particular o uso de túnicas brancas e de gorros vermelhos com ornamentos brancos, tradição até hoje mantida. Também constatou o uso dos instrumentos de percussão até hoje utilizados, ou seja, tambores percutidos com bastões e presos ao ombro por meio de cordões, de modo que possam ser tocados andando, e uma espécie de castanholas duplas de metal denominadas de qarqabu. Também ofereceu alguns dados relativos à dança: os dançarinos não se deslocavam, apenas levantando os pés e esticando as pernas alternadamente, em posição acocorada, movimento o dorso de forma a provocar risos. Segundo o relator, os escravos procuravam ganhar algum dinheiro extra com essas apresentações, uma vez que recebiam de seus senhores apenas comida e roupas precárias. Essa razão, porém, não pode ser a principal explicação da existência desses grupos. Os seus participantes tuavam ou atuam como curandeiros e adivinhos, sobretudo de doenças nervosas. Sabe-se da existência de três confrarias de africanos provenientes do sul, oganizados com os Moqaddems, cujos membros percorriam, no passado as casas de famílias para afugentar espíritos maus com o ruído, caracterizando-se pelas suas danças, bandeiras e cantos entoados ao som de tamborins. Além de vários qaraquib e de um ou mais tambores, esses grupos utilizam também instrumentos de cordas, já tratados em parte em descrição de um emissário dinamarquês do século XVIII (haghug, francês hajhouh) ou Gétara (G. Hoest, Notícias do Marrocos e Fes, coletadas no próprio país nos anos de 1760 a 1768, Copenhagem 1781, cit. V. Kubica in P. Collaer e J. Elsner, op.cit. 168). Hoest salientou que esse instrumento também só era utilizado por negros. Tocado com os dedos, não com arco, apresentava na parte superior uma lâmina de ferro com anéis que produziam ruído ao ser tocada. Possuia três cordas, tendo a caixa de ressonância, com forma de uma pera invertida e sem orifícios, coberta com um couro preso ao instrumento por meio de cordéis. Uma das questões da pesquisa residiu na análise mais diferenciada da questão das origens dessas expressões culturais tradicionais. Constatações de cunho étnico-social - o fato de serem praticadas por descendentes de escravos - não implicam necessariamente numa origem negro-africana, não-islâmica das concepções e suas expressões. Sendo islamizados, os seus participantes deixam entrever, na manifestação cultural, a integração no novo contexto e dão provavelmente expressão à desvalorização do universo cultural que abandonaram com a mudança de identidades por meio de atitudes grotescas e hilariantes. Ter-se-ia, aqui, portanto, um mecanismo similar ao conhecido de processos identificatórios ocorridos no Brasil no período colonial e que seria inerente ao sistema antitipológico de antiga fundamentação. O instrumento conhecido em geral na literatura da música norte-africana sob o nome de qarqabu e eudenín genáua é uma espécie de par de duplas castanhetas de metal de ca. 30 cm de comprimento, abauladas no centro e com largas margens, sendo as duas partes presas entre si por um cordel ou fita de couro que passam por orifícios no braço de ligação dos dois pratos; formam um laço no qual se inserem os dedos médio, anular e mindinho do instrumentista. Este segura o instrumento com quatro dedos pelo lado externo e o polegar pelo lado de dentro. Com os dedos indicadores, os pratos são entrechocados. O instrumentista toca em geral dois instrumentos, um na mão direita e outro na esquerda. Em conjuntos de Gnawa, vários músicos executam esse instrumento, inclusiva o solista que executa passos de dança de cunho encenatório e mímico, produzindo grande fragor metálico que contribui grandemente ao efeito ruidoso da apresentação. Segundo alguns especialistas, esse instrumento seria de origem sudanesa, difundindo-se em diversas regiões da Algéria. Como foi constatado durante as pesquisas em questão, é hoje ainda usual no sul do Marrocos. A tradição diz ter sido inventado por Sidi Blel (Bilal). Tudo indica, porém, que possuem significado mítico e simbólico, pois são utilizados em danças de sentido místico. No caso estudado em Taroudant, a dança e o texto apresentaram função lúdica, deixando porém perceber um sentido alegórico. O instumento necessitaria portanto ser estudado mais a fundo sob o aspecto da linguagem simbólica, relacionando-o talvez com o significado tradicional dos antigos crótalos e, talvez, sistros. Ter-se-ia aqui um aporte transcultural para os estudos de fenômenos similares em contextos de cultura cristã, por exemplo no uso de cascavéis e instrumentos similares produtores de ruídos nos braços, pernas e calcanhares de participantes de grupos de danças tradicionais. A suposta origem sudanesa foi baseada sobretudo no fato de ser grande parte dos músicos que executam esse instrumento e dos grupos respectivos de pele escura, denotando uma origem subsaariana. Assim, antigamente, grupos de instrumentistas de cor tocavam nas alvoradas dos dias de festa do Ramadan, anunciando, juntamente com grandes tambores, o surgir da luz do dia. Eles atuvam também em outras festas maometanas, cainda às vezes eem transe. Nesse estado, eram procurados por pessoas para fins de aconselhamento médico. O instrumento surge assim, em estreito relacionamento com situações de perda de consciência e poderia ser analisado de acordo com o que se conhece a respeito da simbologia, da mística e da situação de instabilidade identificatória de grupos conversos. Um estudo comparativo com práticas musicais observáveis no Brasil promete trazer esclarecimentos a respeito do conteúdo simbólico do efeito sonoro produzido por esse instrumento e contribuir para a abertura de novos caminhos na análise intercultural de sistemas antitipológicos para além de suas identificações religiosas no confronto Cristãos X Mouros. Outro ponto particularmente considerado foi o da participação feminina nas danças do Marrocos, particularmente nas tradições de populações nômades. Entre elas, considerou-se sobretudo a gedra, uma dança de assento praticada nas tendas, ou seja, em recintos fechados, apenas raramente ao ar livre. As dançarinas se movimentam em geral sentadas, acompanhando com cantos e palmeado uma de suas companheiras que se ajoelha sobre um tapete. Uma delas toca o tambor denominado de gedra, um instrumento constituído por um corpo de metal e abertura coberta por couro de cabra. Grupos dessa dança feminina apresentam-se agora em festivas de folclore em Marrakesch como elemento cultural característico de nômades, ao lado de danças de espadas e de camelo. A aldeia que mais se salienta na conservação dessas danças é a do oase de Goulimime, no sul do país. No caso da tradição observada, o grupo de dançarinos se movimenta em recintos fechados, apesar de ser fora do contexto originário. As dançarinas, festivamente trajadas, apresentam-se no decorrer da dança sem véus, com faces e braços à mostra. Esse descobrir do corbo corresponde ao entusiasmo crescente e à movimentação cada vez mais intensa causada pela música e pelo ritmo. Os homens que participam da apresentação atuam sobretudo por meio de palams, de modo que é mantido o caráter predominantemente feminino da expressão. Já se pode observar, porém, a substituição de instrumentos tradicionais por instrumentos europeus, no caso, por violinos. Somente conhecimentos derivados de estudos culturais no contexto consuetudinário permite a interpretação exata da movimentação de ombros e de mãos das dançarinas, provenientes da dança de assento nas tendas, uma vez que elas, sob as novas contingências, apresentam-se andando e percorrendo o recinto. Os resultados dos estudos deverão ser publicados com mais pormenores.
Antonio Alexandre Bispo
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