Doc. N° 2154
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
105 - 2007/1
O ÓRGÃO "ARP SCHNITGER" DE 1701 ENCONTRADO NO MOSTEIRO CRÚZIO DE SÃO SALVADOR, MOREIRA DA MAIA, PORTUGAL
Calimerio Soares (2007)1
1 - Introdução. A musicologia histórica vem se desenvolvendo gradativamente ao longo dos últimos quase trinta anos no Brasil, principalmente, com a criação e implementação dos cursos de pós-graduação em música em nível de mestrado e doutorado na área. Entretanto, há ainda muito a ser feito em prol desta apaixonante área de estudo, sobretudo no que concerne a uma melhor veiculação e intercâmbio de informações entre os vários acadêmicos brasileiros e estrangeiros. No campo da pesquisa histórico-musicológica, ainda encontramos no Brasil a falta de uma bibliografia específica e abundante neste setor, além das muitas dificuldades de toda ordem encontradas e enfrentadas pelos pesquisadores no afã de prosseguir seus respectivos trabalhos de investigação. No campo da organologia - sobretudo no que concerne ao instrumento órgão de tubos - a pesquisa se torna ainda muito mais difícil de ser desenvolvida, uma vez que o acesso às informações é sempre dificultado pela própria natureza do assunto, além das dificuldades de se encontrar bibliografia abundante e condizente com as necessidades peculiares do investigador. Neste campo, as informações têm chegado ao Brasil com um enorme atraso para o conhecimento dos pesquisadores, sendo que - em circunstâncias mais favoráveis - poderiam ser divulgadas com maior eficiência entre todos os estudiosos interessados. O advento da Internet tem proporcionado maior facilidade e agilidade na veiculação da informação entre os pesquisadores. Foi através desta facilidade e agilidade virtuais que fomos - há algum tempo - surpreendidos com a notícia de que havia sido encontrado e restaurado no Mosteiro Crúzio de São Salvador de Moreira, na Maia, um dos dois pequenos órgãos enviados a Portugal pelo próprio Arp Schnitger, no ano de 1701! 2 - O Mosteiro Crúzio de São Salvador de Moreira, Maia, Portugal. Sobre o Mosteiro de Moreira, o Dr. José Augusto Maia Marques2 (da Câmara Municipal da Maia), assim escreve:
O Mosteiro de Moreira é o mais antigo, mais importante e mais aglutinador dos espaços moreirenses. Mosteiro Agostiniano, de remota origem, dele resta a sua igreja quinhentista, a maior do Conselho e, no seu gênero, a mais antiga da Diocese do Porto. Mais adiante, continua: Nos inícios de setecentos, recebe um órgão de tubos com 12 registros, construído na oficina de Hamburgo do grande mestre organeiro alemão Arp Schnitger (1648-1719).
Explicando o significado da palavra Crúzio, D. Geraldo J. A. Coelho Dias3 (OSB/FLUP) assim a define:
CRÚZIOS é o nome com que, em Portugal, são conhecidos os Cônegos Regrantes de Santo Agostinho. O facto do nome - Crúzios - deve-se à importância e prevalência do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra sobre outros mosteiros da mesma observância. Na verdade, desde os primórdios da nacionalidade portuguesa, através das figuras carismáticas de São Teotônio, D. Telo e D. João Peculiar, Bispo do Porto e Arcebispo de Braga, esta instituição religiosa ganhou uma dimensão englobante relativamente a todos os mosteiros de cônegos regrantes.
3 - O órgão Arp Schnitger de 1701. Em 1853-54, Siwert Meijer4, organista em Groningen (Holanda), com base nos manuscritos originais de Arp Schnitger (1648-1719), escreveu que em 1701, Schnitger enviara dois órgãos novos para Portugal, cada um com 12 registros, dois teclados e um fole. Em 1974, Gustav Fock5, biógrafo de Arp Schnitger, com base nos escritos de Meijer, declarou que "o paradeiro destes dois órgãos é até hoje desconhecido". No artigo sobre as caixas de órgãos portugueses setecentistas, o organista e musicólogo luso-germânico, Dr. Gerhard Doderer6 - comentando sobre as influências nórdicas que a organaria em Portugal sofrera entre os séculos XVII e XVIII por mestres organeiros neerlandeses e alemães - informa-nos sobre os "dois órgãos"7 enviados por Schnitger à Portugal. Digna de nota é a observação feita pelo Pe. Manuel Valença8 em seu livro A Arte Organística em Portugal, II volume:
[...] Actualmente só há no coro alto um órgão no tipo de armário grande, com uma fachada hamburguesa tripartida, figuras e ornatos dourados. Não me foi proporcionada a visita ao coro pelo que não pude recolher dados sobre a composição do órgão. A consola está na parte traseira da caixa. Pode ser datado seguramente do século XVIII e não parece ser do tipo ibérico. Ficou confirmado na Alemanha que o seu autor poderá ter sido Arp Schnitger. (Informação dada gentilmente pelo Dr. A. Ferreira dos Santos). [...]
Órgão Arp Schnitger (Foto Orguian)
Finalmente, por volta de 1986-87, um destes "dois órgãos" enviados por Arp Schnitger a Portugal em 1701 é encontrado e - a partir de 1998 - restaurado pelo mestre organeiro alemão Georg Jann9 (da ORGUIAN, Santo Tirso, Portugal) no Mosteiro Cruzio de São Salvador de Moreira, na Maia, cidade localizada 10 quilômetros a norte do Porto. O que vale destacar desta maravilhosa descoberta é a assinatura encontrada do próprio Arp Schnitger. O organeiro Georg Jann assim a descreve:
A caixa e os tubos de madeira tinham sofrido muito no decorrer dos séculos. No século XVIII, todos os encaixes foram feitos com cola quente e estes, por causa da humidade, abriram quase todos. Além disso, havia a acção do bolor e dos ratos o que nos obrigou a refazer todos os encaixes. Para isso era preciso desmontar a caixa toda. No decorrer destes trabalhos aconteceu a grande descoberta: a torre do lado esquerdo foi preparada para ser colada e aí encontramos duas inscrições: 1.) bey (Herrn) Schnitger in Arbeit (um trabalho do (Sr.) Schnitger; e 2.) Johan Bunda Tischler hat die ????? gemacht (foi feito ????? por Johan Bunda marceneiro) Anno 1701. Foi um dia de festa!!!!, pois então tínhamos a prova indubitável de que o instrumento havia sido feito de facto por Arp Schnitger. Outra prova foi encontrada junto aos trabalhos no fole. Achamos uma inscrição que diz: Anno 1701 den 9 May ist d ????????? fertiget. dass ?????????? durch die Hand des Herrn ????????? Arp Schnitger Orgelmacher in Hamburg (Anno 1701 dia 9 de Maio este ??????? foi feito pela mão do Sr. Arp Schnitger organeiro em Hamburgo. As lacunas são palavras que faltam porque o fole foi perfurado com os trabalhos da alteração.10
Inscrição na Torre, lado esquerdo (Foto Orguian)
Assinatura e data nos foles (Foto Orguian)
Após o restauro, o instrumento apresenta a seguinte disposição:
2º Manual (47 teclas, oitava curta) Holzflöte 8' Prinzipal 4' (Prospekt) Disposição do Órgão de S. Salvador de Moreira - Maia - Portugal Arp Schnitger 1701 - Georg Jann 2000 1º Manual (47 teclas, oitava curta) Gedakt 8' Holzflöte 4' Quinte 2 3/2' Octave 2' Quinte 1 1/3' Octave 1' Sesquialtera 3f Mixtur 4f Dulzian 16' Trompete 8' Extensão do órgão: C D E F G A B H cº - c3 Nº de tubos: 799 (+ 7 mudos) 2 manuais acoplados não há pedaleira Someiro não dividido Registos inteiros Fole de cunha com três pregas + Fole bombeador com alavanca Diapasão: Lá 443 hz Afinação: em mesotônico Composição dos registos compostos Mixtur Sesquialtera C 1/2 1/3 1/4 1/6 G 2/3 1/2 1/3 1/4 cº 1 2/3 1/2 1/3 gº 11/3 1 2/3 1/2 c1 2 11/3 1 2/3 g1 22/3 2 11/3 1 c2 4 22/3 2 11/3 C 1 2/3 2/5 cº 2 11/3 4/5 c1-c3 4 22/3 13/5
Novos teclados (Foto Orguian)
4 - Dois órgãos congêneres das Catedrais de Mariana (Minas Gerais, Brasil) e de Faro (Algarve, Portugal). Schnitger ou Ulenkampf: A quem atribuir a verdadeira paternidade? Os dois belíssimos órgãos congêneres encontrados nas Sés Catedrais de Faro e de Mariana (cada um com 18 registros, dois teclados e um fole) foram objetos de um importante e detalhado estudo comparativo, de autoria do Pe. Dr. Marcello Martiniano Ferreira11. Publicada no ano de 1991, esta tese de doutoramento - que foi apresentada em 1985 no Pontifício Instituto de Música Sacra em Roma - defende a autoria de ambos os instrumentos como atribuída ao organeiro alemão Arp Schnitger (1648-1719).
Faro Mariana
Desde antes da publicação do artigo de Ivo Porto de Menezes12 e do certificado de autoria do célebre organista e regente alemão Karl Richter (1926-1981)13 em 1985, muito se tem especulado a respeito da autoria do instrumento instalado na Sé Catedral de Mariana como sendo de João Henriques Ulenkampo (Johann Heinrich Hulenkampf), dileto artífice e aluno de Arp Schnitger em Hamburgo e que se transferira para Portugal nas primeiras décadas do século XVIII. Entretanto, as recentes descobertas e pesquisas realizadas ao longo dos últimos anos vêm contradizendo a afirmação do Revmo. Pe. Dr. Marcello M. Ferreira sobre a autoria de ambos os instrumentos (Faro e Mariana) como tendo sido construídos pelo próprio Arp Schnitger. São de autoria do Dr. Gerhard Doderer importantes estudos publicados na Alemanha14, em Portugal15 e no Brasil16, através dos quais é reforçada a hipótese sobre a paternidade dos ditos instrumentos atribuída a Ulenkampf. Ainda assim, por ocasião do primeiro restauro por que passou o órgão de Mariana (entre os anos de 1977 a 1984), a pesquisadora e musicóloga mineira, professora Maria Conceição Rezende17 (à época, responsável pelo Museu da Música da Arquidiocese de Mariana), anotou e publicou que:
O órgão da Catedral de Mariana foi fabricado por Johann Hinrich Ulemkampf18, autor do projeto original e cuja assinatura se encontra na estante onde se coloca a partitura, do lado direito na parte inferior, pouco visível devido à pintura colocada sobre ela.19
Mais adiante, apresenta-nos uma outra informação importante, que é também observada no artigo do Prof. Ivo Porto de Menezes:
No seu interior, na parte posterior, no alto, encontra-se a data: "1723".20
Se tais anotações subsistem inscritas na caixa do órgão (infelizmente, ainda não nos foi possível examiná-las 'in loco'), apresentam dois importantes aspectos: o primeiro informa que Ulenkampf residiu por mais algum tempo em Lisboa e o segundo, atesta que a paternidade de ambos os instrumentos hoje instalados nas Catedrais de Mariana e de Faro é, de fato, atribuída a Johann Heinrich Ulenkampf. 5 - Conclusão: Graças ao detalhado trabalho de autoria do Pe. Dr. Marcello M. Ferreira, dispomos de prova irrefutável sobre a semelhança técnica e estética de construção entre esses instrumentos congêneres hoje instalados nas catedrais de Faro (construído em 1716) e de Mariana (construído provavelmente por volta de 1723), cuja paternidade é atribuída a Ulenkampf. Este mestre organeiro aprendeu a arte de construir órgãos com Arp Schnitger, em Hamburgo. Portanto, podemos - com toda a certeza - considerar ambos os instrumentos como verdadeiras jóias históricas: duas obras primas oriundas da grande arte organária da escola de Arp Schnitger. A localização futura do paradeiro do segundo pequeno órgão enviado em 1701 por Arp Schnitger a Portugal, colocará um ponto final a todas as especulações em torno do assunto.
NOTAS: 1 CALIMERIO SOARES é compositor e professor adjunto da Universidade Federal de Uberlândia. Doutor em Música pela Universidade de Leeds, Inglaterra. Membro da Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência e conselheiro do Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V. 2 MARQUES, José Augusto Maia. Mosteiro de Moreira: Uma centralidade irradiante, in O Mosteiro Crúzio de Moreira: História Arte Música, coordenação de António Maria Mendes Melo, Moreira da Maia, Ed. Fábrica da Igreja de Moreira da Maia, junho/2000: 15-23. 3 DIAS, Geraldo J. A. Coelho. O Mosteiro de São Salvador: Os Crúzios em Moreira da Maia: História e Arte, in O Mosteiro Crúzio de Moreira: História Arte Música, coordenação de António Maria Mendes Melo, Moreira da Maia, Ed. Fábrica da Igreja de Moreira da Maia, junho/2000: 25-46. 4 MEIJER, Siwert. Bijdragen tot de geschiedenis van het orgelmaken, in Caecilia, Allgemeen muzikall tijschrift van Nederland (Utrecht, 1853-54). 5 FOCK, Gustav. Arp Schnitger und seine Schule (Kassel, 1974): 263. 6 DODERER, Gerhard. Caixas de Órgãos Portugueses Setecentistas: Exuberante Simbiose de Beleza e Técnica in Separata de FORUM, Braga, Museu Nogueira da Silva, 1996: 101-115. 7 Ibid. página 106. 8 VALENÇA, Manuel. A Arte Organística em Portugal - Depois de 1750, 2º volume, Braga, Editorial Franciscana, 1995: 187 e seguinte. 9 JANN, Georg. Como descobri e restaurei o órgão Arp Schnitger em Moreira da Maia, in O Mosteiro Crúzio de Moreira: História Arte Música, coordenação de António Maria Mendes Melo, Moreira da Maia, Ed. Fábrica da Igreja de Moreira da Maia, junho/2000: 64-77. 10 Ibid. página 69. 11 FERREIRA, Marcello M. Arp schnitger: Dois Órgãos congêneres de 1701. Niterói (RJ, Brasil), 1991. 12 MENEZES, Ivo Porto. O templo e a música, in Mariana: arte para o céu. Coordenação de Paulo Mendes Campos. Belo Horizonte, Comissão Pró-restauração da Catedral e Órgão da Sé de Mariana, 1985: 72-83. 13 Ibid. página 83. 14 DODERER, Gerhard, Ausgewählte Aspekte brasilianisch-europäischer Musikbeziehungen des 18. Jahrhunderts in Brasil-Europa 500 Jahre: Musik und Visionen - Brasil-Europa 500 anos: Música e Visões, Bericht des Internationalen Kongresses - Anais do Congresso Internacional, Köln, 3. bis 7. September 1999 - Colonia, 3 a 7 de setembro de 1999, unter der Schirmherrschaft der Botschaft der Föderativen Republik Brasilien - sob o patrocínio da Embaixada da República Federativa do Brasil na Alemanha; ed. Antonio Alexandre Bispo, Colonia, Akademie Brasil-Europa, Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V., Instituto Brasileiro de Estudos Musicológicos I.B.E.M., 2000: 366-371. https://revista.akademie-brasil-europa.org/CM66-05.htm 15 DODERER, Gerhard. Relações Musicais Luso-Brasileiras do Século XVIII: Dois casos particulares, in A Música no Brasil Colonial: 1º Colóquio Internacional, Lisboa, 9 - 11 de Outubro de 2000 / Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Música; pref. Rui Vieira Nery - Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Música, 2001: 389-416. 16 DODERER, Gerhard. O órgão da Sé Catedral de Mariana: um caso particular no relacionamento musical luso-brasileiro, in revista Brasiliana nº 9, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Música, Setembro de 2001: 10-15. 17 REZENDE, M. Conceição. A Música na História de Minas Colonial. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; Brasília, INL, 1989. 18O nome de João Henriques Ulenkampo é também encontrado como Johann Hinrich ULENKAMP (também HULENKAMPF). 19Ibid. página 508. 20Conf. MENEZES, Ivo Porto, página 81.