Doc. N° 2182
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
106 - 2007/2
Francisco de Andrade (1856-1921) Presença de Portugal no mundo cosmopolita das cidades européias do início do século XX Colóquio interdisciplinar pelos 150 anos de nascimento de Francisco de Andrade - I.S.M.P.S. e.V.
No ano de 2006 comemorou-se a passagem dos 150 anos de nascimento de um dos artistas portugueses que maior projeção européia já alcançaram: Francisco de Andrade (ou Francisco d'Andrade). A data foi em geral pouco lembrada pelo fato de ter sida corrigida apenas há poucas décadas através das investigações de Mário Moreau divulgadas na obra Cantores de Ópera Portugueses (2 vols., Venda Nova - Amadora: Bertrand, 1981, vol I., 607-817). Sobretudo na literatura não-portuguesa, continua a ser apontado o ano de 1859 como sendo o do seu nascimento, um fato que M. Moreau considerou como sendo um "erro quase secular" (op. cit. 775). O artigo dedicado a Francisco de Andrade na obra de M. Moreau impressiona pela quantidade de dados e de fontes documentais consideradas. O autor contou aqui com uma grande coleção de periódicos estrangeiros, de volumosa documentação visual e de cartas em posse do filho do artista, Francisco António Luís de Andrade. O número e a diversidade das fontes citadas, sobretudo de revistas e periódicos de cidades de vários países europeus testemunham a extraordinária atenção que Francisco de Andrade recebeu da imprensa das diferentes nações e a dimensão verdadeiramente transnacional da ação desse cantor português. As fontes citadas por M. Moreau incluem numerosos títulos em língua alemã, demonstrando a intensidade das atividades de Francisco de Andrade nesse país e o grau de prestígio que alcançou no Império Alemão. É compreensível, portanto, que a memória de Francisco de Andrade esteja sobretudo viva na Alemanha, em particular pelo fato de ter sido eternizado em obras de pintura de alto valor artístico e sempre relembradas.
O Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa /ISMPSe. V., tendo o seu centro de estudos na Alemanha, não poderia deixar de dedicar uma atenção especial a Francisco de Andrade pela passagem de seus 150 anos. Realizou-se, para isso, em colaboração com a Universidade de Colonia, um programa de estudos e colóquio interdisciplinar dedicado ao tema "Presença de Portugal no mundo cosmopolita das capitais européias do início do século XX". Os estudos se inseriram nos eventos dedicados ao Ano Mozart, uma vez que a memória do cantor se mantém viva sobretudo pelo seu papel de Don Giovanni, marcando a figura na iconografia histórica da ópera mozartiana. Entre os estudos desenvolvidos, procurou-se sobretudo contextualizar a atividade do cantor no ambiente musical de fins do século XIX e início do século XX nas diferentes regiões e cidades da Alemanha. Uma particular atenção foi dada à análise da recepção desse cantor no âmbito das relações culturais entre a Alemanha e os países do Sul da Europa, em especial a Itália. Nesses estudos, procurou-se reconstruir esferas culturais de artistas e eruditos latinos nas grandes cidades do Império Alemão, em particular na vida cosmopolita de Berlim anterior à Guerra de 1914. Procurou-se constatar até que ponto Francisco de Andrade se tornou uma espécie de "embaixador cultural" de Portugal na Alemanha, criando um círculo de amigos e simpatizantes, contribuindo, assim, ao lançamento de alicerces de um edifício de relações culturais que se reconstruiria nos anos posteriores à Guerra. O interesse desses estudos reside na contribuição que podem oferecer à pesquisa histórica das relações culturais luso-alemãs e latino-alemãs em geral, às vezes por demais baseadas em iniciativas ocorridas a partir de meados da década de 20. Outro significado desses estudos reside no fato de trazer o vulto de um português para o centro das atenções na análise da história das relações culturais; em geral observa-se uma tendência a dar-se a prioridade das iniciativas nas relações culturais a personalidades alemãs. Por fim, o estudo da vida e da ação de Francisco de Andrade assume interesse especial sob o ponto de vista dos atuais estudos culturais e interculturais da migração e da transformação de identidades: o cantor tornou-se residente na Alemanha e considerava esse país como sendo a sua segunda pátria, a êle retornando após a Primeira Guerra, onde faleceria.
No levantamento de fontes para a consecução desses estudos, procurou-se considerar materiais não incluidos na volumosa bibliografia publicada por M. Moreau. Uma fonte histórica significativa para os estudos culturais, e que completou os seus 100 anos em 2006 , foi o artigo "Francesco d'Andrade", assinado por "Linkeus", de primeira página, com fotografia à parte, dos fotógrafos Zander & Labisch, Berlim, publicado no ano em que o artista comemorou o seu anivérsario de 50 anos pelo o Ilustriertes Universum-Jahrbuch 1906 (Leipzig: Philipp Reclam jun. 1906) no Nr. 19 do Weltrundschau (6.-12. Mai).
Os trabalhos iniciaram-se com considerações relativas à formação intelectual e artística de Francisco de Andrade, tratando-se de alguns aspectos selecionados da sua biografia. Oferece-se aqui a súmula que serviu de base às reflexões, preparada por universitários participantes do colóquio. "Francisco Augusto de Andrade e Silva nasceu em Lisboa, em 11 de janeiro de 1856, falecendo em Berlim, em 8 de fevereiro de 1921. Filho de prestigiado jurista, êle próprio formou-se em Direito. Assim como o seu irmão, António, freqüentava o Teatro do Ginásio e participou de récitas de amadores da Sociedade Taborda, no Salão da Trindade. Estudou declamação e rudimentos de música, entre outros com Manuel Carreira e Arturo Pontecchi, maestro do Teatro de São Carlos. Em 1879, realizou uma récita no Salão da Trindade que representou uma marca na sua carreira artística. Já como estudante, salientou-se pelos seus talentos dramáticos e pelas suas qualidades vocais. A sua especialização deu-se na Itália. Em abril/maio de 1881, Francisco de Andrade, na companhia do maestro António Duarte da Cruz Pinto, partiu para Milão, onde tornou-se aluno do então famoso tenor Corrado Miraglia. Conviveu no círculo do compositor A. Ponchielli. Posteriormente, após a morte de Miraglia (1881) recebeu aulas de Sebastiano Ranconi, um barítono altamente prestigiado que, após ter encerrado a sua carreira de cantor, dedicava-se ao ensino.
Em 23 de dezembro de 1882, Francisco de Andrade apresentou-se em San Remo, no teatro Principe Amedeo, no papel de Amonasro, da ópera Aída; seguiram-se apresentações em Roma, no Teatro Costanzi, cantando O Trovador, Guilherme Tell e Poliuto, sob a direção de Marino Mancinelli. Após estadia em Portugal, voltou para a Itália, iniciando uma tournée de dois anos por grandes centros do país (Carrara, Cesena, e outros)). A seguir, dirigiu-se à Espanha (Teatro Principal de Valencia) e a Portugal. Aqui, no seu país natal, onde o início de sua carreira tinha sido visto com certa reserva, recebeu, por fim, o devido reconhecimento (Teatro de S. João, do Porto, temporada de 1884/85). Empenhando-se no apoio a músicos patrícios, Francisco de Andrade e seu irmão possibilitaram a edição da ópera I Doria, de Augusto Machado, pela editôra Lucca. Importante etapa na vida artista dos dois irmãos foi a estadia em Moscou em 1885/86, contratados pelo Théatre Privé d'Opéra de Moscou por Nicolas De Krotkoff. No verão de 1886, Fancisco d'Andrade foi a grande atração do Convent Garden Theater de Londres. Cantou em récitas assistadas por membros de famílias reais de vários países. Desde então, percorreu a Europa infatigavelmente, em numerosas apresentações e com vasto repertório de mais de 50 obras, tecendo uma ampla rêde de contactos. No dia 10 de março de 1888 participou da estréia de Dona Branca, de Alfredo Keil, no Teatro São Carlos. Tornou-se proprietário de um teatro em Lisboa, que arrendava, e possuia também vários imóveis na capital portuguesa. Já no ápice de sua carreira, em 1888, cantou para os reis de Portugal e da Itália, em recepção particular em Monza, e realizou uma tournée por várias cidades da Inglaterra e da Escócia. Em 1889, Francisco de Andrade se apresentou pela primeira vez na Alemanha como membro de uma companhia italiana convidada pelo diretor do Krolltheater, de Berlim. A sua primeira apresentação deu-se em 29 de março de 1889 com O Barbeiro de Sevilha. Em pouco tempo, Francisco de Andrade alcançou grande popularidade na Alemanha. Transformou-se rapidamente em atração de casas de ópera tanto de cortes, como de capitais e pequenas cidades menores. Atuou, entre outras cidades, em Aachen, Barmen, Bremen, Breslau, Colonia, Duesseldorf, Elberfeld, Magdeburgo, Mainz, Wiesbaden, além de cidades da Tchecoslováquia e dos Países Baixos (Amesterdam, Haia, Rotterdam). Admiradas foram também as suas apresentações em óperas wagnerianas, salientando-se sobretudo o seu papel como Tellramund. Em 1894, recebeu a Grande Medalha de Ouro das Artes e Ciências da família real de Wuertemberg. Em 1891, apresentou-se na Suécia."
O Illustriertes Universum Jahrbuch 1906 salientou que críticos louvavam não apenas as suas qualidades vocais; dignos de menção seriam a sua erudição, nobreza de atitudes e dotes de espírito. Segundo o autor do artigo, Francisco de Andrade teria encontrado na Alemanha o ambiente adequado para as suas tendências naturais e as características de sua personalidade.
"Und hier kann der feiner Gebildete einmal endlich wieder mit dem Geschmack der Menge harmonieren, denn dieser Künstler ist von entschieden vornehmer Art. Sein hervorstechendstes Merkmal ist in seiner schön gewölbten Stirn symbolisiert; ich nenne es Geist. d'Andrade singt geistreich und gestaltet genial."
Na época, segundo o articulista, a sua representação de Don Giovanni de Mozart já se havia tornado determinante na história da ópera. A origem latina do cantor possibilitava uma encarnação modelar desse herói romântico.
"Schon rein äußerlich stellt d'Andrade eine Art idealen Don Giovannis dar. Die schlanke, aristokratische Gestalt, der feine, schmale Kopf mit den sprühenden lachenden Augen, die Geschmeidigkeit der Bewegungen beim Fechten mit der Klinge sowohl, als im Zweikampf der Liebe, die Grazie beim Lautschlagen - alles dieses wirkt zusammen, um einen recht sinnverwirrenden, betörenden und bestrickenden Don Giovanni zuwege zu bringen, dazu die Stimme, dieser vibrierende metallische Bariton - man kann Momente wie den, da er sein Champagnerlied singt, nie vergessen."
Como cantor e como Don Giovanni, Francisco de Andrade foi tema de pinturas do então jovem Max Slevogt (1868-1932), obras de qualidades artísticas excepcionais e até hoje altamente consideradas (Staatsgalerie de Stuttgart, Kunsthalle de Bremen, Naionalgalerie). Nele, o cantor surge como um D. Juan trajado com vestimentas ricas, recebendo os seus convidados no castelo, iluminado pela luz da ribalta. Também o seu Fígaro, no Barbeiro de Sevilha, de Rossini, o seu Conde Luna, na ópera Troubadour de Verdi, o seu Nelusco na Africana de Mayerbeer, o seu Renato no Baile des Máscaras de Verdi, o seu Rigoletto e o seu Tell foram performances altamente louvadas no artigo do referido anuário ilustrado. Nada, porém superou a impressão causada pela encarnação do Don Giovanni. Em 1902, Francisco de Andrade adquiriu uma vila representativa em Bad Harzburg, que se transformara em poucos anos em verdadeiro centro de peregrinação para os seus admiradores e em centro inoficial de cultura lusa na Alemanha. Em 1906/07 passou a residir em Berlim.
"d'Andrade nennt Deutschland seine zweite Heimat. Er ist bei uns ansässig, hat im lieblichen Harzburg eine schöne Villa, die für viele seiner Verehrer zum Wallfahrtsort geworden ist, und bringt auch einen großen Teil des winters, soweit Gastspielreisen im Auslande ihn nicht abberufen, in Deutschland zu. Diese Dankbarkeit des geborenen Portugiesen ist wohlbegründet, hat doch der Sänger hier in unendlich kurzer Zeit eine erstaunliche Popularität erreicht."
Tornou-se conhecido por ser um dos primeiros artistas a possuir um automóvel, por êle próprio conduzido:
"Nicht einmal das modische automobil entbehrt er; er lenkt es selbst und erzählt mit Stolz, daß er das Examen als diplomierter Chauffeur summa cum laude bestanden."
O Illustriertes Universum Jahrbuch 1906 salienta, porém, que, apesar de viver tanto tempo na Alemanha, Francisco de Andrade nunca dominou totalmente o idioma. Falava lentamente e com uma pronúncia estrangeira.
"Trotz seines langjährigen Aufenthaltes in Deutschland fällt unsere Sprache dem Künstler noch schwer, er spricht sie nur langsam, mit sehr fremdartigem Akzent und ziemlich mühselig."
Casou-se, em 1900, com a cantora e pianista austríaca Irma Noethig. Durante a primeira Guerra, vieram residir em Lisboa. A sua última apresentação, sob a regência de Pedro Blanch, deu-se no Coliseu dos Recreios, em 24 de maiod e 1918. Faleceu em Berlim, em 8 de fevereiro de 1921. O seu corpo foi trasladado para Portugal, sendo sepultado no túmulo da família. A sua mulher retornou posteriormente a Viena, vindo a falecer em 17 de agosto de 1937.
O aspecto interdisciplinar das reflexões disse respeito sobretudo ao significado de Francisco de Andrade como Don Giovanni para a História da Arte e, sobretudo para os estudos de Max Slevogt. De fato, a partir da consideração do desenvolvimento estético desse pintor e gravador do Reno-Palatinado e da contextualização de sua obra na época e no seu meio social abrem-se novas possibilidades para estudos histórico-culturais mais diferenciados relativos ao papel de Francisco de Andrade no seu tempo. A sua dedicação ao cantor como Don Giovanni (D'Andrade als Don Giovanni, 1902, Das Champagnerlied, 1912, Stuttgart, Staatsgalerie) foi fundamental na sua vida artística. O tema foi considerado também como chave para a compreensão quase que emblemática do universo cultural de determinado círculo social do Império, impregnado de uma alta consciência do próprio nível intelectual. O pintor, membro da Berliner Secession já em 1899, inseria-se no campo de tensões do realismo alemão, encontrando a sua expressão individual numa tendência realista não-acadêmica, plena de coloridos.
Discutiu-se a posição de Max Slevogt no âmbito do Impressionismo alemão, ao lado de M. Liebermann e L. Corinth, e o papel de Francisco de Andrade num ambiente criador fascinado por motivos exóticos e do Sul da Europa do início do século (Der schwarze d'Andrade - O preto d'Andrade -, 1903, Hamburg, Kunsthalle). O próprio Slevogt viajou pelo Egito e pela Itália à época da Primeira Guerra e realizou, entre outros trabalhos, ilustrações com temas do Egito. de estórias da Arábia, de Ali Baba ou Sindbad, de lendas de Grimm, da Ilias e da Flauta Mágica, de Mozart. A admiração de Max Slevogt por Francisco de Andrade baseava-se na própria aptidão lírica do pintor, que teria uma vez cogitado em escolher a profissão de cantor. As reflexões foram dirigidas, por fim, a comparações das visões obtidas nos estudos de Francisco de Andrade a respeito de determinados círculos do seu tempo, em particular em Berlim, com o ambiente de Salzburgo da época e com os pressupostos intelectuais e estéticos que levaram à fundação da academia a cuja tradição se prende a A.B.E. Os trabalhos deverão ter prosseguimento.
A.A.B.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).