Doc. N° 2231
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
108 - 2007/4
Eventos em destaque
De-espiritualização da Natureza e Teoria da Cultura 1992-2007. 15 anos dos 500 anos do Descobrimento e da Evangelização da América
Rio de Janeiro. Trabalhos da A.B.E. 2007
A.A.Bispo
Após 15 anos da passagem de uma data que como poucas ficou e ficará marcada na história das reflexões de fatos e processos históricos no relacionamento entre os povos e suas conseqüências, pareceu à A.B.E. ser oportuno recordar algumas das questões e propostas da época, realizar um balanço do desenvolvimento do pensamento e das ações então iniciadas e retomar discussões à luz de preocupações atuais. O ano de 1992 continua sendo sempre lembrado pela realização da Conferência Internacional do Meio-Ambiente no Rio de Janeiro, evento de extraordinária ressonância nacional e internacional, correspondendo a ensejos a longo tempo esperados e fundamentando expectativas para o Brasil e o planeta. O Brasil ganhou, com esse evento, de forma singularmente positiva, imagem e posição na discussão ambientalista, ecológica e desenvolvimento sustentável internacional, fato que até hoje faz-se sentir.
Os resultados, depois de 15 anos, correspondem às expectativas? As imagens e as intenções correspondem à realidade? O ano de 1992, marcando o V° Centenário do Descobrimento da América por Cristóvão Colombo, e, com isso o início da história do "Novo Mundo, do "encontro" do mundo indígena americano com a Europa, o ponto de partida de um processo continental de transformação cultural, social e natural das mais amplas dimensões, deu ensejo, como poucos, a comemorações e anti-comemorações.
15 anos após comemorações e anti-comemorações
Em discursos, publicações e solenidades procurou-se rememorar feitos do passado que deram origem às nações americanas do presente, à expansão da civilização ocidental, do Cristianismo, às transformações dos conhecimentos, ou seja à Idade Moderna e a uma dinâmica globalizadora nas quais o mundo atual se insere.
De outro lado, em manifestações de protesto e de crítica, salientou-se que esse ano marcava cinco séculos de conquista, de invasão, de ocupação, do início de uma história colonialista e de expansão, de genocídio e escravidão indígena, de estabelecimento de bases de um sistema social profundamento injusto e de um processo de destruição da natureza.
Assim, o ano de 1992, o "Ano Colombo", o "Ano do V° Centenário", o "Ano dos 500 Anos da Evangelização da América", foi também "Ano dos 500 Anos de Resistência Indígena" e de várias outras iniciativas críticas, sobretudo promovidas por entidades confrontadas com a realidade indígena e ecológica.
Dualidade de perspectivas?
Essas duas faces do ano de 1992, demonstrando uma extraordinariamente ampla consciência do significado da história e de suas conseqüências, foram explicadas como resultantes de duas perspectivações: a da Europa e a da América, tendendo a Europa compreensivelmente a celebrações e festejos, a América a manifestações críticas, pelo menos a indígena e aquela comprometida com a realidade indígena. A dicotomia aqui sugerida, correspondendo placativamente àquelas do Conquistador e do Conquistado, do Colonizador e do Colonizado, do Opressor e do Oprimido, do Senhor e do Escravo, do Agressor e Daquele que resiste e se defende, serviu, sem dúvida, à conscientização do problema e sua divulgação pública mais ampla; entretanto, ela não refletiu totalmente a situação.
Houve também estudiosos e pesquisadores de ambos os lados que procuraram salientar a necessidade de análises e reflexões mais profundas, conscientes da amplidão e complexidade do processo então desencadeado. Não só os 500 anos foram festejados por vezes de forma mais espetacular e a-crítica em países do continente do que na Europa, como também entidades européias apoiaram - em geral decisivamente - manifestações e iniciativas críticas identificadas com a existência indígena.
A redução simplista das graves questões de compreensão histórica e de análise das conseqüências de processos a uma focalização a partir de dois pontos de vista definidos quase que geográficamente, - Europa e América -, mais encobre do que elucida aspectos fundamentos de uma processualidade que ainda se encontra vigente nos seus mecanismos e na qual estão inseridos tanto europeus quanto aqueles que se identificam com a existência indígena e com a realidade ambiental do continente.
Auto-análise cultural
Na convicção de que ao esclarecimento apenas podem contribuir exames - por assim dizer de auto-crítica cultural - e de crítica do conhecimento dos princípios dos mecanismos postos em ação, ou seja, de análise de uma lógica inerente a um processo no qual os pensadores estão envolvidos, desenvolveram-se várias iniciativas que levaram ao plano de realização de evento internacional teórico-cultural no Rio de Janeiro dedicados à questão dos fundamentos no debate.
Esse evento concretizou-se no II° Congresso Brasileiro de Musicologia, no âmbito do qual inseriu-se, como evento paralelo, o III° Simpósio Internacional de Música Sacra e Cultura Brasileira. A focalização do complexo de problemas na música, ou melhor, o seu tratamento a partir do conceito de música justificou-se pelo fato relevante da inserção da música na concepção do mundo e do homem da época da chegada dos europeus na América e sobretudo no sistema teórico definido pelo quadrivium.
Lógica processual e relações racionais
Essa vinculação da música às disciplinas matemáticas na antiga concepção indica a sua relevância para todas as reflexões dirigidas à lógica na concepção do mundo e à lógica inerente a processos desencadeados sob tal fundamentação. A consideração especial do complexo de problemas no âmbito do simpósio dedicado a questões religiosas se justificou pelo fato de ser esse sistema da concepção do mundo, no qual a música - e a lógica dos processos desencadeados se insere - de orientação ontológica e metafísica, sendo uma necessidade compreendê-la nessa sua inserção. Após 15 anos desse evento e podendo-se considerar já à relativa distância os seus resultados e aquelas das iniciativas que dele partiram, já estando a polêmica então suscitada pela data dos 500 anos quase que esquecida, pareceu ser importante salientar que o objetivo principal do evento, ou seja, o da reflexão crítica da concepção do mundo e do homem e da lógica inerente aos mecanismos do processo histórico postos em ação e vigentes até o presente continua a representar uma tarefa de fundamental relevância para os estudos teórico-culturais em contextos internacionais. Um dos pontos aqui salientados disse respeito à questão da "desespiritualização da cultura", conceito hoje que, apesar de sugerir perspectivas eclesiais de reevangelização do mundo, surge sobretudo no debate relativo à teoria da cultura, em particular na assim-chamada "teoria histórico-genética da cultura" , hoje em discussão, como exposto em outros textos desta edição (Günter Dux. Historisch-genetische Theorie der Kultur. Instabile Welten. Zur prozessualen Logik im kulturellen Wandel. Weilerswist: Velbrück Wissenschaft, 2000).
Desespiritualização da cultura e prioridade da Natureza
É aparentemente singular que o termo "Desespiritualização" seja discutido justamente no âmbito de argumentos que procuram vincular a história cultural do Homem à evolução natural. Para que se evite mal-entendidos, um exame pormenorizado do entendimento do termo Espírito e de seus derivados pelos propugnadores desse enfoque teórics torna-se absolutamente necessário.
G. Dux vê a desespiritualização da cultura nos seus vínculos com uma retirada da espiritualidade do universo no decorrer da eliminação de uma estrutura subjetivista da concepção do mundo e do homem na Era Moderna. O conceito é entendido como uma espiritualidade segundo o agir humano, dirigido a um fim. A supressão dessa lógica subjetivista e a conseqüênte desespiritualização do mundo, tendo-se revelado já no modêlo de pensamento mecânico, maquinal, que teria passado a ser dominante no decorrer dos séculos, seria para êle um fato a ser constatado, estando fora de discussão. Com essa eliminação não teria mais fundamento compreender os acontecimentos da Natureza como se fossem movidos por forças, por princípios ou seres intelectuais. a modo do agir humano.
Com isso, G. Dux coloca a posição do teórico moderno em absoluta incompatibilidade com uma visão do mundo que se constata (ou que continua a existir) em culturas de fundamentação religiosa, por exemplo naquelas que dão particular atenção a noções angelicais ou de arcontes e santos.
A questão que se coloca para os estudos culturais e interculturais não diz tanto respeito ao fato de que o estudioso compartilhe ou não da concepção do mundo da sociedade que analisa, mas sim se êle desvaloriza tacitamente essa concepção por considerá-la expressão de uma maneira de pensar superada ou retrógrada. Na argumentação da teoria histórico-genética da cultura, a atenção é dirigida à diferença entre uma compreensão pré-moderna da Natureza e uma compreensão da mesma que seria própria da Era Moderna. A espiritualidade do universo anterior à Era Moderna estaria vinculada a uma lógica subjetiva de fundamentação ontológica. Essa seria a forma de espiritualidade que teria sido eliminada na compreensão da Natureza de séculos posteriores, não mais surgindo como matrix interpretativa.
Compreensão da Natureza e matrix interpretativa
A argumentação utilizada na construção desse edifício teórico necessita ser analisada e considerada criticamente ainda sob diversos outros aspectos. A opinião, por exemplo, de que a lógica da era pré-moderna seria subjetivista, ao contrário da lógica da Era Moderna, exigiria uma consideração crítica e histórico-crítica em separado. No contexto das questões aqui refletidas, cumpriria, em primeiro lugar, dirigir a atenção a um complexo de questões que diz respeito mais diretamente ao processo desencadeado pelo Descobrimento da América pelos europeus. A época dos Descobrimentos tem sido considerada por muitos autores, e com razão, em estreita vinculação com a Idade Moderna nas tentativas de periodização historiográfica. Sem os conhecimentos trazidos pelo descobrimento de novos mundos não teria sido provavelmente possível a mudança de concepções considerada como sendo de tanto significado na teoria histórico-genética da cultura. Entretanto, não se pode esquecer que, como salientado nos eventos referidos em 1992, os Descobrimentos se iniciaram em época e por nações ainda profundamente marcadas pelo universo medieval, procedendo-se concomitantemente com a propagação cristã, ou seja, com a difusão uma concepção do mundo e do homem fundamentada na religião segundo a tradição ocidental.
O processo desencadeado, portanto, foi determinado pela lógica considerada na teoria histórico-genética como própria da era pré-moderna, ou seja, de fundamentação ontológica. Essa seria a lógica imanente de processos sócio-culturais então postos em ação e que se desenvolveram por assim-dizer auto-poeticamente através dos tempos. Esses processos podem ter perdido o seu sentido ontológico ou metafísico; essa perda de sentido no decorrer da secularização não significa porém, necessariamente, que os mecanismos processuais tenham sido desativados. A esse tipo de questões, já discutidas em simpósios promovidos pela A.B.E. em sequência aos eventos de 1992, somam-se problemas relativos à conceituação de espiritualidade e desespiritualização. Dentro da concepção de mundo à qual se vinculou a lógica inerente ao processo histórico-cultural posto em ação, a cristianização dos indígenas fazia parte integrante e essencial, dada a natureza missionária do Cristianismo. Muitas vezes foi essa ação missionária compreendida pelos agentes missionários e pelos próprios historiadores como um trabalho voltado à espiritualização dos povos indígenas, em parte pela própria natureza do edifício teológico cristão e em parte pela visão - errônea - que se difundiu dos indígenas como isentos de concepções religiosas mais profundas.
Desespiritualização da Natureza e a Espiritualidade indígena
Como discutido em evento da A.B.E. em 2002 num dos maiores centros de estudos da espiritualidade na Europa - o mosteiro beneditino de Maria Laach -, parece até mesmo inconcebível que se haja propagada a idéia da necessidade de uma espiritualização das culturas indígenas por uma ausência de religiosidade, considerando-se as evidências arqueológicas oferecidas pelas grandes civilizações americanas e as análises etnológicas e de simbolismo cultural.
Hoje, é justamente a espiritualidade indígena de todas as partes do continente que se vem salientando, surgindo como de alto significado até mesmo para a identidade cultural dos vários grupos. O que ainda merece mais amplas constatações - e o que deveria ser um dos objetivos do projeto internacional colocado em ação durante o evento de 1992 - é a questão da fundamentação ou direcionamento ontológico ou metafísico dos universos simbólicos colocados em interferência.
Tem-se até mesmo salientado, em aparente contradição, que a ação missionária cristã parece contribuir ou ter contribuído, em muitos casos, à secularização das concepções indígenas do mundo. A perda da dimensão ontológica, e consequente desespiritualização se processaria justamente através da ação espiritualizadora no contexto de uma lógica considerada pelos propugnadores da teoria histórico-genética da cultura como própria da era pré-moderna. Já essas considerações, embora suscintas, demonstra a exigência de uma diferenciação maior e mais crítica das propostas da teoria, uma diferenciação que deve partir de exames mais pormenorizados da história cultural dos Descobrimentos e dos processos colocados em ação.
Recusa da possibilidade de um retorno à "razão receptiva"
A questão, porém, não se limita a uma necessária maior diferenciação da visão histórica e da história do pensamento na argumentação justificadora dessa proposta teórico-cultural.
G. Dux defende a tese de que não haveria mais razão em contemplar o universo ou os acontecimentos da Natureza segundo uma lógica superada, como se esses fossem guiados por seres inteligíveis a modo do agir humano, ou seja, segundo finalidades. Essa forma de espiritualidade não poderia ser reintroduzida após o fim de uma compreensão mecanística da natureza como "máquina do mundo", por exemplo em nome de uma teoria quântica. Segundo êle, essa constatação da desespiritualização deve ser distinta daquelas derividas de "contemplações filosóficas da natureza", mesmo que provenientes de cientistas naturais. Estes tentariam comprovar, com meios matemáticos e com uma utilização metafórica do conceito de espírito, um espírito vigente na natureza. Embora muitos filósofos aceitassem essa desespiritualização, o autor constata uma certa dificuldade da filosofia em aceitar a não-existência de outra realidade acima dos construtos naturais. Até hoje, segundo êle, a lógica "absolutista" procuraria solapar a desespiritualização da Natureza e articular-se-ia como esperança filosófica que a razão humana ainda pudesse vir a ser novamente uma "razão receptiva".
Necessidade de maiores diferenciações
O idealizador da "teoria histórico-genética da cultura" assume portanto um posicionamento claro, derivado de suas reflexões. O que não é aceitável, porém, é confundir posicionamentos de pensadores, particulares ou de grupos, com a posição a ser tomada na análise de fenômenos e processos. Não apenas a visão histórica deve ser aqui muito mais diferenciada do que aquela que fundamenta a teoria. Se o desenvolvimento em direção a uma desespiritualização da Natureza é visto como fato concretizado e irrevogável, então fixa-se uma supostamente descoberta linha evolutiva, um direcionamento de lógica processual que coloca todos as outras possibilidades de concepções do mundo como inseridos numa lógica pré-moderna. Esta não parece ser uma atitude adequada para o tratamento das culturas indígenas e para a consideração da sua espiritualidade ou desespiritualizações.
Ao pesquisador e analista cultural e àquele que procura o desenvolvimento de uma teoria da cultura também fundamentada em trabalhos empíricos, impõe-se como tarefa o exame complexo de confrontos e interações de desenvolvimentos e que incluem, em diferentes acepções, múltiplas focalizações de processos de espiritualização, desespiritualização, de secularizações. Elas teem como pressuposto a análise de diferentes estruturas, de lógicas e de seu possível relacionamento ou até mesmo harmonizações, embora seja tal possibilidade negada pelo autor da teoria histórico-genética da cultura. As reflexões tiveram e terão prosseguimento (veja outros textos desta edição).
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).