Doc. N° 2197
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
107 - 2007/3
Tópicos multilaterais Polonia-Brasil
Contextos na história política intereuropéia e perspectivas nos estudos interculturais Reflexões sobre I. Paderewski
Stettin. Trabalhos da A.B.E. 2007
Stettin. Trabalhos da A.B.E. 2007. Fotos de A.A.Bispo No âmbito dos estudos interculturais pomerano-brasileiros da A.B.E., preparados por viagem de estudos a cidades de imigração pomerana no Brasil (Santa Maria do Jetibá, ES), em janeiro de 2007, e prosseguidos em viagem de estudos pela Pomerânea Ocidental, em maio de 2007, não poderia faltar uma visita à capital dessa antiga província prussiana, Stettin, hoje cidade pertencente à Polonia.
Com essa visita, a A.B.E. retomou também os seus estudos culturais das relações Polonia-Brasil, em desenvolvimento já há várias décadas. Como tema das reflexões escolheu-se a questão das perspectivas nos estudos interculturais, em particular euro-brasileiros, em função da complexidade da história política de regiões e cidades européias, sobretudo de zonas limítrofes. e que pertenceram a diferentes países no decorrer dos tempos. A história cultural dessas regiões não pode ser separada da história política, uma vez que esta determinou mudanças sociais e culturais, até mesmo de idiomas oficiais, de círculos dominantes do pensamento e das artes, inclusive com transferências de grupos populacionais, marcando a história das instituições científicas, religiosas e culturais e demonstrando a mutabilidade histórica de identidades e imagens.
Para os estudos culturais no âmbito das relações internacionais e para aqueles estudos euro-brasileiros de processos culturais recíprocos colocam-se aqui problemas sensíveis de diferenciação das análises, perspectivação dos enfoques e de contínua reflexão sobre posicionamentos conscientes ou inconscientes do observador. Levanta-se a questão, aqui, das possibilidades que se abrem para a pesquisa a partir da unidade européia, superando enfoques bi-nacionais nos estudos culturais entre a Europa e o Brasil, tal como preconizado pela A.B.E..
No caso de Stettin, as dificuldades que se impõem a estudos dessa natureza surgem com toda a evidência, fazendo dessa cidade um caso exemplar para reflexões. Dentro de um ciclo de estudos tal como aquele no qual a visita se realizou, partindo inicialmente da imigração pomerana no Brasil, o problema do ponto de vista e da posição do estudioso é particularmente sensível, uma vez que tende a assumir a visão pomerana-alemã de refugiados, exilados e emigrados. As questões culturais que se colocam em antigas regiões alemãs agora pertencentes à Polonia já foram tratadas por ocasião do ciclo de estudos da A.B.E. na Silésia, em 2002. Agora, em Stettin, procurou-se colocar a própria questão das dificuldades de enfoque e a necessidade de diferenciações no centro das atenções, concentrando-se o interesse no significado transcendente que assume a cultura, em particular a música, para a Polonia e sua história política e diplomática. Escolheu-se, para isso, Ignaz Paderewski, músico, diplomata e político, vulto de extraordinário significado para um história cultural em contextos internacionais e rememorado em Stettin na denominação de uma de suas mais relevantes instituições culturais, a Academia Paderewski.
Stettin
Situada a 65 km ao sul do Mar Báltico, cortada pelo rio Oder, navegável, que marca, com os seus diversos braços, a paisagem e a imagem da região, Stettin se localiza em posição geográfica estratégica que determinou a sua história através dos séculos.
Já no século X havia ali um castelo com uma povoação de mercadores. Com a decadência da cidade de Wollin, essa povoação transformou-se em importante centro de comércio do curso inferior do Oder. Ao lado do povoado eslavo, desenvolveu-se uma comunidade de comerciantes alemães. Esta, a partir de 1243, alcançou direitos de cidade segundo a jurisdição de Magdeburg. O intercâmbio comercial foi marcado pela exportação de cereais e importação de peixes do Norte e de sal, este proveniente da cidade alemã de Lüneburg.
Como principal cidade da Pomerânea, Stettin tornou-se residência estável dos duques pomeranos; em 1503, Bogislaw X transformou o castelo em representativo palácio. Em 1523, introduziu-se a Reforma protestante.
No decorrer do século XVI, a cidade sofreu com a decadência do intercâmbio comercial da esfera do mar Báltico, um processo que pode ser estudado, nas suas complexas relações intereuropéias, paralelamente ao deslocamento de centros de intercâmbio para o Ocidente europeu como conseqüência das viagens dos Descobrimentos e das relações ultramarinas de Portugal e Espanha.
Entre 1648 e 1720, pertenceu à Suécia. Posteriormente, passou à Prússia. Como província prussiana, com o fomento da navegação do Oder e trabalhos portuários na sua embocadura, Stettin conheceu um período de grande desenvolvimento. Nessa época, vários edifícios monumentais surgiram, abrigando bibliotecas, museus e outras instituições que fizeram de Stettin um centro cultural de significado europeu.
Após a Segunda Grande Guerra, a cidade, em grande parte destruída, passou à Polonia. Como principal porto do país, transformou-se em cidade industrial.
Paderewski: cultura musical e relações internacionais
Ignacy Jan Paderewski nasceu em 1860 em Kurylówka (Podolia, Polonia), e faleceu em 1941, em Nova Iorque. De família de posses e de tradições culturais - - a sua mãe era filha de um professor da Universidade de Wilna -, Paderewski recebeu uma sólida formação humanista.
Cursou o Instituto de Música de Varsóvia, entre 1872 e 1878, estudando com R. Strobl, J. Janota e P. Schlözer. Realizou uma tournée de concertos por várias cidades russas. Após 1878, tornou-se professor de piano do Conservatório.
Já tendo recebido uma formação musical marcada pela influência alemã no Conservatório, dirigiu-se em 1879 a Berlim, onde estudou formas polifônicas com F. Kiel e instrumentação com H. Urban. Em 1884, dirigiu-se a Viena, aperfeiçoando-se em piano com T. Leszetycki. Em 1885 assumiu a cátedra de piano e composição no conservatório de Straßburg. O seu concerto de debutante, em Viena, deu-se em 1887. Apesar dessas íntimas relações de formação e de profissão com o mundo de língua alemã, Paderewski tornar-se-ia, durante e após a Primeira Guerra Mundial, um dos grandes defensores dos interesses poloneses.
A vida, a obra e a ação de Paderewski não pode ser entendida sem a consideração de suas múltiplas viagens dentro da Europa e em outros continentes, alcançando um renome internacional como virtuose na tradição de Liszt. Em 1888 apresentou-se pela primeira vez em Paris, em 1899 fixou residência permanente em Riond-Bosson, na Suíça, em 1890 apresentou-se em Londres e, em 1891, realizou uma série de concertos em Nova Iorque. O seu renome como compositor na Alemanha solidificou-se com o sucesso alcançado pela sua ópera Manru, em 1901, em Dresden. A partir do início do século, as suas viagens se ampliaram: apresentou-se em 1904 na Austrália, em 1911 no Brasil e, em 1912 na África.
No Brasil foi altamente considerado. O historiador e músico Vincenzo Cernicchiaro (1858-1928), na sua Storia della Musica nel Brasile (Milão, 1926), tratando dos pianistas célebres que se apresentaram no Rio de Janeiro no período de 1890 a 1922, demonstra o extraordinário apreço do pianista-compositor no país:
"In seguito ci apparve un altro celebre pianista, il cui nome aveva già fatto rumore in tutti gli ambienti artistici europei e americani: Ignazio Paderewski. Il suo valore di artista e di virtuoso straordinario era stato unanimemente vantato fin dalla penultima decade del secolo scorso. Infatti, come Liszt, come Rubinstein, Paderewski attinse una rinomanza che a pochi artisti di ottimo merito fu concesso conseguire.
Quando il pubblico di Rio de Janeiro, ebbe a salutarlo nel primo suo concerto al Municipale (agosto 1911) egli possedeva ancora quella tecnica meravigliosa, con tutti i segreti degli effetti, la stessa disinvoltura per superare gli ardui problemi meccanici, nonchè la stessa dolcezza e morbidezza del tocco: doti artistiche ampiamente personali e sufficenti a produrre le vive sensazione delle interpretazioni superbe delle opere di Chopin, massime quelle di Liszt, nelle quali riportò i suoi principali trionfi, nei momenti più fulgidi della sua carriera." (pág. 448)
Durante a Primeira Guerra Mundial, Paderewski, abandonando as suas atividades como concertista, dedica-se à propaganda para a reedificação de uma Polonia independente. Viajou pelos EUA, proferindo centenas de palestras e discutindo com líderes políticos.
A sua amizade pessoal com o Presidente Wilson foi de grande influência na formulação do capítulo 13 de sua mensagem ao Congresso, de 1917, sobre a necessidade da reedificação de um estado polonês independente. Entre 1917 e 1919, Paderewski foi membro da Comissão Nacional Polonesa em Paris. Em 1919, tornou-se presidente do Conselho dos Ministros e Ministro das Relações Exteriores da Polonia. Foi êle que assinou, pela Polonia, o tratado de Versalhes.
Govêrno da Polonia, presidido por Paderewsky (em pè)
Paderewski e a situação da Polonia após a Primeira Guerra
A essa atuação política de extraordinário significado de Paderewski deu-se particular atenção nos estudos efetuados. Com base sobretudo em textos, notícias e documentos publicados por órgãos franceses procurou-se considerar a imagem de Paderewski no mundo dos aliados. Nessa revista, de vasta difusão, publicou-se o retrato de Paderewski como presidente do Conselho de Ministros da Polonia, ao lado dos seus principais correligionários: M. Lukasiewicz (Instrução pública). Dr. Wroblewki (Secretário de Estado para as relações exteriores), M. Wojciechowski (Interior), M. Minkievicz (Agricultura), Pruchnik (Trabalhos Públicos), M. Supinski (Justiça), Eberhadt (Comunicações), Hacia (Comércio e Indústria), Englich (Finanças) e Janicki (Agricultura).
Um dos principais problemas que diziam então respeito a Stettin era o das animosidades entre a Polonia e a Alemanha e o do transporte, por meio de estradas de ferro e pelo mar, das divisões polonesas que se encontravam na França. O armistício com a Alemanha, de 11 de novembro de 1918, reconhecia às tropas aliadas o direito de desembarção no porto de Danzig para casos de necessárias intervenções para a manutenção ou o restabelecimento da ordem na fronteira oriental. Uma convenção posterior fixou uma zona da qual os alemães deveriam retirar as suas tropas para evitar conflitos com os poloneses até que a Conferência da Paz tivesse determinado os limites entre ambos os países. Apesar dessas precauções, as hostilidades continuavam. Por essa razão, a Entente decidira enviar as divisões polonesas ainda estacionadas na França, solicitando ao govêrno alemão permissão de passagem através do país. A Alemanha recusou, alegando que as tropas polonesas não poderia ser assimiladas às tropas aliadas. Para a solução do litígio, realizaram-se conferências em Spa, na Bélgica. Estipulou-se que as tropas que se dirigiam à Danzig iriam por via férrea, por um lado passando pelas cidades de Coblença, Giessen, Kassel, Halle, Eilenburg, Cottbus, Lissa e Kalisch. e, por outro, por mar, através de Stettin e Königsberg.
Do ponto de vista histórico-cultural, a situação da Polonia após a guerra ficou testemunhada pelo texto de um correspondente da revista francesa L'Illustration, de 1919, de título "Las Belles Paques de La Pologne ressuscitée" (N° 3975, 10 Mai 1919, 505):
"Lors de mon premier séjour en Pologne, en février dernier, je trouvai un pays dont la population, heureuse d'être délivrée, n'osait pas encore manifester sa joie. On sentait partout, dans les villes et dans les campagnes, une anxiété poignante. Avant d'Avoir eu le temps de se reconstituer, d'unifier en un même Etat ses trois territoires et d'organiser une armée digne de ce nom, la Pologne, attaquée sur quatre fronts, au Nord, au Sud, à l'Est et à l'Ouest, n'allait-elle pas succombert?
Aujourd'hui les circonstances se sont fort heureusement améliorées. La Pologne, au début de sa réssurrection, est encore dans la période critique; (...) et pourtant la confiance est générale; l'espoir a succédé à l'angoisse, la Pologne revit (...)"
Conferência da Paz, com a participação de Paderewski (recorte mais claro, à esquerda)
Paderewski e Chopin: dimensões simbólicas da música polonesa
Após um período de repouso na sua fazenda na Califórnia, Paderewski reiniciou as suas viagens de concertos em 1922. Em 1935, assumiu com L. Bronarski e J. Turczynski a edição das obras de Chopin, posteriormente publicadas pela Sociedade F. Chopin, em Varsóvia. Em 1940, tornou-se Presidente do Govêrno de Exílio polonês; realizou a sua última viagem aos Estados Unidos, ali falecendo.
O significado de Paderewski no contexto das relações Polonia/Brasil já havia sido salientado durante seminário co-orientado pela A.B.E. e dedicado a Chopin sob a perspectiva músico-culturológica, da Universidade de Bonn, em 2004. Nessa ocasião, analisou-se a aula inaugural de Mário de Andrade dos cursos de História da Música do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, dedicada ao tema "Atualidade de Chopin", proferido na época trágica da Segunda Guerra Mundial:
"Mais uma vez, em nossos dias horrendos, a Polônia se vê reduzida a um destino de escravidão. Mas assim como hoje ela é um símbolo da escravidão que pesará definitivamente sobre nós todos, se tivermos a cobardia de nos deixarmos vencer: assim os prantos e a revolta de Chopin se univeersalizaram simbòlicamente num sentimento unânime e de todos, o amor da terra, a desgraça maldita que causam as opressões. Nisto reside a atualidade simbólica de Chopin. Nisto êle será sempre atual, pelo menos enquanto estalarem, na torturada sociedade humana, os gritos dos escravizados e o chicote do opressor" (In: O Baile das Quatro Artes, São Paulo: Martins, 1963, 137-165,165)
A.A.Bispo
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).