Doc. N° 2147
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
105 - 2007/1
Publicações
Vasco Resende: A Sociedade da Expansão na Época de D. Manuel I
A Câmara Municipal de Lagos, através da sua Comissão Municipal dos Descobrimentos, publicou, em novembro de 2006, a obra de Vasco Resende, de título "A Sociedade da Expansão na Época de D. Manuel I: Mobilidade, Hierarquia e Poder entre o Reino, o Norte de África e o Oriente." (266 págs.). A obra se insere numa série de publicações dedicadas aos Descobrimentos (colecção Descobrimentos) e que inclui diversificados textos, entre eles monografias, obras históricas e léxicos:
N° 1 Mito e Memória do Infante D. Henrique, de Maria Isabel João;
N° 2 São Gonçalo de Lagos, de Jorge Gonçalves Guimarães;
N° 3 Pequeno Dicionário da Expansão Atlântica Portuguesa, de João Veloso;
N° 4 Short Dictionary of the Portuguese Atlantic Expansion, de João Veloso;
N° 5 Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde, de André Álvares de Almada, e
N°6 Relação das Antiguidades dos Índios, de Frei Ramon Pané/Eduado Coutinho.
No prefácio da obra, Júlio Monteiro Barroso, Presidente da Câmara Municipal de Lagos, salienta o objetivo do "projeto estratégico" "Lagos dos Descobrimentos", ou seja, o da divulgação de fontes e estudos relacionados com a epopéia das grandes navegações portuguesas, "lançadas a partir do Barlavento Algarvio pelo Infante D. Henrique". O projeto tem como finalidade fazer de Lagos a capital nacional portuguesa dos Descobrimentos. A obra agora publicada representa um trabalho de mestrado realizado junto à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Como o prefaciador salienta, trabalhos acadêmicos como este raramente são impressos. Considerando a relevância do tema, decidiu-se, porém, levá-lo ao público, estreitando assim os elos das entidades municipais responsáveis pelo projeto com o meio universitário. O autor organiza o seu trabalho em três capítulos principais, emoldurados por uma introdução e uma conclusão. Seguem-se em anexo "Quadros Prosopográficos" e "Fontes e Bibliografia". Na sua introdução, o autor salienta que o estudo partiu da discussão da hipótese de um elo fundamental entre a passagem dos portugueses pelas praças do Norte da África e a ação posteriormente efetivada na região do Índico. Tendo participado do projeto "Tecido Social e Redes de Poder: os Portugueses e o Magrebe dos séculos XV a XIX (estudo prosopográfico)", apresentado pelo Centro de História da Universidade de Lisboa à Fundação para a Ciência e a Tecnologia, teve o seu interesse despertado para o estudo de ocorrências semelhantes no Oriente que permitissem análises comparativas e integradas dos dois rumos da expansão portuguesa. O autor parte da convicção de que a sociedade portuguesa do princípio do século XVI ainda apresentava uma "estrutura assente na funcionalidade das ordens medievais". Haveria, entretanto, já uma permeabilidade maior entre as várias esferas sociais. A ascenção social era possível, sobretudo através da nobilitação, apesar da vigência de rigorosos critérios de legitimidade. A perspectiva de nobilitação através da retribuição ou compensação por serviços prestados teria sido um dos principais fatores que levaram portugueses a se deslocarem para o Norte da África. O caminho à nobilitação seria ou o das armas ou o da administração pública. Essa dualidade entre a "carreira das armas" e a "carreira das letras" teria levado a tensões no âmbito da sociedade. A política de expansão no Índico ter-se-ia baseado sobretudo no estabelecimento de uma rede de fortalezas; tal como no Norte da África, a representação da autoridade real estava a cargo do capitão-governador com o seu corpo administrativo. Entretanto, porém, com a relevância da atividade comercial, o feitor assumiria gradualmente uma posição de particular importância na hierarquia. Também no Índico teriam sido os muçulmanos os principais opositores dos portugueses. O estudo da mobilidade no Norte da África e no Oriente poder-se-ia basear, assim, em similaridades sob o ponto de vista político e econômico. Esse estudo, porém, revelar-se-ia como sendo demasiadamente complexo. O autor salienta a existência de um desequilíbrio entre as informações existentes para as duas regiões. No entanto, duvida que o comportamento dos portugueses no Marrocos tenha contribuído diretamente para a evolução dos acontecimentos militares no Oceano Índico (pág. 185). Como salienta, o estudo do tema apenas permite uma apreciação sumária da transposição de comportamentos sociais entre os diversos espaços. Com base nos poucos dados existentes, limita-se assim ao traçado de quadros prosopográficos "de um universo bem mais diminuto, embora bastante ilustrativo de uma sociedade extremamente heterogénea" (pág. 186). Para tal, o autor oferece, em ordem alfabética do primeiro nome de cada personagem, dados relativos à filiação, a familiares, cônjuge, estatuto, e ações respectivamente nos contexto Norte da África e Oriente. Em vários casos inclui observações, sendo as fontes para os dados fornecidos devidamente indicadas. O sentido crítico do autor, que se manifesta na sua forma de argumentação e sobretudo na modéstia de suas palavras conclusivas, a sua linguagem cuidada e objetiva, e sobretudo os quadros altamente informativos que oferece em anexo demonstram que a obra ultrapassa, de muito, o significado de um trabalho de mestrado, constituindo-se já agora certamente em publicação de referência indispensável para os estudos especializados. Em trabalhos futuros, seria desejável que o tema fosse retomado a partir de outros pressupostos teóricos, correspondentes ao estado atual das reflexões referentes às análises de processos histórico-culturais. Novas perspectivas se abririam, aqui, para o tratamento mais adequado de questões básicas tais como aquelas relativas aos elos entre "A Expansão e as motivações sociais: honra e proveito" (pág. 20 ss.). O autor, considerando os fatores motivadores da participação dos portugueses no processo de expansão, parte de forma altamente pertinente de uma afirmação de Francisco de Albuquerque, que diz que os homens correm pelo mundo para alcançar uma de três coisas, "homra e proueito, e saluar alma." A seguir, porém, diz: "Se excluirmos a 'salvação da alma', preocupação fundamental para um cristão-novo, a 'honra' e o 'proveito' constituem os grandes objectivos dos portugueses que passam ao Norte de África e ao Oriente." (págs. 20-21). Relativando a exclusão de um dos fatores, diz, em nota, com muita propriedade: "Na verdade, todos estes três factores são interdependentes". Entretanto, prosseguindo, afirma: "A 'salvação da alma', apesar de não desempenhar um peso essencial no comportamento individual dos intervenientes, ocupa um lugar importante (...)". Nessa restrição pré-estabelecida, porém, se manifesta um dos problemas teóricos básicos do tratamento do tema. Em primeiro lugar, poder-se-ia considerar que o "saluar alma" de Francisco de Albuquerque não se refere apenas à salvação da própria alma, mas também ao "salvar alma" em geral, ou seja, ao intuito conversor e missionário, fator expansionista por excelência, intrínseco ao Cristianismo. Em segundo lugar, a "salvação de alma" não é de forma alguma preocupação fundamental somente para um cristão-novo. A consideração completa da frase de Francisco de Albuquerque - e a sua interpretação diferenciada - estabeleceria outros paradigmas teóricos, trazendo conseqüências para o tratamento de questões estudadas em capítulos seguintes. A atenção seria dirigida à inserção do fenômeno da expansão dentro do processo mais amplo de formação e de solidificação de identidades na própria sociedade cristã/cristianizada e por sua vez cristianizadora. A natureza anti-tipológica da ordem conceitual e teórica do Cristianismo traz consigo a superação desvalorizante da ordem pré-cristã e de sua tipologia, e a adoção da identidade cristã pelo exercício de formas de expressão, pela conversão e batismo desencadeia um processo performativo através de gerações caracterizado por instabilidade identificatória, com conseqüente compensação da perda de posição na antiga ordem pela procura de privilégios e honras na nova sociedade, assim como pelo exagêro híbrido nas expressões culturais e na persecução das normas adquiridas. Esses mecanismos, já analisados em processos desencadeados pelos missionários em várias regiões, dão continuidade, em outras circunstâncias, a processos já vigentes nos países de origem. A expansão surge, aqui, não como fenômeno histórico circunscrito a determinada época, mas sim como um resultado de natureza processual inerente a uma visão anti-tipológica do mundo e do homem, vinda de passado remoto e até hoje atuante. O estudo adequado desse processo não pode se resumir a considerações relativas ao clero entre os estratos sociais (págs. 41-46) e nem muito menos a uma consideração estrutural restrita às ordens religiosas militares. A relevância das ordens missionárias em Portugal da Idade Média e do período dos Descobrimentos indica o fator fundamental representado pelos diferenciados processos de conversão interna na própria sociedade portuguesa e de suas extensões externas. Um povo cristão ainda marcado por expressões culturais seculares remontantes aos primórdios da Cristianização, grupos populacionais de muçulmanos e judeus assimilados e/ou conversos sugerem uma situação de labilidade altamente favorável a eclosões de ímpetos de afirmação e de exageros na consecução de expressões culturais e de princípios. A expansão não surgiria, aqui, como fenômeno próprio de uma sociedade forte e consolidada, mas sim como resultado de uma situação complexa de hibridismo cultural e de labilidade identificatória. Estas questões da análise cultural surgem hoje como de extraordinária atualidade para o Brasil, uma vez que grande parte do país vivencia hoje, com a ocupação da Amazônia, concretamente o prosseguimento de um processo de expansão desencadeado pelos portugueses no passado. Uma cooperação com os estudiosos portugueses possibilitaria aqui um aprofundamento dos conhecimentos e, para Portugal, a abertura de novas perspectivas para o estudo dos Descobrimentos. A reconsideração de paradigmas teóricos, porém, revela-se como de fundamental importância para ambos os lados. O estudo de Vasco Resende oferece, nesse sentido, importantes subsídios à discussão. Contactos: Comissão Municipal dos Descobrimentos Rua Henrique Correia da Silva, 2 8600-597 Lagos A. A. Bispo