Doc. N° 2168
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
106 - 2007/2
Patrimônio cultural e qualidade de vida Causas de degradação e sustentabilidade de ações recuperativas Estudo de caso: Chácara do Barão do Serro
A.A.Bispo
Nos estudos culturais do Brasil, a cidade de Serro, antiga Vila do Príncipe, ocupa posição de especial relêvo. Em primeiro lugar, essa posicão é justificada pela sua própria história, vinculada à exploração do ouro e pedras preciosas remontante a fins do século XVII e início do século XVIII, pelo patrimônio artístico, musical e sobretudo arquitetônico que possui, pelo seu traçado urbanístico de especial inserção na topografia, - que a transforma em cidade-presépio -, e pelas suas tradições religiosas e lúdicas. Em segundo lugar, o papel especial de Serro nos estudos culturais é legitimado pela importância da cidade como centro cultural no passado, nela tendo nascido e atuado várias personalidade de renome nas ciências, nas artes e na política do Brasil, entre eles os membros da família de Teófilo Otoni, os poetas Salomé de Queiroga e Murlio Araújo, os juristas Pedro Lessa e Edmundo Lins, e os governadores João Pinheiro e Efigênio Sales. Por fim, a importância histórico-cultural de Serro reside no fato de ter sido a primeira cidade do Brasil a ser tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 8 de abril de 1938. Serro representa, assim, um exemplo e testemunho de uma política de preservação cultural que recebeu o seu cunho nos anos trinta, possibilitando a verificação de seus efeitos e sugerindo novas aproximações teóricas e medidas práticas. Serro surge ou deveria surgir, conseqüentemente, como emblema e caso modelar da política preservacionista do patrimônio ou de suas transformações conceituais.
Nesse sentido, tendo-se notícia de que um grande plano de recuperação do patrimônio local teria sido colocado em ação, a A.B.E. decidiu realizar uma visita ao Serro para observar aos trabalhos efetuados ou em andamento.
O plano faz parte do "Programa Monumenta" do Ministério da Cultura, sendo financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, em parceria com a Secretaria de Estado da Cultura do Estado de Minas Gerais e com o apoio do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico. Foi inaugurado festivamente com a participação de grupos tradicionais de Congado, Caboclos e Catopês, com a Banda Euterpe da Irmandade do Santíssimo Sacramento, visitas culturais e a abertura da sede local do IPHAN. As características do Programa são de alto interesse para os estudos teórico-culturais, também no âmbito das relações internacionais, uma vez que pretende combater as causas da degração do patrimônio cultural e elevar concomitantemente a qualidade de vida das comunidades. Essa vinculação do conceito de patrimônio ao intuito de elevação da qualidade de vida, e a proposta de desenvolvimento de um programa de recuperação sustentável surgem como princípios que merecem particular atenção dos estudiosos.
No programa de Serro estão previstas, entre outras, a restauração de bens da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, da Igreja de Bom Jesus de Matozinhas, do adro e da ladeira de Santa Rita e trabalhos na Praça João Pinheiro. Esses locais foram visitados, tomando-se notícia das medidas aplicadas ou em andamento nos últimos anos.
Uma particular atenção foi dada à Chácara do Barão do Serro, onde, porém, não se perceberam resultados de ações concretas destinadas à sua conservação. Justamente essa edificação, com os seus jardins e espaços externos, porém, oferece um caso de particular interesse para a aplicação e a demonstração de eficiência de conceitos de recuperação do patrimônio e de sua sustentabilidade.
Trata-se, aqui de um exemplo de arquitetura civil, domiciliar, que oferece outras possibilidades de refuncionalização para fins sustentáveis do que as igrejas. Não se tratando de fazenda, mas sim de chácara, defronte à cidade, hoje a ela integrada mas ainda guardando as suas características semi-rurais, a propriedade abre possibilidades ideais para a tematização das relações entre o urbano e o rural, entre cultura e natureza. É um exemplo já não muito freqüênte de um tipo de edificações de uma determinada fase de processo de urbanização de zonas vizinhas a centros constatável também em várias cidades brasileiras do passado. Caracterizando bairros aprazíveis e de alta qualidade de vida nas proximidades dos núcleos urbanos, foram degredados posteriormente por loteamentos, dando lugar a bairros industriais e a moradias de operariado e de imigrantes, sem maior planejamento urbanístico e arquitetônico, de relativamente baixa qualidade de vida e de absoluto desrespeito à natureza. É hoje, por exemplo, difícil de se imaginar que o Brás, em São Paulo, tenha sido uma região de chácaras com edificações apreciáveis e, sobretudo, com uma cultura de jardinagem e horticultura que davam à região qualidades paisagísticas especiais. A questão da degradação patrimonial não diz respeito apenas a bens materiais - construções, objetos artísticos -, nem também a bens imateriais - tradições sonoras, de dança, literárias e outras - mas sim e sobretudo ao ambiente. A questão do estudo das causas da degradação e da sustentabilidade de sua recuperação deve orientar-se sobretudo e em primeiro lugar pela questão da deterioração gradativa da natureza nas zonas urbanas e periféricas. É no processo de urbanização que as medidas protecionistas - ou melhor, de ação refletida - deveriam primordialmente atuar.
A Chácara do Barão do Serro deixa perceber as intenções culturais e paisagísticas dos seus construtores. De fronte à cidade, com as suas ruas serpenteando as montanhas e com as igrejas em patamares, a chácara se localiza em terreno com características escolhidas pelos seus valores pitorescos. A propria edificação, na simetria da disposição de seus espaços, de suas janelas e portas, estas dando para o patamar fronteiriço com escadas laterais de acesso, expressa um ideal de residência de chácara e da cultura rural-urbana a êle correspondente. A Chácara do Barão do Serro pode ser analisada como um exemplo de bucolismo na arquitetura, correspondente à importância das tradições de simbolismo pastoril na cultura brasileira do período colonial e do século XIX, sobretudo do período natalino, quando surgem associadas ao "mistério da primeira vinda". Aqui se revela a inserção da edificação na ordenação simbólica da cultura. Embora constantemente se mencione o fato de ser moldada segundo ideais lusos, em particular de quintas do Norte de Portugal, a Chácara do Barão do Serro não deve ser considerada como um transplante exógeno. Ela é, sim, no seu conservativismo, presa a uma concepção do mundo enraizada na tradição do pensamento religioso, harmonizando-se com aquela que, décadas antes, orientou a vida profundamente religiosa do Serro e que definiu, ainda que de forma não-dirigida, a sua imagem presepial. É sob esta perspectiva que se encontre o caminho para a apreciação adequada e mais profunda do "gótico" nas formas das janelas e portas da Chácara do Barão do Serro.
Sob o aspecto dos estudos culturais, a Chácara do Barão do Serro adquire particular interesse para análises relativas à imigração e às expressões culturais e artísticas no processo de transformação de identidades de imigrantes no Brasil, no caso portugueses. Como estudado, por exemplo, com relação ao Palácio do Catete, comerciantes portugueses imigrados, que alcançaram grandes bens no Brasil do século XIX, procuraram, pelo que tudo indica, realizar modêlos de bem-estar pátrios a serviço da auto-afirmação pessoal e social, atendo-se e reproduzindo concepções altamente conservadoras. José Joaquim Ferreira Rabello, comerciante de diamantes e coronel da Guarda Nacional, barão por decreto de 19 de julho de 1879, pai de vários filhos (Sebastião José Ferreira Rabello, Bernardo Ferreira Rabello, Maria Luiza Ferreira Rabello, José Joaquim Ferreira Rabello), parece encarnar a pessoa do conservador no sentido antes sócio-econômico do que ideal do termo: de membro do partido conservador, ao qual pertenceu inicialmente, passou a liberal, possivelmente por melhor representar os seus interesses econômicos, terminando por ser republicano. Uma evolução apenas aparentemente singular - por ser titulado -, mas portadora de uma lógica do vir-a-ser republicano, de uma orientação política de "direita" que necessitaria ser estudada politologicamente em cooperação com os estudos culturais, ou seja, no contexto das circunstâncias imigratórias e de processos de transformação de identidades.
Os debates deverão ter prosseguimento.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).