Doc. N° 2235
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
108 - 2007/4
Tópicos multilaterais Bélgica-Alemanha-Portugal-Brasil
Compreensão do mundo, a esfera celestial e o globo terrestre O universo dos Descobrimentos nos edifícios teórico-culturais
Pelos 500 anos da morte de Martin Behaim (ca. 1459 - 29 de julho de 1507)
Antuérpia. Trabalhos da A.B.E.
A.A.Bispo
Um dos complexos argumentativos centrais no debate relativo a uma "teoria histórico-genética da cultura", tal como proposta por Günter Dux (Historisch-genetische Theorie der Kultur. Instabile Welten. Zur prozessualen Logik im kulturellen Wandel. Weilerswist: Velbrück Wissenschaft, 2000), diz respeito à função paradigmática que a concepção de "machina mundi" teria exercido na mudança da lógica de compreensão do mundo na Era Moderna e no âmbito de um processo amplo de secularização.
Um exame mais cuidadoso dos argumentos empregados e, sobretudo, da visão do desenvolvimento histórico proposta e justificativa dessas asserções não pode ser efetuado sem levar em consideração perspectivas da História dos Descobrimentos. Esse fato, porém, não pode ser observado na argumentação da teoria citada.
É no âmbito dos estudos dos Descobrimentos que mais se tem atentado às relações entre o Conhecimento e as representações do mundo. Cita-se aqui, por exemplo, o fundamental estudo de Luis Filipe Barreto: "O Problema do Conhecimento na Sphaera de D. João de Castro", publicado inicialmente na Revista da Universidade de Coimbra, XXXIII (1985) (339-364) e reproduzido em Separata (N° 174) pelo Centro de Estudos de História e Cartografia Antigua, Instituto de Investigação Científica Tropical (Lisboa, 1985).
Não é sem significado que a esfera armilar tornou-se símbolo de extraordinário significado para o mundo português e para o universo cultural originado dos Descobrimentos.
A necessária inserção do debate nesse contexto histórico aproxima-o de perspectivações interculturais dos estudos do desenvolvimento das concepções do mundo. Essa mudança ou ampliação dos enfoques no tratamento do complexo de questões levantadas pelos aportes teórico-culturais surge até mesmo como uma exigência para uma melhor precisão das idéias e para eventuais correções. Reflexões neste sentido surgem como de particular atualidade para os estudos culturais em contextos internacionais, sobretudo para o mundo de língua portuguesa, pelo fato de se rememorar, no ano de 2007, os 500 anos da morte de Martin Behaim, o construtor do globo mais antigo que se conhece.
Martin Behaim
No dia 29 de julho de 1507 faleceu, em Lisboa, Martin Behaim, nascido em Nürenberg, no dia 6 de outubro de 1459. A "maçã do mundo" que construiu é a mais antiga das conhecidas representações da terra em forma esférica. Apresentada em 1492, ano do Descobrimento da América, ainda não representada na sua visão do mundo, encontra-se hoje no Museu Nacional Germânico em Nürenberg e vem sendo objeto de diferentes exames e estudos. Martin Behaim é um nome que une a história da ciência e dos conhecimentos da Alemanha, dos Países Baixos e de Portugal. Embora não sendo propriamente um cartógrafo, mas sim inicialmente um comerciante, deixou um nome que não pode ser esquecido na história das concepções do mundo. A vida de Martin Behaim, da qual pouco se sabe, testemunha as relações interculturais da Idade Média tardia na Europa e sua extensão às novas regiões descobertas. A sua família era procedente da Boêmia, tendo passado a sua infância e primeira juventude na Alemanha; com 17 anos, dirigiu-se aos Países Baixos (Mecheln e Antuérpia), como aprendiz de um vendedor de tecidos, ali trabalhando com um comerciante de Nürenberg.
Essa estadia de Martin Behaim em Antuérpia parece ter sido decisiva na sua vida e necessitaria ser considerada com maior atenção nos estudos do Descobrimentos. Com os problemas que prejudicaram o porto de Bruegge no século XIV, polo de comércio de tecidos e de algodão com a Inglaterra, esse deslocara-se para Antuérpia, tornando-se este um dos principais portos do continente e, sob o domínio da Burgúndia, centro cultural, científico e de transmissão de conhecimentos. Ainda hoje, edifícios da época de M. Behaim testemunham a prosperidade e o significado cosmopolita de Antuérpia já em fins do século XV. À época de Carlos V, com a importância econômica de entreposto de produtos vindos das regiões descobertas e exploradas por Portugal e Espanha, a cidade alcançaria o auge de seu poderio econômico.
Já em 1484, M. Behaim pensava em viajar por países distantes. Dirigiu-se a Lisboa, onde foi nomeado pelo rei como membro de uma comissão para a construção de um astrolábio. Provavelmente, trouxe consigo as Ephemerides do Regiomontanus e o conhecimento dos seus instrumentos de medição. Nesse caso, teria sido um dos pioneiros da era dos Descobrimentos. A sua estadia em Lisboa deu-se em época do desenvolvimento de viagens dos portugueses ao longo da costa africana. Êle próprio registra no seu globo que participara da expedição de Diogo Cão, na qual se descobriu a desembocadura do rio Congo. Após o seu retorno, foi feito cavaleiro por D. João II. Casou-se com a filha do governador da ilha açoriana de Faial. Passou a pertencer, assim, a círculos sociais elevados.
Em 1490, por razões de herança, retorna a Nürnberg, ali permanecendo três anos. Durante esse período, sempre em contato com Portugal, recebendo cartas marítimas de Lisboa, construiu o seu "pomo da terra". Já nessa época não havia dúvida quanto à forma esférica do planeta. Entretanto, tudo indica que Martin Behaim foi o primeiro que tentou fazer um modêlo tridimensional da terra a partir de representações bi-dimensionais dos mapas. O globo de Behaim é formado de ripas de madeira coladas, papelão coberto com gêsso e este com pergamento pintado. O papelão foi montado sobre uma esfera de barro. A superfície colada é constituida por duas séries de 12 segmentos e cúpulas polares de pergamento, pintados por Jörg Glockendon, o Velho. A armação original de madeira se perdeu; a atual foi feita em 1510. O meridiano de ferro é movimentável no seu anel condutor, o horizonte de latão é seguro por êle e por um anel semi-circular colocado perpendicularmente a êle. O objeto é seguro por meio de um apoio central, tendo quatro traves apoiadas em uma construção de três pés. O trabalho foi efetuado por artesãos de Nürnberg e pago pelo magistrado. A esfera tem 51 cm de diâmetro. A representação do mundo de Behaim deixa ainda entrever a visão ptolemaica do mundo, sobretudo com relação ao Oriente Próximo e à India; a parte sul desta última surge como ilha. A costa ocidental da África alcança até a ponta sul do continente; a África oriental é traçada segundo suposições. Após o seu retorno a Lisboa, a vida de Behaim sofreu graves transformações. Em 1495, faleceram os seus protetores, o rei D. João e o pai de sua mulher. Abandonado por esta, faleceu em pobreza. Pouco se sabe a respeito dos conhecimentos que Behaim teve do Brasil recém-descoberrto. Antonio Pigafetta, o cronista da primeira viagem de circumnavegação de F. de Magalhães, afirma que este teria visto uma carta de Behaim na qual o estreito que tomaria o seu nome já estava indicado. Nesse caso, Behaim deveria ter feito um mapa no qual a costa oriental da América do Sul estaria desenhada. A produção em série de globos parece ter-se iniciado na Alemanha. Ela foi motivada pela procura causada pelos sucessos das viagens de descobrimento em fins do século XV e início do século XVI. Os novos conhecimentos da geografia fizeram do globo terrestre um instrumento de transmissão de novas informações. A seu lado, o globo celestial servia como instrumento de orientação nas viagens marítimas.
Visões da visão do mundo
A argumentação empregada na construção de uma teoria histórico-genética da cultura apresenta-se como determinada por uma visão simples e questionavelmente simplificadora do desenvolvimento histórico. O pensamento é guiado sobretudo pelo conceito de "máquina do mundo", não se dando a atenção necessária ao seu vínculo com a representação esférica do cosmos e, posteriormente, da terra.
Numa primeira fase de um processo de "desencantamento" da Natureza, ainda na Antigüidade, com a eliminação de poderes personalizados - os deuses - já se teria utilizado da máquina como modêlo paradigmático, citando-se aqui Lucrécio (97-55 a.C.). A mudança da matrix interpretativa, observada no uso paradigmático da máquina, corresponderia a um processo de secularização quanto à concepção do mundo. Nesse processo da secularização, aquilo que aconteceria no mundo passaria a ser visto em contexto sistêmico, intrínseco, retirando-o da causalidade interventiva de Deus ou de poderes subjetivos. Esse processo teria sido acelerado pelo desenvolvimento da forma de organização urbana na Idade Média. A organização funcional da cidade teria precedido e prepararado a recepção paradigmática do modêlo da máquina. Assim, no emprêgo da organização funcional da máquina ter-se-ia tornado possível o desenvolvimento de uma compreensão funcional-relacional ou sistêmica do universo. Com o estabelecimento do princípio da conservação da energia e do princípio da inércia, a lógica de ação do universo teria sido então eliminada e substituída por uma lógica funcional-relacional. A mudança definitiva da visão do mundo e a da lógica pela revolução científico-natural dos séculos XVI e XVII poderia ser melhor elucidada comparando-se a teoria do movimento aristotélico-medieval com a concepção da Era Moderna. A teoria aristotélica exigiria para cada movimento uma força atuadora que o colocaria em funcionamento e o manteria. Na compreensão física moderna, um movimento se mantém até que seja modificado por forças contrárias ou estacionado. Depois de Galileu, Descartes teria sido aquele que mais salientara essa mudança no paradigma interpretativo, lançando mão do modêlo da máquina. Apenas o impulso energético ainda er visto como procecente de fora. A máquina ainda precisava de uma força inicial que colocaria o processo de movimentação em andamento e que o manteria, sem que essa força externa precisasse intervenir no interior daquilo que maquinalmente se desenrola.
Hoje, a crítica do conhecimento teria então retirado as bases dessa suposição de que haveria necessidade de um impulso externo.
Precisões históricas do conceito do modêlo maquinal
O conceito de máquina nas suas relações com a concepção do mundo precisaria ser considerado com mais cuidado e profundidade, uma vez que tudo indica não ter surgido no contexto de um "desencantamento da Natureza" mas sim ter sido já expressão intrínseca de uma concepção de mundo de fundamentação religiosa ou metafísica das mais antigas proveniências. Já Vitrúvio, no seu De Architectura Libri Decem trata, ao lado da construção de edifícios, o de máquinas e mecanismos de relojoaria como campos de trabalho do arquiteto. Nessa obra, define o conceito de máquina, diferenciando-o de instrumento e colocando-o em função do mundo, ou seja, demonstrando a sua inserção no edifício global das concepções. No último livro, o décimo, de sua obra, sugere que a diferença entre máquina e instrumento residiria no fato de que, na máquina, muitas forças ou uma força maior seriam necessárias para acioná-la, enquanto que um instrumento necessitaria apenas de um tipo de trabalho. Toda a mecânica, porém, seria imagem da Natureza das coisas, e esta seria a mestre através da rotação do mundo. Contemplando-se as relações entre o sol, a lua, e os outros planetas, constatar-se-ia que, se não se movimentassem segundo leis mecâncias, não haveria nem mudanças de luminosidade nem o crescimento de frutos na terra. Tendo os antigos compreendido esse fato, tomaram a Natureza como modêlo e, imitando-a, criaram as máquinas e os instrumentos. (Vitruv. De Architectura libri decem, Trad. F. Reber, Wiesbaden 2004,333-335)
O modêlo da máquina, portanto, não é expressão de um "desencantamento" da Natureza. Pelo contrário, estava vinculado intrinsecamente com uma concepção integral do cosmos e na qual concepções filosófico-naturais desempenhavam papel básico. Conhecimentos derivados da observação da Natureza e sua sistematização através da doutrina dos elementos, elaborações conceituais de natureza matemático-filosóficas levaram a uma visão decididamente de fundamentação ontológica e de dimensões metafísicas, da qual a esfera celestial era representação.
O globo dos céus como representação de uma máquina do mundo tinha um caráter simbólico-medial e era, significativamente, de natureza hermética ou mercúrica. As relações entre a concepção esférica dos céus e o globo terráqueo necessitam de mais pormenorizados estudos.Também este, porém, surgiu dentro de uma compreensão do universo que, pela sua integralidade, não poderia ser incoerente.
O processo sugerido pelo autor da teoria cultural referente à uma mudança na lógica da compreensão do mundo na Era Moderna parece ter sido assim elucidado a partir de interpretações insuficientes. Tratar-se-ia antes de uma mudança de referenciais na consideração do mundo, uma delas de cunho decididamente antropocêntrico, outra a partir de tomada de posição a partir de um ponto de vista externo e representativo de uma objetivação. Nessa mudança de referenciais ter-se-ia um fato realmente decisivo para o estudo de um desenvolvimento. Aqui, porém, novos e mais pormenorizados exames se tornam necessários.
Aqui parece valer, como advertência, a frase de Luís Filipe Barreto na obra acima citada:
"Filosofia e ciência articulam-se no Renascimento num todo sincrético que o historiador tem muitas vezes dificuldade em descobrir, ora porque não possui os quadros de referência nuclear da época ora porque vive na retrospectiva positivista de generalizar ao passado a situação epistémica do presente (...)" (op.cit., Separata, 5)
Os debates terão prosseguimento.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).