Doc. N° 2230
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
108 - 2007/4
Eventos em destaque
Contemplatividade em paradigmas do Homem e estudos teórico-culturais Significados da canonização de Fr. Antonio de Sant'Anna Galvão OFM
A.A.Bispo
Convento da Luz, São Paulo. Frei Antonio de Sant'Anna Galvão - "protetor da construção civil". Fotografia por ocasião de sessão do Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira" (1981) no dia dedicado à cultura religiosa do Vale do Paraíba do tempo colonial. A canonização de Frei Antonio de Sant'Anna Galvão OFM. é um ato que não pode deixar de ser considerado nos estudos culturais.
Dimensões nacionais e globais
A sua relevância para o Brasil tem sido salientada sobretudo por se tratar nada menos do primeiro nome de brasileiro nato a ser elevado ao culto dos altares.
Sendo o Brasil oficialmente a maior nação católica do globo e considerando as suas dimensões e seu pêso no contexto dos países americanos, em particular latino-americanos, a canonização assume uma significado que transcende os limites geográficos do país. Tem-se nada menos do que um reconhecimento da exemplaridade da pessoa e da vida de um brasileiro perante o mundo e, portanto, a sua elevação a modêlo de caráter e procedimento: a concretização historicamente contextualizada de um paradigma por assim dizer antropológico. A importância desse ato fica evidenciada ainda pelo fato de ter sido consecutado pelo próprio Pontífice no Brasil, em circunstâncias de alto significado simbólico. Não se pode esquecer que, até as visitas de João Paulo II° em passado recente, a vinda de um papa ao Brasil havia sido considerada como um acontecimento de inimaginável viabilização. O significado do ato diz respeito, em especial, a Portugal e a todo o mundo de língua portuguesa. Tratando-se de um nome da época em que o Brasil, como Colonia e posteriormente como Reino Unido, esteve estreitamente vinculado com Portugal, e tratando-se de um descendente de português, tem-se nesse nome santificado também um enriquecimento da hagiografia lusitana. A relevância da canonização do religioso brasileiro tem sido também considerada pelas vozes críticas. A sua consecução em contexto marcado por sessão da Conferência Episcopal Latinoamericana, a exaltação de um franciscano e de suas virtudes em época em que se condena correntes teológicas de certa proximidade com o pensamento marxista e nas quais se sobressairam autores franciscanos, surgem como manifestações ostensivas e expressivas de orientações e redirecionamentos relativamente à teologia, ao franciscanismo, a seu significado na história do continente, à vida religiosa e eclesial, indicando uma renovada atenção à procura individual do aperfeiçoamento espiritual e à vida contemplativa. A canonização do religioso brasileiro inseriria-se aqui num contexto de amplas dimensões eclesiásticas e teológicas do presente, marcando, consolidando e fortalecendo tendências consideradas - segundo as diferentes perspectivas - como corretivas de abusos e unilateralidades ou expressão de restauracionismo conservador. Questões de atualidade eclesiástica relacionadas com essa canonização são e serão tratadas em órgãos teológicos e de organizações religiosas. Aqui cumpre considerar apenas o significado do ato para os estudos culturais em geral, independentemente de sua filiação confessional, salientando alguns de seus aspectos como início de exames mais profundos.
Frei Antonio de Sant'Anna Galvão O.F.M
Com a canonização de Frei Antonio de Sant'Anna Galvão, espera-se um maior desenvolvimento dos estudos históricos dedicados à sua pessoa. Os dados até hoje existentes são relativamente parcos e pouco analisados à vista do significado transcendente do ato de elevação desse religioso a modêlo de vida.
Das fontes clássicas dos Estudos Paulistas pode-se citar sobretudo os Apontamentos Históricos, Geográficos, Biográficos, Estatísticos e Noticiosos da Província de São Paulo, publicado em 1879, e largamente difundido através de sua reedição na Biblioteca Histórica Paulista, sob a direção de Afonso de E. Taunay e com o patrocínio da Comissão do IV° Centenário da Cidade de São Paulo (São Paulo, 1953). Manuel Eufrásio de Azevedo Marques registra, na entrada referente a Antonio de Sant'Anna Galvão:
"Religioso franciscano, de moral austera e de belo caráter, pelo que foi vulgarmente apelidado de Santo. Era natural de Guaratinguetá, oriundo de uma das mais distintas famílias daquela localidade. Foi diretor e um dos fundadores do recolhimento da Senhora da Luz, da cidade de São Paulo. A tradição popular refere acontecimentos de sua vida, que, se não são amplificados pela imaginação, levam a acreditar que foi algumas vêzes realmente inspirado. Faleceu em São Paulo a 23 de dezembro de 1822, e jaz sepultado no presbitério da igreja do dito recolhimento; sôbre a lápide de sua sepultura lê-se: Hic jacet Fr. Antonius a Sant'Anna Galvão, huius almae domus inclitus fundator, et director, qui animam suam in manibus semper tenent, placide abdormivit in Domino. Diae 23 Decembris anno 1822" (op.cit. 81)
Na sua obra de referência para os estudos das igrejas de São Paulo, também publicada em primeira edição no ano do IV° Centenário de São Paulo (Igrejas de São Paulo, São Paulo: Companhia Editora Nacional. 2a. ed. 1966 [Brasiliana 331]), Leonardo Arroyo salienta a memória de Frei Galvão na religiosidade e na cultura popular da cidade e sobretudo o seu vínculo com a história do Convento da Luz:
"Interessantíssima personalidade a de frei Galvão, nascido em Guaratinguetá e tornado famoso pela sua piedade e humildade, autor de vários milagres referidos por seus biógrafos e admiradores. [...] É um dos três vultos da nossa modesta hagiologia segundo Afonso de E. Taunay, que aponta ainda os nomes de Anchieta e do padre Belchior das Pontes. A veneração à sua memória constitui uma das manifestações mais piedosas da crônica paulista [...].
[...] fatos milagrosos são atribuídos ao humilde frade, cuja memória é motivo de grande romaria no dia 23 de cada mês e assume aspectos grandiosos no dia 23 de dezembro, data de sua morte em 1822. O túmulo, sempre florido, está na igreja da Luz. [...] Frei Galvão, naturalmente, pela vontade dos seus devotos, acabará canonizado.
[...] Igreja de renome, de visitantes ilustres. D. Pedro II e sua mulher d. Maria Teresa Cristina e a princesa Isabel visitaram-na em 1846 e aí viram os túmulos de frei Galvão e de frei Lucas da Purificação. [...]
A personalidade de frei Galvão se impôs ao meio religioso paulista. Já velhinho, com oitenta anos, morava em humilde quarto no Recolhimento da Luz [...]. O exemplo de frei Galvão foi norma para as recolhidas, pois assim fizeram também as religiosas, que dormiam em estrados de tábuas, tendo um pedaço de pau por travesseiro. [...] Para frei Adalberto o Convento da Luz é obra exclusiva de frei Galvão. Foi êle o único diretor da construção e continuamente lhe assistia aos serviços, auxiliando-a com suas próprias mãos" (págs. 18-20)
Esse historiador, no seu texto, salienta também o vínculo da vida espiritual e da tradição histórica do Recolhimento da Luz com Portugal:
"As cerimônias religiosas das monjas atingem seu ponto mais alto em duas datas: a do frei Galvão, a que já nos referimos, e a da festa de Beatriz da Silva, aos 18 de agôsto, nascida em Campo-Maior, Portugal, em 1424 e falecida em Toledo, Espanha, em 1491. É a fundadora da Ordem das Religiosas da Conceição da Bem-aventurada Virgem Maria, comumente denomindas de monjas concepcionistas." (pág. 20)
Cultura religiosa do Vale do Paraíba
Se os estudos do Convento da Luz em São Paulo, de sua história e cultura religiosa são de extraordinária relevância neste contexto, não menos significativo é a consideração do ambiente cultural-religioso no qual Frei Galvão nasceu e teve a sua formação: o Vale do Paraíba. A canonização despertará agora uma maior sensibilidade para o significado da história da vida religiosa da região no período anterior ao desenvolvimento trazido pela economia cafeeira.
A percepção do significado da vida religiosa na cultura paraibana do período colonial não é recente, porém. Estudos nesse sentido se prendem estreitamente à história de trabalhos e instituições vinculadas à tradição da ABE.
O estudo de fontes históricas da cultura religiosa da região natal do nome agora oficialmente consagrado - Guaratinguetá e Vale do Paraíba em geral - foi objetivo de iniciativas do editor deste órgão a partir da segunda metade da década de 60. Pesquisas in loco e através da mediação de descendentes de antigos habitantes da região - sobretudo de Benedito Moreira (Veja dados biográficos em número anterior desta edição) - foram realizadas e deram ensejo a reflexões relativas à história cultural, à vida religiosa vale-paraibana e a seus elos com a capital.
Estudos da cultura religiosa vale-paraibana
Obras sacro-musicais da época de Frei Galvão, - também aquelas examinadas por outros pesquisadores - foram executadas pela primeira vez em São Paulo em fins da década de 60, sob a égide da Sociedade Nova Difusão. O Coro e Orquestra de Música Sacra Paulista, criado no âmbito do Centro de Estudos Histórico-Musicais na antiga Faculdade de Música do Instituto Musical de São Paulo pelo editor deste órgão, em 1972, realizou várias dessas obras, contextualizando-as quanto à prática de execução histórica e sua inserção cultural. Na Europa, a cultura do Vale do Paraíba, com particular atenção à vida sacro-musical, foi considerada pela primeira vez na Universidade de Colonia, em 1975. Vários de seus aspectos foram discutidos sob perspectivas interdisciplinares em colóquios de Pós-Graduação. Esse significado histórico-cultural da vida religiosa do Vale do Paraíba de meados do século XVIII a meados do século XX determinou basicamente as reflexões que levaram à realização do Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira, em São Paulo, em 1981, evento também de iniciativa do editor deste órgão e realizado pela Secretaria de Cultura do Estado com a cooperação da organização pontifícia de música sacra. A publicação preparada para fornecer subsídios às discussões no âmbito desse simpósio, ao mesmo tempo a primeira coletânea de estudiosos da cultura brasileira publicada no Vaticano, incluiu um depoimento do referido representante do Vale do Paraíba que possibilitou, com a sua vivência de antigas tradições já desaparecidas o surto de estudos e pesquisas sacro-musicais do Vale do Paraíba. Fêz-se questão, na programação do simpósio, aberto por documento pontifício, que o primeiro dia do mesmo fosse dedicado à cultura religiosa do Vale do Paraíba. Sob o tema genérico "Música sacra no Brasil Colonial", realizou-se, assim, em São Luís do Paraitinga, uma jornada dedicada à cultura vale-paraibana no interrelacionamento de seus múltiplos aspectos culturais e suas dimensões históricas. Ao lado de cerimônias paralitúrgicas, de expressões culturais tradicionais (Império do Divino, Congadas, Cavalhadas etc.), de tombamentos de edifícios, celebrou-se missa solene com música de fins do século XVIII e início do século XIX da região e recuperadas nos anos anteriores. Para salientar a relação entre as várias esferas da prática musical e a sua inserção em processos culturais, fêz-se questão, segundo a concepção de musicologia de orientação cultural defendida pelo editor, que a prática coro-orquestral fosse alternada com cantos da tradição rural do presente. A importância da vida religiosa no passado - e no presente do Vale do Paraíba foi particularmente considerada A apresentação da primeira coletânea de autores brasileiros impressa no Vaticano deu-se no Convento da Luz, em São Paulo. Esse local, que abriga também o Museu de Arte Sacra da Arquidiocese, foi escolhido pelos seus vínculos com o Vale do Paraíba através do vulto histórico de Frei Galvão, o promotor e guia espiritual da vida religiosa das monjas alí recolhidas, um construtor de convento não apenas no sentido literal do termo.
Significado mais amplo de estudos contextualizados
A atenção agora redirecionada ao Vale do Paraíba e a São Paulo de fins do século XVIII e início do século XIX aguça a sensibilidade do observador para situações sócio-culturais e para processos históricos de formação e transformação de identidades culturais que diferem, em muitos casos, daqueles vigentes nas regiões das Minas Gerais.
Tem-se, aqui, necessariamente, um fortalecimento de uma já há décadas salientada necessidade de maior diferenciação dos estudos culturais dedicados ao século XVIII no Brasil, por demais marcados pelo esplendor barroco tardio da vida cultural e religiosa das cidades mineiras. No âmbito de suas expressões musicais, essa maior necessidade de uma diferenciação de perspectivas e de critérios vem sendo salientada nos vários colóquios e simpósios promovidos pelas instituições vinculadas com a ABE.
Trata- se de um complexo de questões que vem sendo estudadas sob diferentes aspectos e que, - embora não podendo ser aqui considerado em pormenores - , colocou a exigência de uma reconsideração mais diferenciada do fenômeno etno-social e sócio-cultural que vem sendo tratado na tradição de Francisco Curt Lange sob o conceito de "mulatismo". A perspectiva tem sido modificada no sentido de se colocar em destaque sobretudo o caráter processual de um desenvolvimento mais abrangente e complexo da formação de identidades e de suas expressões culturais em relação a fatores tais como labilidade e ímpeto de auto-afirmação analisados de acordo com as diferentes fases desses processo performativo. Assim como mais uma vez salientado na sessão de Parati do Congresso de Estudos Euro-Brasileiros de 2002, o Vale do Paraíba não pode ser considerado somente nos seus vínculos com o Caminho do Ouro, a via que unia Minas ao porto que levava ao Rio de Janeiro. Essa focalização traria em si o problema de um tratamento não-adequado da história cultural regional, que deveria ser desenvolvida a partir de seus próprios pressupostos.
Assim como também não seria apropriado considerar anacrônicamente a vida cultural do passado da região a partir de desenvolvimentos - e de imagens - estabelecidos somente no decorrer do florescimento e da decadência da economia baseada no café de meados do século XIX, também a vida cultural e religioso-cultural da região não pode ser estudada adequadamente à luz de expressões determinadas por condições reinantes nas Minas - ou pela recepção de impulsos provindos do Rio de Janeiro. Apesar da importância desses fenômenos receptivos, salienta-se a necessidade e o significado de um enfoque dirigido primordialmente a processos culturais propriamente vale-paraibanos e paulistas, uma prioridade que abriria até mesmo novas perspectivas para o tratamento de desenvolvimentos ocorridos nas Minas.
Essa mudança no ponto de enfoque e na perspectivação exigiria a consideração mais diferenciada de aspectos etno-sociais e sobretudo a superação de uma determinada concepção demasiadamente restrita do "mulatismo". Questões de miscigenação que se levantam na história mais remota do Vale do Paraíba dirigem a atenção ao significado da cultura cabocla, do índio catequizado, do europeu aclimatado e de seus descendentes, ou seja, a um processo de transformação cultural recíproca, e fundamental, ao qual o correspondente afro-brasileiro se integraria e/ou interferiria numa fase antes subseqüente.
O fenômeno que vem sendo discutido nos estudos culturais com relação a outros países sob o conceito de "Criolização" corresponderia aqui antes a um processo de caboclização que necessitaria ser estudado com cuidado em seus diferentes níveis e formas de expressão. Tem-se aqui discutido, nos estudos que se desenvolvem há décadas no âmbito da ABE, que o estudo desse processo, no qual o índio e o caboclo assumem papel relevante, abre novos caminhos para análises mais adequadas, ou seja, a partir de seus próprios pressupostos, de expressões culturais do passado do Vale do Paraíba.
Se as igrejas do Vale do Paraíba e da antiga São Paulo não são tão douradas e profusamente ornamentadas como as de Minas, se as suas festas e as obras musicais conhecidas do passado não são tão brilhantes, isto poderia não apenas ser explicado por uma menor capacidade econômica, por uma maior pobreza, mas sim talvez como indício de uma outra situação dentro de um processo global de transformações identificatórias no qual estariam vigentes mecanismos e/ou valores que não tornavam tão necessários maiores ímpetos de exteriorização. A cultura - também a musical - do Vale do Paraíba e de São Paulo colonial não mais se ofuscaria perante o brilho das expressões do barroco mineiro, mas ganharia na sua modéstia uma dignidade especial de maior interiorização.
Interiorização e vida contemplativa
A canonização de Frei Galvão salienta o significado da vida interior, espiritual e contemplativa como irmã, mas superior à vita activa, e poderia ser considerada como um ato que marca ou sugere uma reorientação espiritual e religiosa no Brasil - e na América Latina em geral.
Para os estudos culturais, ela poderia ser vista como motivadora de uma maior consideração de fatos, fenômenos, deenvolvimentos e valores menos evidentes na cultura, de uma maior atenção a uma história da introspecção, de valores intrínsecos a atitudes e formas de expressão aparentemente simples e modestas. Essa reorientação, ou melhor, aguçamento da atenção, traria certamente também conseqüências para o próprio estudioso e para o trabalho científico, colaborando para que se recupere uma certa interioridade e seriedade comedida num ambiente intelectual que assume cada vez mais características de espetacularidade e superficial e egocêntrica competição.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).