Doc. N° 2200
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
107 - 2007/3
Tópicos Multilaterais Portugal-Brasil
Luso-Brasileirismo, ítalo-brasileiros e mecanismos performativos: representações teatrais e revistas: Nicolino Milano
Trabalhos do I.S.M.P.S. 100 anos do Fado Liró
A.A.Bispo
Os estudos culturais no âmbito dos relações entre Portugal e o Brasil concentram-se, em geral, no tratamento histórico do período anterior à Independência e na presença de expressões populares tradicionais portuguesas introduzidas no contexto da colonização do país.
A presença de brasileiros em Portugal após essa data e sobretudo a ação de portugueses e de imigrantes portugueses no Brasil nos séculos XIX e XX não têm recebido a devida atenção. Entretanto, foram essas correntes imigratórias mais recentes que constituiram ou marcaram um luso-brasileirismo numa sociedade na qual os descendentes dos antigos colonizadores já se encontravam integrados.
Os portugueses que chegaram a partir de meados do século XIX traziam consigo elementos culturais de outras épocas e muitas vezes desconheciam e nem reconheciam como de origem lusa as expressões culturais tradicionais implantadas no Brasil pelos seus antepassados.
Com as novas orientações teóricas dos estudos culturais na atualidade, com uma aguçada sensibilidade por questões de transformação de identidades, de imigração e de relações interculturais, reconhece-se cada vez mais o significado de estudos diferenciados do luso-brasilianismo e de suas relações com outros grupos de imigrantes e com a sociedade brasileira. Os estudos luso-brasileiros surgem como uma área especial no âmbito dos estudos das relações Portugal-Brasil/Brasil-Portugal.
Um dos aspectos do luso-brasileirismo que vêm sendo mais estudados diz respeito à ação de artistas portugueses no Brasil, à prática musical no âmbito da colonia lusa e do meio luso-brasileiro, as relações com outros imigrantes e a influência exercida por esses círculos na vida cultural da sociedade brasileira e na história cultural e das correntes estéticas no país.
Procura-se, nesses estudos, entre outros aspectos, analisar os complexos processos de manutenção e transformação de identidades dos luso-brasileiros, em parte mais difíceis de serem examinados do que os de outros grupos populacionais com idioma e passado distintos da sociedade brasileira, compositor de obras orquestrais e de câmara, entre elas um Trio,
Dando continuidade a esses estudos, o Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (I.S.M.P.S. e.V.) desenvolveu uma série de trabalhos voltados à questões relativas ao teatro e música, em particular à comédia e à revista teatral de fins do século XIX e início do XX.
Procurou-se discutir o papel exercido por portugueses e luso-brasileiros na história do teatro e do teatro musicado no Brasil, os seus elos com os gêneros correspondentes em Portugal, os impulsos decorrentes de obras de costumes populares na determinação e propagação de tipos humanos e características nacionais na música e na dança.
Do ponto de vista teórico, considerando o papel já várias vezes estudado de mecanismos performativos do período colonial através da participação em dramatizações, nas quais a representação do Outro como grotesco constituiu principal agente transformador, questionou-se se o teatro musicado de meados do século XIX não teria exercido uma similar função no processo integrativo e ao mesmo tempo diferenciador de luso-brasileiros.
Indagou-se, também, se a popularização de tipos grotescos e modêlos de comportamento característicos, que teve influência relevante no carnaval e na configuração de uma música popular - e erudita - de conotação brasileira não representaria a reprodução de mecanismos identificatórios do passado sob novas circunstâncias históricas e em sociedade secularizada.
Nicolino Milano
Um dos nomes mais prestigiados na história mais das relações luso-brasileiras do início do século XX foi singularmente um compositor de ascendência italiana, Nicolino Milano (1876-1962). Como professor de prática orquestral do Instituto Nacional de Música, compositor de obras orquestrais e de câmara (por ex. Trio), o seu significado foi reconhecido na época no Brasil e no Exterior, não apenas em Portugal (por ex. em 1928 pela França e pela Bélgica).
Esse compositor, já considerado em outras ocasiões pelo ISMPS, foi agora reestudado sob o aspecto dos processos de formação de identidade no âmbito das interações de grupos de imigrantes de diferentes procedências.
Um dos pontos tratados disse respeito aos pressupostos histórico-culturais de sua formação, uma vez que nasceu na cidade de Lorena, significativo centro de cultivo musical do Vale do Paraíba do século XIX, região que experimentou, na segunda metade daquele século um período de florescimento musical como resultado de apogeu econômico de passado então recente. Em 1887, Nicolino Milano deslocou-se para o Rio de Janeiro, ali recebendo formação e prática num dos principais centros da vida musical de europeus no Rio de Janeiro, o Clube Beethoven,
Esses dois contextos sócio-culturais - o do Vale do Paraíba e o do Rio de Janeiro foram analisados sob o aspecto do papel exercido por europeus imigrados.
Papel da música de salão
A música de salão constituiu uma ponte entre determinados círculos da sociedade brasileira, de interesses culturais e de orientação européia, e daqueles de estrangeiros e seus descendentes com aspirações de ascenção social e integração. Nesse sentido das reflexões, pareceu compreensível e significativo o fato de Nicolino Milano ter-se dedicado à composição de peças do gênero, tanto de formas européias popularizadas no Brasil - polcas (O Arame), schottische (Elegante) (São Cristovão), romances (Último sono) - como de cunho mais característico e popular, tais como tangos brasileiros (Abacaxi, Lulu), maxixes (Maxixe feniano) e uma Zamacueca.
Como exemplo, considerou-se a gavotte L'Amitié, para piano, publicada por Buschmann & Guimarães, Rio de Janeiro, e estampada por C. G. Röder, em Leipzig (Nr. 3591). Trata-se de uma peça notável pela sua singeleza, de motivos ingênuos criados por acordes disjuntos, fraseado simples e de pouco amplitude, graciosamente diferenciados por contrastes de dinâmica e tempo, de desenhos melódicos conduzidos em uníssono e acordes. Particular menção deve ser dada à ocorrência de uma parte com a linha melódica no baixo.
Partindo-se da ilustração da partitura, de clara natureza sugestiva, salientou-se que o termo Amizade na denominação da peça se refere aos elos entre o cão e as crianças. Ressaltou-se aqui o significado para a cultura popular das relações entre a representação visual de gravuras sentimentais e a música no decorrer do século XIX. Discutiu-se se a gavota, como forma de dança estilizada, singularmente não rara na literatura pianística do Brasil, sobretudo de principiantes, não teria a sua recepção tardia explicada pelo fato de ter-se mantido sobretudo no repertório infantil. Questionou-se se aqui não estaria vigente um mecanismo conhecido dos estudos da cultura popular, ou seja, o da sobrevivência de expressões culturais em camadas mais simples da população ou em costumes infantís. Ter-se-ia aqui um fenômeno sentimental-nostálgico de "pequenização", paralelo àqueles de "provincialização", ambos com conotações de terna boa vontade mas em espírito de superioridade com inferiores em idade ou em posição social.
Meio musical italiano no Rio de Janeiro
Nicolino e seu irmão, Humberto Milano, se aperfeiçoaram no Rio de Janeiro com o destacado violinista italiano Vincenzo Cernicchiaro (1858-1928), músico de extraordinário conhecimento da vida musical brasileira e autor da notável e pioneira obra Storia della Musica nel Brasile (Milão, 1926). Realizou estudos de matérias teóricas e composição com Miguel Cardoso (1850-1912), músico proveniente de Serro, Minas Gerais, que, de 1877 a 1880, havia estudado em Milão, entre outros com Michele Saladino (1835-1912) e Amintore Galli (1845-1919).
Meio cosmopolita teatral e círculos luso-brasileiros
O papel dos estrangeiros na história do teatro do Brasil pela passagem dos séculos tem sido mencionado em estudos da música popular. A experiência de Nicolino Milano nessa área parece ter-se iniciado com a sua atividade como primeiro violino na orquestra da companhia de operetas de Musella. No teatro de revista, atuou a partir dos anos noventa como regente na direção de uma peça de sua autoria: Pontos nos I. ( 1896?), assim como em outras produções (Conselheiro (Valentim Magalhaes) e Mil Contos.
Arthur Azevedo. Comédia de costumes brasileiros e "apoteose da vida rural"
No Rio de Janeiro, compôs a música de A Capital Federal, de Arthur Azevedo, o grande nome do teatro brasileiro da época, estreitamente vinculado com a comunidade luso-brasileira. Grande parte da música desta peça foi composta por Nicolino Milano, à exceção de algumas coplas (às págs. 23 e 91), de um coro (à pág. 98), de um pequeno dueto (à pág. 73) e de um quarteto (à pág. 9 escritos por Assis Pacheco, e de uma valsa (à pág. 27) de Luís Moreira.
Essa comédia-opereta de costumes brasileiros em 3 atos e 12 quadros foi levada à cena no Recreio Dramático, em 1897. As principais peças da revista, publicadas pela casa Buschmann, Guimarães & Irmão, do Rio de Janeiro, foram: Valsa de Lola, Lundú bahiano; Habanera. Schottisch; Tango do Lourenço do 3° ato; Mazurka, Polka; Quadrilha. Popular se tornou a valsa de L. Moreira, cantada pela então festejada atriz Ruiz Pepa.
Particular atenção merece o Tango do Lourenço, do terceiro ato. Esse exemplo de tango brasileiro reveste-se de especial significado por estar inserido no contexto da revista, possibilitando análises de sentido e de conotações. Foi, assim examinado sob o aspecto do grotesco, fenômeno freqüentemente observado em processos performativos de identidades e, nesse contexto, no seu significado para os estudos dos tangos brasileiros e de outras formas que se caracterizaram como de conotação brasileira.
Ai! que geito pr'o theatro Que vocação Eu fazia o diabo a quatro! N'um dramalhão! Mas as redeas e ao chicote jungido s'tou! são cocheiro de cocote Nada mais sou!
Refrão: Cumprir o nosso destino! Nem eu quiz nem você quiz! Fui actor desde menino E vocé foi sempre actriz!
Quando eu era mais mocinho Posso affiançar Fiz furor n'um theatrinho Particular! Talvez outro João Caetano Se achasse em mim! Mas, o fado deshumano Não quiz assim!
Gavroche e o Maxixe da Guarda Velha
Considerou-se, a seguir, o Maxixe da Guarda Velha do primeiro ato de Gavroche, revista de 1898, também de Arthur Azevedo. Retomou-se, aqui, sob outras perspectivas, reflexões encetadas já em 1979, em evento da Sociedade Nova Difusão, quando, em São Paulo, se tratou da questão dos termos "velha" e "nova guarda" na música popular.
A partitura foi publicada por Vieira Machado, Rio de Janeiro (Nr. 806), e difundida em São Paulo pela Casa Levy. O Maxixe da Guarda Velha foi editado à parte, tais como outras peças que se haviam mais popularizado da Revista, como o Tango do Malandro, a Mazurka da Marca Olho, a Valsa da Revista e a Valsa do Centro Artístico.
A música para essa revista, estreada no Teatro Recreio a 4 de março de 1899, com artistas da Companhia Silva Pinto, foi escrita em anos nos quais Nicolino Milano estava intensamente envolvido com o teatro de revista. Nessa época, produziu várias revistas, entre elas a Roda da Fortuna (Demétrio Toledo e Eduardo Vitorino), e Os caprichos do diabo. Realizou também a transcrição do lundu baiano O Mugunzá, de F. Carvalho, da revista Tim Tim Por Tim Tim, de Sousa Bastos, representado no Teatro Apolo, com a participação dos artistas Pepa Ruiz e Leonor Rivero.
Do ponto de vista histórico-cultural e de costumes, o texto de Arthur Azevedo é de particular interesse por documentar um fenômeno da vida social urbana de algumas grandes cidades brasileiras de fins do século XIX, ou seja, o das cervejarias em jardins públicos, onde já se consumia "chopes". Assim, o maxixe é cantado pelo dono do bar:
Eu não sou d'espalhafato Eu não sou d'imposturia Não me falta freguezia! e o meu Chope é o mais barato Se vocês me olham d'esguelha Esse olhar não me acovarda
Refrão: No Jardim da Guarda Velha Tenho a minha Velha Guarda (bis pelo Coro)
Toda a noite em quantidade Se acham lá velhos e moços! Que vão abrindo á vontade Com punhados de tremoços E quando o freguez se entope Taes tremoços a ingulir Pede sempre mais um Chope Para se desentupir!
O maxixe de Nicolino Milano pode ser visto não apenas como um exemplo significativo desse gênero musical em fins do século XIX como, ao mesmo tempo, agente de sua ainda maior popularização através da revista. Sobretudo evidencia-se uma correlação entre o espírito do texto e o caráter do gênero musical, unindo a leve crítica satírica de costumes urbanos com o gozar participante, mas à distância da comicidade das situações. A linha melódica do refrão, em terças, formada por células sincopadas, em ducto descendente, interrompido pela entrada do Coro, que leva a linha melódica novamente para o alto, em acordes, denota a simplicidade quase que primitiva, mas cheia de efeitos.
Sucessos em Portugal e repercussão no Brasil: Fado Liró
O nome de Nicolino Milano tornou-se conhecido em Portugal mesmo antes de sua ida. Sousa Bastos, na sua Carteira do Artista, publicada em Lisboa, em 1898, testemunhava que Nicolino Milano era, na época, um dos mais destacados músicos do Rio de Janeiro.
Do Rio Grande do Norte, para onde se havia transferido como diretor da escola de música, Nicolino Milano viajou para Lisboa em 1906, atuando como regente do Teatro da Avenida, quando da representação da revista A.B.C., de Acácio de Paiva e Ernesto Rodrigues.
Uma das peças musicais dessa revista tornar-se ia o grande sucesso popular de Nicolino Milano: o Fado Liró. Em 1909, a companhia do Teatro da Avenida trouxe a A.B.C. para o Brasil, estreando no Teatro Apolo do Rio de Janeiro. O Fado Liró, que "levava a palma ao próprio choro", alcançou também no Brasil considerável sucesso, popularizando-se então, com rítmo de marcha, no carnaval de 1911:
Guitarra, guitarra geme/que meu peito todo freme/Quando choras pianinho/Não há fado com mais alma/Que o liró, pois leva a palma/Até ao próprio choradinho/As condessas e duquesas/Ao contá-lo pedem meças/Sem receio de perder/Nas areias de Cascais/Tem meu fado encantos tais/Que é da gente endoidecer/Oh! Oh! Oh! Oh! etc.
Entre os músicos brasileiros que atuaram em Portugal, Nicolino Milano foi daqueles que maior prestígio obtiveram, sendo nomeado para a Real Câmara. A simpatia e o apoio que recebeu do rei D. Carlos foram relevantes para a sua carreira, também no Brasil, garantindo-lhe posição de particular respeito na comunidade luso-brasileira. Chegou a compor em Portugal, obras de cunho patriótico, como a Marcha solene dos Centenários de Portugal e religioso, comoa Canção de Maria, obra que se popularizou e que ainda seria executada em 1939 em um dos concertos de carrilhoes de Mafra.
Os trabalhos terão continuidade.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).