Doc. N° 2187
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
106 - 2007/2
Duas revistas da Iª República Portuguesa A Águia e a Seara Nova
Jorge Gonçalves Guimarães
INTRODUÇÃO
No plano ideológico-político, o ideário republicano apresentou-se como algo despido de programa ideológico definido concedendo-se à palavra República um significado carismático e místico, acreditando-se que «bastava a sua proclamação para libertar o País de toda a injustiça e de todos os males»[1]. Tracemos pois, em linhas muito gerais, alguns aspectos do ambiente gerado após o 5 de Outubro de 1910. O desequilíbrio de forças entre o Poder Executivo e o Legislativo, fazendo com que aquele dependesse das maiorias parlamentares, a dispersão partidária, a presença de forças conservadoras que pretendiam o retorno da monarquia, os movimentos operários e o marasmo económico e financeiro, foram alguns dos aspectos que frequentaram a Primeira República e conduziram à perda das bases sociais que a apoiavam. O Partido Democrático, embora tenha contado com personalidades carismáticas como Elias Garcia, Bernardino Machado, Afonso Costa e António Maria da Silva, era um partido heterogéneo e nunca teve uma direcção efectiva, o que de alguma forma explica o fenómeno das dissidências e a criação, logo a partir de 1911 de partidos subsidiários, sendo que em 1926 se contavam seis partidos[2] cuja origem, directa ou indirecta, se vai encontrar no PRP. Estes factos ajudam a perceber a instabilidade política deste período que conheceu oito presidentes da república e quarenta e cinco governos. Em termos económicos, a agricultura era, nesta altura, a principal actividade. Caracterizada por uma desproporção entre a produção, sobretudo cerealífera, e o consumo, constituiu a principal preocupação dos pensadores económicos e dos políticos que, conscientes da necessidade de aumento da produção, defendiam a fixação da população nos campos, situação obrigando a uma reflexão em torno do regime de propriedade. De entre todos salienta-se Ezequiel de Campos que, durante o governo de José Domingues dos Santos (1925), apresentou, embora não tenha chegado à discussão parlamentar, um projecto de reforma agrária. Contudo nenhum dos governos da Primeira República conseguiu pôr em prática qualquer projecto nesse domínio, pelo que nem o regime de propriedade nem a produtividade agrícola sofreram qualquer alteração. A carestia de vida, que tinha sido um importante tema da propaganda republicana e tinha convocado a adesão das classes médias e operárias, foi outra das batalhas perdidas. A nova moeda nunca foi estável e a inflação foi, ao longo de todo este período, uma constante, assumindo durante a guerra proporções até então nunca vistas. As crises internacionais também afectavam o sector financeiro. Neste contexto que se enquadra o caso da falsificação das notas de 500$00 de Alves dos Reis, que, apesar de tudo, contribuiu mais para o desprestígio do regime do que para afectar a estrutura financeira do país. Na sociedade desta época, ao lado de um estrato da burguesia rica, associada à propriedade fundiária e ao capital financeiro, temos uma classe média das cidades ( Lisboa e Porto) ligada ao comércio, à indústria, às profissões liberais e ao funcionalismo público. Deste grupo faziam parte também a maior parte dos oficiais não superiores do exército e da marinha, bem como pequenos e médios proprietários rurais. As suas ambições eram naturalmente ascender a um cargo na governação política e económica do país, tendo sido ele, juntamente com o proletariado rural e urbano[3], o grande autor da República. Contudo, instaurada a República, foi sobretudo a alta classe média que ocupou a maioria dos cargos governativos e tratou de defender os seus interesses, facto que explica o fosso que se viria a cavar relativamente às classes populares bem como a acesa oposição da burguesia rica. Se antes de 1910 os republicanos conseguiram, pela promessa de resolução de inúmeros problemas, a adesão do grupo dos operários, cedo se verificou um divórcio entre o operariado e a classe burguesa republicana que via no movimento grevista[4] uma investida contra a ordem estabelecida. Esta situação, aliada ao facto de alguns dirigentes sindicais reclamarem para o operariado uma parte da autoria da revolução, conduziu a que este grupo acabasse por se opor ao regime e se associasse frequentes vezes a elementos monárquicos e da extrema direita[5]. Nos meios rurais encontramos para além dos pequenos proprietários, e deles pouco se distinguindo, um vasto grupo de camponeses de condição quase servil, facilmente manipuláveis pelos senhores da terra, pelos caciques e pelo clero rural. Eram fundamentalmente rendeiros e assalariados e a sua principal preocupação era assegurar subsistência, tendo, no entanto, devido ao aumento dos salários rurais decorrente da emigração, a sua situação conhecido alguma melhoria no primeiro quartel do século XX. Gradualmente as classes operárias e as classes médias, não vendo melhoradas as suas condições de vida ou goradas as suas expectativas vão-se divorciando do regime republicano para engrossarem os grupos socialistas e anarquistas. Já no domínio das ideologias destaca-se, desde cedo, o aparecimento de grupos ora antagónicos ora severamente críticos em relação ao regime ou à prática política.
A ÁGUIA
O aparecimento da revista A Águia insere-se no contexto do advento da República. O primeiro número sai no dia 1 de Dezembro de 1910. É óbvio que a escolha do dia 1 de Dezembro tem um significado simbólico, como se tivesse em vista uma restauração da dignidade e da importância histórica de Portugal. Antes, em 1907, tinha já sido publicada a revista Nova Silva, reunindo na sua direcção nomes como os de Leonardo Coimbra, Jaime Cortesão ou Álvaro Pinto, os quais aparecerão também em A Águia.
No início do primeiro número de A Águia visita-se um artigo de Manuel Laranjeira intitulado «Os homens superiores na selecção social». Aí chama a atenção para o papel das elites na vida política e social do país questão essa que se tornava importante numa altura em que a revolução republicana, que teve um forte carácter popular, precisava de quadros para as actividades políticas e administrativas. Esta preocupação, que assume um sentido pedagógico, há-de ser extensiva aos ideais de A Águia, sobretudo a partir de uma sociedade intitulada Renascença Portuguesa e da publicação do seu boletim intitulado A Vida Portuguesa (1912 - 1915). A Águia teve uma longa vida, prolongando-se a sua publicação até 1932; se se considerarem todas as suas séries, saíram dos prelos 205 números. Trata-se de uma revista essencialmente literária, tornando-se porta voz de um movimento poético, o Saudosismo. Teixeira de Pascoaes será o director literário dos primeiros 61 números da 2ª série, a qual se inicia em 1912. Além de Pascoaes, outros nomes importantes apareceram depois ligados à revista: Leonardo Coimbra, António Carneiro, Hernâni Cidade, Adolfo Casais Monteiro, Delfim Santos, etc.
A sua longevidade, superior a duas décadas, permite pois que esta revista não deva ser considerada como apenas geracional. E assim acontece, pois nela hão-de colaborar autores ligados ao Modernismo (Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro) ou à Presença, tendo, aliás, sido já citado o nome de Casais Monteiro. Nas páginas desta publicação ganha particular relevo a polémica entre Pascoaes e António Sérgio, em que este critica a concepção poética do Saudosismo, antepondo-lhe um ideal pedagógico e de racionalidade que o levará a aproximar-se mais da revista Seara Nova. Com efeito, António Sérgio e Jaime Cortesão acabam por se afastar e entram para o grupo da Seara.
SEARA NOVA
Em 1921, contando entre os seus fundadores com individualidades como Jaime Cortesão ou Raul Proença, que já haviam pertencido à revista A Águia mas que dela se afastaram por não corresponder aos seus desejos de intervenção político-social, destaca-se o aparecimento da Seara Nova, revista essencialmente doutrinária e crítica que se apresentou como a representação do «esforço de alguns intelectuais, alheados dos partidos políticos mas não da vida política, para que se erga, acima do miserável circo onde se debatem os interesses inconfessáveis das clientelas e das oligarquias plutocracias, uma atmosfera mais pura em que se faça ouvir o protesto das mais altivas consciências, e em que se formulem e imponham, por uma propaganda larga e profunda, as reformas necessárias à vida nacional»[6].
A não aceitação da instabilidade política do país e do domínio do Partido Democrático levou mesmo, em 1923, a que um grupo de integralistas[7] e seareiros, se unissem na busca de uma solução no grupo Homens Livres, que apesar de congregar ideologias diferentes, tinha, como salientou João Medina, um denominador comum: «a idêntica recusa do statu quo institucional, o repúdio pelo demo-liberalismo, a recusa dum regime de balbúrdia, plutocracia e ineficácia governativa»[8]. Um dos seus autores, o integralista Augusto da Costa, caracteriza o estado das coisas da seguinte forma: «[a] ausência de ideal colectivo manifesta-se aberta e claramente na constituição e nas lutas dos partidos políticos.[...] Ainda poderia atribuir-lhes algum valor e olhá-los com alguma simpatia , se porventura as lutas dos partidos entre si para a conquista do governo fossem travadas à volta de princípios e ideias e não à volta de individualidades geralmente destituídas tanto de ideias como de princípios. [...] Esta divergência entre a Nação e os partidos, levada para o Parlamento, torna-se incoerente, dispersa, muitas vezes contrária ao interesse nacional. [...]Não há representantes de interesses nacionais: existem apenas representantes dos partidos. Daí a corrupção»[9]. As relações entre o governo e as oposições partidárias ou classistas, já tensas, agravaram-se ainda mais com a chamada Questão dos Tabacos[10]. Esta questão assumiu tal importância que na Seara Nova, num texto do nº 89, publicado em 27 de Maio de 1926, sob o título «A Crise Política», se escrevia o seguinte: «Parece-nos bem claro o desenlace de semanas seguidas de esterilidade tumultuosa num parlamento já com péssimas tradições: prepara-se, inglória e lastimosamente, mais uma revolução ou pronunciamento, venha da esquerda, da direita, dos partidos ou do exército. Se o governo dominar o movimento [...] impõe-se a dissolução, com eleições tendo por plataforma essencial a questão dos tabacos»[11].
Além dos textos de ordem social e política na Seara Nova, não devemos esquecer uma outra vertente também importante: a literatura. Alguns membros que passaram pela sua direcção eram mesmo escritores de reconhecido mérito: Aquilino Ribeiro, Augusto Casimiro, Jaime Cortesão, Raúl Brandão, etc. Como se vê pelos nomes referidos, sobressai inicialmente uma marcada influência dos saudosistas, do grupo da Renascença Portuguesa. Daí o aparecimento nas páginas da revista de colaboração poética dentro dessa orientação. Além de Jaime Cortesão e Augusto Casimiro, aparecem Teixeira de Pascoaes, Américo Durão, Afonso Duarte, Irene Lisboa. Entretanto, começam também a emergir os poetas ligados a uma outra revista, a Presença, como é o caso de José Régio. Além desta colaboração poética, encontram-se na Seara Nova ensaios e textos de intervenção polémica no âmbito da literatura. João Gaspar Simões publicou um artigo intitulado «Tendências individuais da moderna poesia portuguesa»; António Sérgio mantém uma polémica com Gaspar Simões sobre o «mistério da poesia» e a noção de poesia pura; José Régio escreve para uma secção sua intitulada «Cartas intemporais do nosso tempo»; Adolfo Casais Monteiro, José Rodrigues Migueis, etc., publicam vários artigos. A partir dos anos 40 começa a fazer-se sentir a presença, que será mais ou menos discreta, de escritores ligados a um novo movimento literário, o Neo-Realismo.
[1] A. H. de Oliveira Marques, A Primeira República Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1980, p.64. [2] Partido Radical, Partido da Esquerda Democrática, Partido Democrático (P.R.P.), Acção Republicana, Partido Nacionalista, União Liberal. [3] A promessas de solução dos problemas do operariado urbano e do campesinato permitiram obter um forte apoio popular ao Partido Republicano, situação permitindo que o 5 de Outubro contasse com a participação desse sector populacional. A este respeito, Miriam Halpern Pereira (Das Revoluções Liberais ao estado Novo, Lisboa, Editorial Civilização, 1994, p. 208) refere que o Partido Republicano foi o primeiro partido burguês que convocou largamente as camadas populares, isto é, um partido de «massas». [4] O número de greves aumentava à medida que cresciam os quantitativos do operariado industrial. Se em 1917 este número rondava os 142600, em 1924 passaria para 217900, maioritariamente distribuídos por Lisboa e Porto. O facto de associarem os seus interesses aos do assalariado urbano, conferia-lhe uma capacidade de pressão considerável. [5] A. H. de oliveira Marques, História de Portugal, Vol. III, Lisboa, Palas Editores, 1986, p. 326. [6] Sottomayor Cardia (Org. de), Seara Nova-Antologia, Vol.I: Pela Reforma da República (1) 1921-1926, Lisboa, Seara Nova, 1971, p. 90. [7] O Integralismo Lusitano, surgiu logo após a implantação da República, no meio universitário de Coimbra. Começou por ser um movimento essencialmente doutrinário e literário - ganhando forma com o aparecimento, em 1914, do primeiro número da revista Nação Lusitana, publicação inspirada na Action Française, de inspiração antiliberal e antidemocrática - para rapidamente se transformar num movimento político, conservador e monárquico tradicional. [8] João Medina, O Pelicano e a Seara. A Revista Homens Livres, Lisboa , Edições António Ramos, 1978, p.11. [9] Augusto da Costa, «A Crise Portuguesa e a Reacção dos Homens Livres», João Medina, O Pelicano e a Seara. A Revista Homens Livres, Lisboa , Edições António Ramos, 1978, pp. 57-59. [10] Em 30 de Abril de 1926, face ao termo da concessão do monopólio do fabrico dos tabacos, o governo propôs que a actividade fabril e comercial passasse a ser um serviço do Estado. Ainda que 70% dos capitais da Companhia dos Tabacos pertencessem a franceses, a questão acabou por ultrapassar os interesses nacionais privados e directos e generalizou-se dando origem a uma luta que congregou as forças da direita, pugnando pela defesa da livre iniciativa económica, e da esquerda que defendiam que o monopólio estatal contribuiria para aumentar ainda mais a corrupção na administração. [11] Sottomayor Cardia (Org. de), Seara Nova-Antologia, Vol.I: Pela Reforma da República (1) 1921-1926, Lisboa, Seara Nova, 1971, p.221.