Doc. N° 2212
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
107 - 2007/3
Tópicos Multilaterais Suíça-Brasil
"Saudades do Brasil" no contexto da moderna música européia dos anos 20 80 anos da primeira apresentação de "Saudades do Brasil" na Suíça
Dornach. Trabalhos da A.B.E. 2006/7
A.A.Bispo
Dando continuidade a seus trabalhos relacionados com a Antroposofia sob a perspectiva dos estudos culturais euro-brasileiros (veja N° 96 deste órgão), a A.B.E. e o I.S.M.P.S.desenvolveram estudos sobre a presença do Brasil em eventos das primeiras décadas do movimento na Europa.
De 18 a 31 de agosto de 1926, realizou-se, no Goetheanum em Dornach, Suíça, uma Jornada Musical de alto significado para uma história da música em contextos globais do século XX. Esse evento, praticamente esquecido na literatura histórico-musical, merece ser recordado pela singularidade de sua fundamentação teórico-cultural, pela sua amplitude e pelo fato de ter considerado culturas musicais de diferentes regiões do mundo. Surge, assim, como de interesse também para a história da etnomusicologia, uma vez que já nos anos 20 concretizou intuitos de estudo, valorização e cultivo de música não-européia, de sua integração no repertório ocidental e nas discussões relativas à renovação músico-cultural do Ocidente.
Esses intuitos fundamentaram-se nos princípios teóricos de cunho científico-espiritual da Antroposofia. A iniciativa do evento foi de responsabilidade da seção de artes oratórias e musicais do Goetheanum. Também para os estudos euro-brasileiros a "musikalische Tagung" de 1926 surge como relevante. Membros da academia fundada em 1919 em Salzburg, à qual remonta a atual A.B.E., estiveram presentes no evento; outros, então atuando na Grécia, participaram de sua organização e acompanharam a sua realização, sendo informados do seu desenrolar. O Brasil esteve representado com a peça "Saudades do Brasil" (no programa: "Saudad de Brazil"), de Darius Milhaud. Foi executada pelo pianista Felix Petyrek, residente então em Abbazia, em concerto de título "Música moderna inglês, suíça, francesa e italiana". O concerto teve lugar numa sexta-feira, dia 27 de agosto, das 8 Às 10 horas da noite. Desse concerto participaram ainda o pianista Walther Rummel, Londres, e Anna K. Ernst, contralto. A "Saudades do Brasil", segundo o programa, deveria abrir a terceira parte do concerto. Entretanto, pelas anotações feitas por Felix Petyrek e enviada a membros da Academia, foi precedido pela "Anleitung zum Komponieren" do próprio pianista-compositor. À "Saudades do Brasil" seguiram-se Embrions desséchés, de Satie e os Kinderstücke de Casella. Das partes precedentes do programa constaram obras de Arnold Bax (II Sonate für Klavier - In einem Satz), Debussy (Reflets dans l'eau - Une Nuit en Grenade, Mouvement -, Toccata), Milhaud (Catalogue de Fleurs - Le Bégonia, Les Fritillaires, Les Jacinthes, Le Bachycome), Poulenc (Bestiere - Le Dromadaire, La Sauterelle, L'Ecrevisse, La Carpe) e Pizetti (Sonette de Petrarca San Basilio). O concerto encerrou um dia de trabalhos iniciado por uma leitura de conferências de Rudolf Steiner sobre música por Albert Steffen, por uma palestra, em francês, de R. Petit sobre a moderna música francesa; comunicações várias e discussões, assim como uma conferência do Dr. Thomastik com apresentação de instrumentos por êle desenvolvidos.
Esse singular e relevante concerto, que testemunha o interesse dos compositores do mundo de língua alemã pelo desenvolvimento musical em países dos quais haviam estado separados no passado então ainda recente da Primeira Guerra, somente pode ser avaliado, no seu pleno significado concepcional no contexto geral do evento. A abertura da Jornada deu-se numa quarta-feira, dia 18 de agosto, às 10 horas da manhã, com uma recepção dos participantes na Sala Sul do Goetheanum. Após as palavras de saudação, J. Stuten proferiu uma palestra introdutória. À tarde, procedeu-se a uma leitura do curso tom-eurítmico de R. Steiner. À tarde e à noite, realizaram-se dois concertos. O primeiro, de Anna K. Ernst, contralto, com a participação de Waldtraut Schoepflin, soprano, Bruno Korell, tenor, Helene Bosshart, violino, Heinrich Eckinger, oboe d'amore, e Louis Locher, piano, constou de obras de Palestrina, Caldara, Schütz, Haendel e J.S.Bach. O segundo, do pianista Walther Rummel, Londres, de obras de J.S.Bach e Beethoven. O segundo dia da jornada, dia 19 de agosto, foi aberto por uma recitação da Sra. Dr. Steiner, que leu os Hinos à Noite, de Novalis. À tarde, deu-se prosseguimento à leitura do curso tom-rítmico de R. Steiner. Seguiu-se um concerto de Bruno Korell, tenor heróico da Ópera de Danzig, com a participação de Adolph Schoepflin, baixo da mesma ópera, acompanhados ao piano por Ralph Kux. O programa constou, na primeira parte, de obras de Beethoven (Die Himmel rühmen des Ewigen Ehre) e de compositores próximos ao movimento antroposófico, tais como Erwin Dressel (Ich habe dir mein Herz empor, poesia de Christian Morgenstern), e Jan Stuten (Frühe, de Eichendorff). A segunda parte foi dedicada exclusivamente a R. Wagner (trechos do Parsifal, de Lohengrin e de Tannhäuser). À noite, houve um concerto do pianista Hermann Klug, da Basiléia, acompanhado por Walther Rummel. Foram executadas obras de Beethoven, Chopin e Bruckner. No dia 20 de agosto, a jornada teve início com uma leitura de conferências de R. Steiner sobre música por Albert Steffen. Seguiu-se um concerto de música de câmara de Walter Caspar, de Frankfurt a.M., acompanhado por Felix Petyrek e Walther Rummel, com obras de Bach e Mozart. Após mais uma sessão de leitura do curso tom-eurítmico de R. Steiner, e uma conferência do Dr. E. Schwebsch sobre a "Linguagem das formas musicais", houve mais uma apresentação do baixo Adolph Schoepflin e de Waldtraut Schoepflin, soprano, acompanhados ao piano por Anna Stockmeyer. Ao lado de obras de Mozart, Wagner, Moussorgski, Alabieff e Liszt, executaram-se composições de autores próximos à Antroposofia, tais como F. Klose (dois cantos de 'Der Sonne Geist') e Paul Baumann (do Albert Steffen's Wegzehrung). O sábado, dia 21 de agosto, foi dedicado exclusivamente a conferências. Além de dar-se prosseguimento às leituras de textos de R. Steiner sobre música, teve-se uma palestra de Valborg Werbeck-Svärdström sobre a revelação da voz, e uma aula do Prof. E. Lustgarten, de Viena, sobre aspectos da História Espiritual da Música (Geistesgeschichte der Musik). O dia foi encerrado com a representação de Mistérios. No domingo, dia 22, após aulas matinais e uma hora de euritmia à tarde, realizou-se um concerto de Valborg Werbeck-Svärdstrom, soprano de Hamburgo, acompanhada por Irmgard Peters. Executou, em sueco e norueguês, obras de Alfén, Alnaes, Dammström, Grieg, Stenhammer, em alemão, oras de R. Strauss, Schubert e H. Wolf e, em dinamarquês, obras de Kjerulf e Lange-Müller. A segunda-feira, após a leitura de obras de R. Steiner e mais uma conferência sobre a revelação da voz, de Werbeck-Svärdström, realizou-se um concerto de Maria Simons, contralto, de Frankfurt a.M., com a participação de Walter Caspar, E. Lustgarten, H. Bosshard, O. Grass, C. Friedenreich, J. Stuten e W. Mirandolle. O programa constou de obras de Brahms, C. Franck, H. Wolf, Bruckner, Reger, Mahler, além de compositor próximos ao movimento, como L. von Kienitz (Das Tor) e Othmar Schoeck. Na terça-feira, dia 24, após as leituras de textos de Steiner, ouviu-se palestra do Dr. G. Wachsmuth sobre o tema "Da música e sua influência nos homens". Após mais leituras do curso eurítmico de Steiner, houve uma palestra, em inglês, da Sra. Schlesinger, sobre "O significado dos modos planetários e dos modos gregos para a música do futuro imediato". À noite, realizou-se concerto de composições antigas e modernas baseadas nos modos gregos. Dele participaram.as senhoras Werbek-Svärdström, I. Dodds, Kathleen Schlesinger (Kithara), Elsie Hamilton, além dos músicos C. Friedenreich e Heinrich Eckinger. Nesse programa, tentou-se a reconstrução de um fragmento da primeira ode de Pindar e da Ode a Kronos de Mesomedes, apresentou-se um Hino ao Sol de Kathleen Schlesinger, Uma "Vers La Lumière", um Trio para oboé, viola e piano na "escala do sol" e o "mime" Agave, de Elsie Hamilton, além de cantos populares de diferentes países com acompanhamento de harpa celta. O programa terminou com uma composição de Elsie Hamilton sobre textos do Pforte der Einweihung, um Mistério de Rudolf Steiner (Der Sonne Licht durchleuchtet; In dem Felsentempel; Geistesstimme; O Mensch erkenne dich) A quarta-feira, dia 25, após a leitura diária de textos de R. Steiner sobre a música, o compositor Alois Haba proferiu uma conferência sobre música de quarto de tom. À tarde, após a leitura do curso eurítmico de R. Steiner, Felix Petyrek proferiu uma palestra sobre a moderna música russa. Sobre o mesmo tema, Petyrek realizou, à noite, juntamente com a contralto A. K. Ernst, recital com obras de Moussorgsky, Scriabine, Stravinsky, Prokofjeff e Szymanowsky. A quinta-feira, dia 26, foi marcada pela conferência de H. Zagwyn sobre o tema "Oriente e Ocidente na música", seguindo à leitura de textos de R. Steiner e precedendo ao curso eurítmico. A conferência da tarde, proferida pelo Prof. Beckh, tratou da "Essência espiritual dos modos". À noite, então, houve o esperado concerto-conferência sobre a música da Índia, executado em instrumentos originais pelos músicos hindús Maheboob-Khan e Musheraff-Khan. Entre as várias peças executadas, apóa a conferência, em inglês de Maheboob-Khan ouviram-se exemplos clássicos do Norte e do Sul da Índia, além de cantos a Brahma, o Criador, e, singularmente, um canto popular persa e uma peça moderna dedicada à alma do santo, ou canto ao gurú. O sábado, dia 28 de agosto, foi dedicado a uma visita ao edifício, precedida por uma conferência de W. Blume sobre o tema "música tonal e atonal", ilustrada pela execução da Suite op. 26 de Schönberg por F. Petyrek. À tarde, a Sra. Dr. Steiner recitou trechos da Pandora de Goethe, à noite, F. Petyrek e a contralto Martha Fuchs, de Stuttgart, executaram obras de Schönberg, Krenek, Hauer, Hindemith, A. Haba e de H. Reutter (entre outras, um canto de amor chinês, de Sao-Han). Os últimos dias do evento foram dedicados a obras de compositores antroposóficos. No s domingo, dia 29 de agosto, após as leituras quotidianas de obras de Steiner, da contemplação do modêlo do primeiro Goetheanum sob o ponto de vista musical e da hora de euritmia, escutaram-se peças de P. Bauzmann, Friedrich Doldinger, R. Kux e H. Zagwyn. Na segunda-feira, dia 30 de agosto, obras de E. Lustgarten e L. van der Pals. No último dia, obras de Wilhelm Lewerenz, Hermann Vetter, Walther Rummel, Raymond Petit e Felix Petyrek, encerrando-se com um mistério. O fato de Felix Petyrek ter encerrado o programa com várias de suas composições (Choral-Variationen und Sonatine, fugen, Konzert-Etüden nach Cramer) testemunha o papel significante que desempenhou no evento. Foi êle também que executou as Saudades do Brasil de Darius Milhaud e que mantinha contactos estreitos com o círculo vinculado com o Brasil. O programa da Musikalische Tagung de Dornach mostra assim, o contexto cultural e de pensamento no qual se processou a difusão das "Saudades do Brasil" de Milhaud na Europa Central. Ao mesmo tempo, serve como sinal para que essa obra, até hoje freqüentemente executada, seja compreendida de forma menos superficial. Sem a consideração da orientação, ou pelo menos das conotações "espirituais-científicas" da obra, ela perde muito do seu significado cultural mais profundo no contexto das relações euro-brasileiras.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).