Doc. N° 2234
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
108 - 2007/4
Tópicos multilaterais Alemanha-Brasil
Para uma fenomenologia dos fóros mundiais de cultura Forum Humboldt no antigo palácio real de Berlim De-montagem, reconstrução e diálogo internacional cultura/ciência
Berlin. Trabalhos da A.B.E., junho de 2007
A.A.Bispo
Demontagem do Palácio da República em Berlim. Trabalhos da ABE 2007 Faces do Historicismo na atualidade
Um fenômeno singular pode ser constatado em várias cidades européias nos últimos anos: o da reconstrução de edifícios históricos. A singularidade dessa tendência demonstra-se pelo fato de que tais reconstruções, que exigem consideráveis capitais e empenhos políticos e de influenciação da opinião pública, partem ou são promovidas por membros da própria sociedade ou de alguns de seus segmentos, muitas vezes contra posicionamentos de arquitetos, urbanistas, de intelectuais e representantes de instituições culturais e artísticas. Esse fato sugere a existência larga e, talvez de modo difuso, de um desejo de recuperação de monumentos perdidos e, com êles, de conjuntos e imagens urbanas, de símbolos considerados como inseparáveis da identidade comunitária. Muitos desses símbolos, porém, necessitam adquirir uma nova função, ser colocados ao uso de outras instituições, empregados para outros fins do que no passado. Se a igreja barroca de Dresden, que exigiu inacreditável somas para ser reconstruída, ainda pode ser usada para o culto, o mesmo não acontece com o monumental palácio de Braunschweig, cujo interior hoje é utilizado como centro comercial. Críticos dessa tendência, em geral aqueles que tiveram a sua formação cultural e estética determinada por ideais de sinceridade e veracidade da arquitetura, de que a forma segue a função, de repulsa a fachadas, de aguçamento da percepção contra o Kitsch, indignam-se contra esse retorno do Historicismo, e isso a um grau provavelmente nunca alcançado no passado. Embora seja de opinião bastante generalizada, por exemplo, que a reconstrução já de anos do centro histórico de Frankfurt a. M. pelo menos está muito próxima daquilo que se considera como sendo Kitsch, ela se impôs e é admirada com fascinação por visitantes; agora pensa-se consequentemente na demolição do edifício em concreto aparente da prefeitura municipal, uma vez que este não harmoniza com o ensemble. As reconstruções criam, assim, fatos.
Brasil e Europa
Essa tendência não pode ser precisamente comparada com os esforços de recuperação de centros históricos de cidades em várias partes do mundo, como é o caso de São Paulo. Não se trata, aqui, de saneamento, remodelação e revitalização sob condições dignas e de responsabilidade social de bairros degradados, como a Luz, ou de utilização de edifícios da zona central para outras finalidades. O que acontece na Europa corresponderia, por exemplo, a uma demolição dos edifícios que substituiram os antigos palacetes que contornavam o Vale do Anhangabaú e marcavam a fisionomia da cidade, para reconstruí-los, restabelecendo em parte um conjunto urbano no qual o Teatro Municipal se inseria de forma mais convincente; ou à reconstrução do Palácio Monroe, no Rio de Janeiro. O que ocorre na Europa corresponderia antes ao que aconteceu há décadas no Pátio do Colégio de São Paulo, quando se demoliu o palácio da presidência da província para a reconstrução histórica da antiga escola dos jesuítas. Também aqui, porém, poder-se-ia detectar diferenças. O caso mais espetacular pelas suas dimensões e conotações simbólicas é, sem dúvida, a demolição, no centro de Berlim, do Palácio da República da antiga Alemanha do Leste para que ali se possa reconstruir o Palácio Real. A grande polêmica causada por esse projeto e a transcedência teórico-cultural das questões que se levantam, que de muito superam o seu significado local e nacional, levaram à A.B.E. por várias vezes a se ocupar com essa discussão e a realizar observações in loco. Relatos desses trabalhos foram oferecidos em números anteriores deste órgão. Agora, em nova visita, estando os trabalhos de demolição já avançados, tratou-se de refletir acerca dos caminhos encontrados para o contorno dos argumentos críticos à complementação de uma cenografia urbana com a reconstrução altamente simbólica de um edifício de representação real em lugar de um palácio do povo.
Demolição e de-montagem ou desmantelamento
Dois pontos poderiam ser salientados: uma singular diferenciação conceitual que procura tornar aceitável teórico-culturalmente o ato e a decisão de utilização do futuro ex-palácio como forum internacional de diálogo entre culturas e a ciência. O primeiro ponto diz respeito à importância evidente que os promotores do projeto dão a uma diferença conceitual entre demolição e de-montagem. Fazem questão de, em várias línguas, em grandes cartazes, designar a ação como ato desmantelamento, não de demolição. As conotações negativas da idéia de demolição, no sentido de destruição, são assim afastadas. Contorna-se conceitualmente a dúvida crítica da validade de um ato que poderia surgir quase que como um atentado à consciência histórica. O termo de-montagem sugere que o antigo edifício é que fora uma montagem, produto de uma ideologia, construção de bases artificiais, e que será desmantelado. A atenção é dirigida a outro tipo de reflexões, mais abstratas. O observador, que vê as estruturas de metal e concreto ainda restantes do ex-palácio popular pode sentir confirmada a idéia de uma de-montagem. Esquece, por um momento, que esse tipo de construção, simplista e talvez simplória, palácio de um govêrno que se designava como sendo de trabalhadores e camponeses, possuia pelo menos uma certa dose de veracidade, apesar de ter sido envidraçado e decorad como se fosse "uma loja de lustres". O resultado da remontagem, porém, trará de volta a fachada do palácio real, justificada por uma perspectiva externa, do palco urbano, não interna, das finalidades do próprio edifício. O produto da remontagem surge assim como singularmente complexo de ser refletido. Na leitura da cidade, quase que de forma gramatical, o palácio real, relacionando-se com as outras construções históricas do conjunto urbano, toma a função de um sinal que se refere a outros sinais. A força que teve como símbolo de poder, porém, salientada pela representatividade de sua arquitetura, não permite um total esvaziamento de sentido. Também dispendioso demais para ser apenas um cenário - como os painéis pintados que durante meses procuraram dar uma impressão da reconstrução aos berlinenses e visitantes - coloca-se a questão do novo sentido a ser dado ao prédio. A solução encontrada, a de transformar o palácio em forum, em centro de diálogo entre cultura e ciência, parece ser ideal: afasta possíveis conotações internacionalmente menos simpáticas relacionadas com o antigo sistema prussiano e estabelece um marco de respeito às culturas e do necessário diálogo com a ciência. Entretanto, também essa solução não deixa de levantar questões. Se no caso de um palácio transformado em centro comercial, de igreja refuncionalizada em danceteria e de armazéns de porto feitos centros culturais a discrepância entre o novo sentido e a forma é tão grande que toda e qualquer interpretação hermenêutica da leitura da urbe é imediatamente impossibilitada pela evidência da aberração, o mesmo não pode ser dito com relação a um projeto que coloca por detrás da fachada de palácio real objetos do patrimônio histórico das várias culturas e espaços destinados a um forum internacional para o diálogo entre essas e a ciência, sob a égide de Wilhelm e Alexander von Humboldt .
Reconstrução histórica e reconstrução na teoria da cultura
As reflexões sugeridas pela reconstrução do edifício do palácio real de Berlim dirigem a atenção a questões mais amplas e básicas da reconstrução histórica e da reconstrução na teoria da cultura. A dimensão mais profunda dos problemas reconstrutivos se demonstra na atualmente discutida "teoria histórico-genética da cultura", tal como proposta por Günter Dux (Historisch-genetische Theorie der Kultur. Instabile Welten. Zur prozessualen Logik im kulturellen Wandel. Weilerswist: Velbrück Wissenschaft, 2000) Esse autor trata da reconstrução como crítica do conhecimento e método de compreensão histórica. A intenção é de encontrar vestígios dos processos reais do vir-a-ser do homem, uma vez que parte da convicção de que a história espiritual e sócio-cultural da forma de organização de vida humana deve ser considerada na sua conexão com a história natural. Aquilo que se teria criado em condições reais empíricas, deveria poder ser explicado também a partir dessas condições. Essa compreensão, embora considerando-se empírica, apenas poderia ser produzida através da reconstrução teórica. Tratar-se-ia de alcançar uma compreensão causal das formas de organização sócio-culturais (op. cit. 21) em reconstrução dos processos históricos. Essa seria a intenção; na prática a reconstrução teria limites e apresentaria consideráveis lacunas. A reconstrução, nesse sentido, seria entendida como construção de condições à procura de causalidade sistêmica. A compreensão evolutiva do desenvolvimento de formas de vida sócio-culturais levantaria a questão da condição da possibilidade. Como teria se tornado possível que se desenvolvesse uma forma de vida em conexão a uma história natural evolutiva? O autor não dá prioridade ao pensamento - diferentemente da época do iluminismo - mas sim a uma forma de organização que ter-se-ia desenvolvido evolutivamente dentro do universo e na qual toda a forma de pensar se desenvolveria (pág. 177). Em conexão a essa forma de entrada na história poder-se-ia então esclarecer a questão da condição da possibilidade do desenvolvimento histórico das formas de organização sócio-culturais. O autor procuraria respostas às diferentes questões através da integração sistêmica numa esfera mais ampla. A estrategia que o autor segue é, segundo as suas próprias palavras, sair da história e ir antes da história para explicar como se procedeu a entrada na história de uma história das formas sócio-culturais da vida (pág.178)
Reconstrução e elucidações sistêmico-processuais
Reconstrução seria uma reconstrução das condições sob as quais o processo de enculturação ter-se-ia desenvolvido e depois se prolongado no desenvolvimento histórico. Estes apenas podem ser entendidos se as condições puderem ser reconstruidas sob as quais as estruturas se formaram e se desenvolveram (pág. 178). A essas condições também contariam os atores históricos. Os seus mundos interiores ter-se-iam desenvolvido sob concretas condições históricas, não seriam porém idênticas a elas. A diferença entre as situações encontradas e os atores nas situações mostraria o que teria ido para além das situações. Segundo essa teoria, a reconstrução pode ser compreendida como reconstrução graças a uma causalidade sistêmica. Causalidade sistêmica significa que a elucidação de processos históricos e mundos históricos não pode ser alcançada dando-se uma causa (ou causas) ou constatando-se a interrelação entre as mesmas. Esse procedimento seria teoricamente insuficiente. O Explicandum deveria ser inserido num contexto funcional cuja processualidade imanente possibilitaria a explicação. A explicação consistiria na demonstração da processualidade desse contexto funcional e na determinação de que e do como se tornara possível que o explicandum se originasse desse contexto funcional como organização. Todo o esclarecimento construtivo seria assim uma explicação sistêmico-processual. A determinação estratégica valeria para as formas de organização do conhecimento, para as estruturas do pensamento e da linguagem. Como ambas estão vinculadas com a formação da sociedade, seriam vigentes também para a sociedade. O autor aponta à diferença entre explicações causais nas ciências naturais e nas humanas. O processo de formação de mundos sócio-culturais se processaria através da ação dos sujeitos. Ele torna-se-ia claro através da sua reflexividade na ação. Somente seres que agem refletivamente estariam em condições de ir além da constelação à qual estão vinculados. Isso não apenas valeria na dimensão filogenética do processo enculturativo. Valeria também e sobretudo para o processo histórico. Os sujeitos estariam em condição, graças à reflexividade e sob o pano de fundo de uma constituição social, de deslocar o horizonte de sua ação. As conseqüências para a constituição social desenvolver-se-iam de reações inesperadas e anticipações dos atores históricos, não permitindo assim previsões. (pág. 179-180)
Diálogo entre culturas e ciência e a prioridade da natureza
G. Dux afirma que, na sua proposição teórica dá prioridade à natureza, com todas as incertezas que contém, e considera as formas de organização sócio-culturais em conexão e seqüência a uma constituição antropológica que se desenvolve evolutivamente. Essa constituição teria uma autonomia construtiva que se transformaria processualmente nos construtos da forma existencial humana. Seria esse processo de formação que seria o objeto da reconstrução. Sob o pano de fundo desses aportes e das reflexões encetadas relativamente ao castelo real de Berlim/Forum Humboldt pode-se diferenciar o contexto no qual se relacionam questões de reconstrução e de teoria da cultura. O caminho de Dux é aquele que entende sob prioridade à Natureza a forma de abordagem, o método de aproximação, distinto dos caminhos filosófico-culturais. Como discutido porém em outras situações (veja correspondentes relatos nesta edição), a compreensão de cultura e espírito na proposição da "teoria histórico-genética da cultura" é passível de crítica, parecendo revelar projeções de concepções posteriores e interpretações não justificáveis pela própria processualidade do desenvolvimento sugerido. Ter-se-ia, aqui, um campo de tensões que se abriria de princípio ao projetado Forum Humboldt de diálogo entre cultura e a ciência no ambiente reconstruído do palácio de Berlim. Na verdade, essa problemática não é nova, e estaria também ligada ao procedimento e ao nome de um daqueles escolhidos para designar o forum, Alexander von Humboldt. Não se pode aqui esquecer que A. von Humboldt foi, na sua época, um representante de uma abordagem similar, primordialmente científico-natural quanto a seu ponto de partida e enfoque, merecendo, por isso, a não-simpatia de um Schiller, que tanto admirava a seu irmão, W. von Humboldt: "Uma vaidade demasiadamente pequena e intranqüila anima toda a sua ação. Não posso nele perceber nenhuma faísca de um interesse puramente objetivo, - e, embora podendo soar estranho, encontro nele a par de uma imensa riqueza de material, uma fraqueza de sentido, o que é o maior mal no caso dos assuntos que estuda. É a razão nua, cortante, que procura medir sem pejo a Natureza que sempre é inapropriável, não penetrável e digna de respeito em todos os seus pontos, e isso com uma petulância que não posso conceber, vendo-a na medida de suas formulações, que são freqüentemente palavras vazias e sempre conceitualmente estreitas". (cit. Douglas Botting, Alexander von Humboldt: Biographie eines grossen Forschungsreisenden, München: Prestel, 6a. ed., 2001, 50) Embora essas palavras soem hoje como ásperas e pouco compreensíveis, considerando-se a obra monumental de Humboldt, parecem delinear questões teóricas de premente atualidade no presente. Espera-se que o complexo de questões que se levantam no Forum Humboldt relativas à reconstrução, às culturas e à ciência, e que certamente levarão à discussão das relações entre a cultura e a natureza, não consolide - por detrás da representatividade da reconstrução arquitetônica -, uma noção de prioridade da Natureza que se reduz ao método de aproximação e abordagem. Considerando que uma verdadeira prioridade da Natureza deveria ser vista na orientação ambiental e de respeito à vida da cultura e da ciência do homem, espera-se que esta venha a ser a principal diretriz daquele Forum.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).